“Bem-vindos de volta aos Estados Unidos de Trump, onde a Constituição é como um guardanapo de coquetel com alguns rabiscos” (Lewis, The Hill, 16/04/25). A frase de abertura do artigo recente de Matt K. Lewis tem um gosto amargo: ela abre um cenário em que até mesmo uma decisão unânime da Suprema Corte seria tratada com o mesmo respeito que uma reclamação do SAC — algo meramente protocolar, facilmente ignorado.
A essa metáfora, Lewis acrescenta um retrato sarcástico, no qual o presidente se alimenta de Big Macs durante reuniões de inteligência e zomba do Judiciário, perfurando a armadura de solenidade que geralmente envolve a governança e destruindo nossa confiança ingênua em um Contrato Social robusto.
A situação descrita por Lewis gira em torno de Kilmar Abrego Garcia, um salvadorenho deportado contra ordem judicial e preso na temida megaprisão de Cecot, em El Salvador. A Suprema Corte dos EUA decidiu por unanimidade que o governo facilitasse o retorno de Garcia. Donald Trump simplesmente se recusou a cumprir essa clara determinação, destruindo 20 anos de saudável tradição democrática em apenas 20 minutos. A teoria iluminista da separação de poderes, em Montesquieu, pressupõe que o Judiciário terá a última palavra na interpretação da Constituição escrita.
Quando o governante se recusa deliberadamente a cumprir as decisões do tribunal superior, esse pilar é sobreposto. Sem a adesão voluntária às regras do jogo, estamos próximos do cenário hobbesiano que antecede o contrato social, um cenário em que só a força, a arbitrariedade e o medo de um Estado totalitário comandado pelas big techs têm valor.
Aqui no Brasil, de forma idêntica, pretende-se a aprovação de uma Lei de Anistia manifestamente inconstitucional, tendo em vista que pretende interferir em casos específicos que estão sob julgamento do Supremo Tribunal Federal (tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023).
O Judiciário confia na certeza de que suas decisões serão cumpridas. É um ato de fé nas instituições e no Estado de Direito.
Aparentemente sólidas e permanentes, as instituições democráticas mostram sua fragilidade diante de governantes que agem como se as leis fossem apenas sugestões. A força de uma Constituição depende do consentimento coletivo em respeitá-la; sem esse compromisso, ele se reduz a um “guardanapo de coquetel com rabiscos” (Lewis). Esta reflexão ecoa a famosa imagem de Marx de que tudo o que é sólido se dissolve no ar , indicando a natureza volátil das instituições burguesas sob a pressão de interesses políticos despóticos. O caso Garcia mostra isso: o Judiciário declara “facilitar o retorno do deportado”, mas, na prática, a ordem parece se dissolver diante do sarcasmo presidencial.
Há um claro simbolismo nessa atitude, que prenuncia uma tentativa da extrema direita global de se ver livre do Estado de Direito. Nesse sentido, os juízes e tribunais seriam um obstáculo a ser eliminado nessa nova ordem comandada pelo capital especulativo associado às Big Techs.
Da guerra jurídica ao projeto de anistia
A erosão da consciência constitucional de que Lowestein fala começa com a banalização dos ataques ao Supremo Tribunal Federal, algo que começou há vários anos por meio de tuítes de políticos como Deltan Dallagnol, Sergio Moro, Marcel Van Hatten e outros nomes da extrema direita.
Estamos todos anestesiados diante de uma clara tentativa de golpe branco contra o Judiciário e o Estado de Direito. Aceitar uma anistia que ofende o princípio da separação de poderes e a própria essência do Estado Constitucional é o primeiro passo para o tecnototalitarismo.
Houve um ataque insistente ao Supremo Tribunal Federal como última instância de proteção dos direitos fundamentais no Brasil. O Estado Policial foi criado. O Big Brother que Orwell nos contou. A espionagem clandestina e o vazamento seletivo para a imprensa foram banalizados no Brasil.
Com uma mão, os inimigos eram execrados na praça pública, enquanto com a outra desviavam bilhões de recursos da União para a criação de uma fundação privada em Curitiba.
As eleições de 2018 foram claramente pautadas pela prisão ilegal do candidato na preferência de todas as pesquisas eleitorais. A guerra jurídica que permitiu a queda de Dilma Rousseff em 2016 acabou elegendo a extrema direita em 2018.
O Conselho Nacional de Justiça investigou os desvios da “máquina de lavar” em Curitiba e concluiu que havia indícios da prática dos crimes de corrupção, organização criminosa e peculato, além da cooptação de agentes públicos brasileiros para interesses dos Estados Unidos.
O dia 8 de janeiro de 2023 surgiu como consequência direta desses ataques sofridos por meio do uso da guerra jurídica em esforços conjuntos com a mídia de massa e o poder das grandes empresas de tecnologia .
Os mesmos agentes que hoje lançaram todo tipo de ataque ao Supremo Tribunal Federal patrocinam uma ampla anistia no Congresso Nacional porque sabem que são indiretamente responsáveis por todos os crimes cometidos naquela data infame da história do país.
A eventual concessão de anistia aos crimes de 8 de janeiro é consistente com a tentativa de estabelecer essa nova ordem mundial e aniquilar a prerrogativa do Judiciário.
A recusa de Trump em acatar uma decisão unânime da Suprema Corte anuncia que teremos muitos impasses políticos pela frente, pois se pretende eliminar o sistema de freios e contrapesos.
Já testemunhamos essa tentativa na Alemanha nazista e na União Soviética stalinista. Em ambos os casos, não funcionou.
Publicado originalmente pelo Conjur em 18 de abril de 2025
Por Eduardo Appio e Salvio Kotter
Eduardo Appio é juiz federal em Curitiba e pós-doutor em Direito Constitucional.
Salvio Kotter é editor da Kotter Editorial, especializada em literatura, filosofia e política.