“Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca.”
por Rodrigo Souza Siqueira Júnior
“A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca.” A frase de Ulysses Guimarães, proferida na promulgação da Constituição de 1988, permanece um alerta para tempos de instabilidade institucional como o que atravessamos. Em tempos de crise global da democracia, tramita em nosso Congresso Nacional um Projeto de Lei que, a despeito do discurso de seus apoiadores – sobre suposta preocupação humanista –, tem gerado inquietação por tratar-se de uma anistia ampla e irrestrita para os envolvidos no processo de desestabilização institucional, que culminou na tentativa de golpe de Estado de 8 de janeiro de 2023.
Por outro lado, sob olhar atento, não há exatamente um consenso entre apoiadores do projeto, em relação a um a tentativa de golpe de Estado em si. A adesão expressiva que o PL vem recebendo – inclusive de parlamentares de centro e até de partidos da base governistas – parece suscitar questões de fundo, que precisam ser postas em perspectiva, analisando o quadro onde a proposta se insere.
Vive-se uma dinâmica conflituosa mais ampla entre os Poderes da República há mais de uma década. A movimentação legislativa atual não está apenas ancorada no reacionarismo ideológico dos setores que apoiam Jair Bolsonaro. Reflete um acúmulo de tensões entre os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. O fato foi mencionado pela jornalista Ana Clara Costa, no “Foro de Teresina” da Revista Piauí do dia 18 de abril, após cobertura com parlamentares, em Brasília. As intervenções do Supremo sobre a execução de emendas parlamentares, não é, todavia, o único fator que antagoniza os Poderes. A classe política e empresarial do país, nos últimos anos, independente de matizes ideológicas, viu-se deslegitimada, constrangida, criminalizada, e em alguns casos, encarcerada, por decisões judiciais muitas vezes heterodoxas, sem o devido processo legal, a partir da operação Lava Jato.
O episódio da prisão do Presidente Luís Inácio Lula da Silva, posteriormente anulada pelo Supremo Tribunal Federal, simboliza bem tal imbricação: interesses judiciais, políticos e midiáticos, que indevidamente entrelaçados, minaram as balizas constitucionais da separação de poderes e sistema de freios e contrapesos. Lançando o país em um período de instabilidade institucional e retrocessos. A judicialização da política com transferência de decisões tradicionalmente legislativas ou executivas para o Judiciário explica em parte a reação legislativa. Embora seja um fato que a a atuação do Poder Judiciário tem sido importante para a defesa de direitos fundamentais e do próprio Estado Democrático de Direito, não se pode olvidar que ela se dá com certas lacunas, em termos de accountability.
É verdade que a operação Lava Jato desempenhou um papel central na erosão institucional brasileira. No entanto, a ampliação do poder jurisdicional sobre garantias fundamentais tem entre nós origens mais antigas. Remontam mesmo à edição do Código de Processo Penal de 1941, elaborado por Francisco Campos durante o Estado-Novo, intelectual e político abertamente autoritário que imprimiu tal cultura em nosso Código; ou a apresentação do anteprojeto Buzaid do Código de Processo Civil em 1964, pelo então Ministro da Justiça Alfredo Buzaid ao então Presidente Médice. Que a par de sua sofisticação técnica e avanços da escola histórico-dogmática italiana trazidas consigo, e da perspectiva publicística do Processo, refletia uma cultura jurídica de modelo de jurisdição repressiva e substitutiva das partes, reforçada pelo autoritarismo do regime militar então vigente.
Esta herança autoritária atravessaria a redemocratização sem grandes reformas estruturais, ante a ausência de uma justiça de transição efetiva pós ditadura militar. Vis-à-vis os grandes avanços que logrou nossa Constituição Federal, em termos de direitos sociais e políticos, os pilares dessa uma cultura judicial concentradora, verticalizada, muitas vezes indiferente ao devido processo legal, foram preservados durante a abertura democrática. Ao contrário, os poderes do Judiciário seriam por ela ampliados, como anteparos a um Poder Executivo potencialmente ingerente – fortalecido durante a ditadura militar, cuja memória levaria a solução adotada pelo Constituinte.
Sem inaugurar então tal cultura, a operação Lava Jato a radicaliza, fazendo reemergir da lagoa, o Estado policial. Do arbítrio disfarçado de legalidade, prisões sumárias, baseadas em denúncias indiciárias, colhidas de delatores sob tortura, a perseguições à familiares e ruína econômica promovida pelo aparato estatal, foram sintomas recidivos de nossos períodos autoritários, não totalmente tratados pela redemocratização. A operação Lava Jato alçou o judiciário ao papel de ator político central, que negaria quaisquer contrapesos institucionais. Papel desempenhado pela caserna, no século passado.
O reflexo deste processo não se restringe à cúpula do Judiciário ou a classe política. Como dito pelo Advogado e Ex-Presidente Pedro Aleixo, quando da edição do AI-5, o problema “são os guardas na esquina”. A lógica de excepcionalidade, com a percepção de politização, por parte de instâncias superiores, espalha-se entre juízes de piso. Cidadãos, empresas, instituições e trabalhadores tem convivido com níveis crescentes instabilidade normativa. Afetando o desenvolvimento do país, geração de empregos e o exercício de direitos. Fenômeno percebido pela classe política, que oportunisticamente buscar formas de, dentro de sua possibilidade de manejo e capacidade, responder à tal desafio, a fim de colher dividendos políticos e preservar prerrogativas suas.
É nesse contexto que o PL da anistia deixa entrever seu duplo significado: como tentativa – ainda que sofrível, torta e reprovável – do Legislativo retomar protagonismo e limitar os excessos percebidos do Judiciário. Trata-se de um gesto de autoafirmação institucional, que ao ser canalizado pela via da conivência com o golpismo, envereda para as raias da irresponsabilidade. Ao propor anistia aos que atentaram contra a Constituição, o Congresso compromete sua própria legitimidade. A crítica legítima aos abusos de um poder cede lugar a leniência com os crimes cometidos em nome da ruptura democrática.
Como disse Lenio Streck, à Folha de São Paulo do dia 20 de abril, seria um “haraquiri constitucional”. Algo que a Magna Carta certamente não autoriza. A crítica ao abuso de poder judicial é legítima, mas o meio para combatê-lo devem ser aqueles indicados pela própria Constituição. Exigindo revisão de excessos, autocontenção judicial e maior accountability de magistrados e Tribunais, responsabilizando aqueles que atuam com parcialidade ou fora da legalidade. Se o Judiciário ampliou seus poderes, a solução não está na anistia a golpistas que buscaram colocar o Estado de Direito abaixo, para confrontá-lo. Mas no fortalecimento de balizas e mecanismos de controle democrático. Por exemplo, dando maior efetividade a Lei 13.869/19, que pune abusos de autoridade. Tal via constitucional contrasta radicalmente, porém, com o PL da anistia, que opta pela impunidade, reproduzindo nosso histórico de não responsabilização de ataques contra a democracia.
Com intuito de corrigir um desequilíbrio na separação de poderes, tais setores do parlamento ditos “centristas”, estariam, assim, criando outro. Ou como comentou o Cientista Político e Professor do IESP-UERJ, Christian Lynch, “é como resolver os males do purgatório indo para o inferno”. A anistia proposta, portanto, não representa qualquer aceno à pacificação, mas uma capitulação institucional e afronta à Constituição.
Como teriam dito alguns próceres da filosofia alemã do séc. XVIII, a única ciência é a ciência da história: Juscelino Kubitschek (PSD) teria seu mandato de Senador pelo estado de Goiás cassado pelos mesmos militares que anistiou em 1955, no dia 8 de agosto, após o golpe de 1964. Com a edição do AI-1, assinada por Castelo Branco amplamente anunciada na Rádio Brasil. Kubitschek era acusado corrupção. E uma vez cassado, fora alvo de inúmeros IPMS, tendo seus bens bloqueados, associado aos “comunistas” e à corrupção na construção de Brasília. A imprensa, já sob controle da censura, era utilizada para angariar legitimidade ao regime, sob discurso moralista, objetivando enfraquecer lideranças civis vistas como uma ameaça ao regime. Lembremos, para que não mais se repita. Recordemos o vaticínio do Senhor Diretas: “Afrontá-la, nunca! ”
Rodrigo Souza Siqueira Júnior – Graduado em Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Ex-Presidente da Federação Nacional dos Estudantes de Direito (FENED), Diretor do Observatório da Lava Jato, Diretor do Instituto de Defesa da Democracia (IDD8), Felipe Santa Cruz Advogados, Membro do Grupo de Pesquisa Brasil-China da Universidade Federal Fluminense (UFF) e Representante da Sociedade Civil na Comissão de Obrigações Internacionais/CNDH.
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