Antes tarde do que nunca

Por Ângela Carrato*

Comemora-se nesta segunda-feira, 21 de abril, o dia maior da pátria brasileira. Foi num 21 de abril, dois séculos atrás, que o alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, foi enforcado e esquartejado por defender a independência da então colônia de Portugal.

Tiradentes, como se sabe, integrava um grupo de conspiradores contra a coroa portuguesa que passou para a história como Inconfidência Mineira.

O que eles pretendiam era que o nosso ouro e pedras preciosas deixassem de fazer a festa para os europeus e que essa riqueza fosse aplicada aqui.

Queriam também a industrialização local, proibida pela matriz.

Foi o ouro brasileiro que bancou a Revolução Industrial inglesa, que viria mudar a história do Ocidente, acelerando o desenvolvimento de uns poucos países e condenando os demais, especialmente os da América Latina, à condição de meros exportadores de matérias-primas.

Lembrar Tiradentes e sua luta hoje é fundamental, porque outro país, os Estados Unidos, que sucedeu a Inglaterra como potência, após a Segunda Guerra Mundial, se arvora a querer recolonizar a América Latina exatamente no momento em que seu declínio se mostra irreversível.

Com a indústria sucateada, a infraestrutura demandando urgente atualização, a maior dívida pública do mundo e perdendo de lavada para a China no quesito inovação, os Estados Unidos declinam aceleradamente.

Para o seu punhado de bilionários tudo vai muito bem, mas para a maioria da população, as coisas não poderiam estar piores.

Na ainda por muitos considerada a maior potência bélica do mundo, faltam empregos, o número de pobres não para de crescer e a ausência de saúde pública tem desesperado não só pobres como a maioria da classe média.

Por fazer o diagnóstico errado sobre as razões deste declínio, os estadunidenses elegeram Donald Trump e seu MAGA (Make América Great Again) como tábua de salvação.

E mesmo pesadamente contestado dentro do próprio país, Trump segue em sua sanha e disposto não só a destruir seu principal rival, a China, como a não medir esforços para que a América Latina volte a ser o seu quintal.

Em se tratando do Brasil, nunca a luta de Tiradentes e dos inconfidentes esteve tão atual.

Fomos colônia de Portugal, fomos colônia indireta da Inglaterra e até muito recentemente quem dava as cartas aqui era o Tio Sam.

Basta lembrar que o golpe civil-militar de 1964 teve como objetivo derrubar João Goulart, um presidente nacionalista e desenvolvimentista, que queria romper com o atraso secular, que nos mantinha acorrentados ao passado.

Não por acaso Jango foi deposto por defender as chamadas reformas de base, que ainda hoje não se concretizaram.

Contam-se nos dedos os presidentes que não foram capacho do Tio Sam: Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, João Goulart, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff.

A ditadura que se seguiu à derrubada de Jango durou 21 anos. Suas consequências são visíveis e continuam presentes na política e na vida brasileira.

Foi por não ter responsabilizado devidamente os militares que mataram e torturaram que nossa democracia, mais uma vez, enfrenta graves problemas.

Foi também num 21 de abril, há 40 anos, que morria Tancredo Neves, depois de semanas internado e sem tomar posse como primeiro civil eleito indiretamente para a presidência da República, encerrando duas décadas de ditadura militar.

A campanha pelas eleições diretas para presidente, mesmo contando com o apoio da maioria da população, havia sido derrotada no Congresso Nacional.

Tancredo Neves, que havia apoiado as Diretas-Já, viu aí a oportunidade para se apresentar como uma solução mais palatável. Montou o “Muda Brasil”, sua campanha eleitoral, e com ela capturou o entusiasmo e a vontade popular de que o país retornasse à democracia.

Tancredo era um político moderado, mas sincero quando se referia ao compromisso democrático. Não por acaso sua doença e morte mexeram tanto com a população, a ponto de muitos o compararem a um novo Tiradentes.

Exageros à parte, o certo é que quatro décadas após sua morte, o Brasil encontra-se novamente perante os velhos desafios.

A classe dominante, como em 1964, tem ódio do povo e se depender dela, congela por seis anos o valor do salário-mínimo, como acaba de propor com a maior desfaçatez o ex-presidente do Banco Central no governo Fernando Henrique Cardoso, Armínio Fraga.

Ao contrário do que se poderia imaginar, a autointitulada grande mídia não viu nada de errado na proposta de Armínio. Até porque ela nada mais é do que uma continuação da política-econômica colocada em prática por Paulo Guedes, o ministro da Economia de Jair Bolsonaro, queridinho do Grupo Globo e da mídia hereditária, corporativa e inimiga do Brasil.

Paulo Guedes, para quem não se lembra, era aquele que queria colocar uma granada no bolso dos funcionários públicos e pretendia privatizar todas as empresas estatais brasileiras.

Conseguiu seu intento em relação à BR distribuidora e à Eletrobras. E quase consegue destruir a Petrobrás, transformada por ele em vaca leiteira das petroleiras e dos grupos financeiros internacionais. Situação da qual ainda não nos livramos.

Se é certo que JK avançou o Brasil 50 anos nos cinco anos de seu mandato, os golpistas que derrubaram Dilma o atrasaram 60 anos em seis. É neste país, onde a classe dominante insiste em querer tratar a maioria da população como escrava e não tem qualquer compromisso com o desenvolvimento, que Luiz Inácio Lula da Silva está sendo duramente torpedeado em seu terceiro mandato.

Não falta quem critique Lula pela postura mais moderada, diferente dos seus governos anteriores.

Onde foi parar a política externa “ativa e altiva”, diante do pedido de atas para reconhecer a vitória de Maduro na Venezuela e do reconhecimento imediato da eleição roubada pelo extremista de direita Noboa, no Equador?

Por que a Petrobrás continua pagando dividendos milionários a um punhado de sanguessugas internacionais?

Por que Lula ainda mantém em seu ministério políticos de agremiações que trabalham e votam contra o governo?

Por que Lula não denúncia, em cadeia nacional de rádio e televisão, todos os que agem contra o Brasil e o povo brasileiro?

Sem dúvida essas são perguntas importantes e pertinentes, mas que demandam respostas complexas.

Dois séculos após a Inconfidência Mineira e 40 anos depois da morte de Tancredo, a classe dominante brasileira continua a mesma. Não aceita mudança e sua capital é Washington.

Se em 1964 Goulart se defrontava com um Congresso dominado pelo latifúndio, o de hoje é controlado pelas bancadas do Boi, da Bala e da Bíblia.

O Congresso de hoje é possivelmente mais nefasto, quando se pensa que usurpou grande parte do orçamento público através das emendas secretas.

Você reparou como a mídia oligárquica noticiou a greve de fome do deputado Glauber Braga (Psol-RJ) quase sem mencionar que ele está enfrentando os ladrões do orçamento?

Você reparou como essa mesma mídia adora chamar o governo Lula de “gastador” em se tratando dos programas sociais, mas sequer menciona que os grandes sorvedouros do orçamento são o pagamento de juros da dívida interna para banqueiros e as emendas secretas?

Com um Congresso em que dois terços dos membros são de direita ou de extrema-direita, representando apenas os interesses da classe dominante e com uma mídia cujos proprietários integram o 1% mais rico, fica mais fácil entender as dificuldades que Lula enfrenta.

Não por acaso a turma que derrubou Dilma, com o apoio direto do Tio Sam, é a mesma que não queria a volta de Lula ao poder e que tentou implantar uma nova ditadura no país em 8 de janeiro de 2023.

Se a democracia prevaleceu e Bolsonaro e militares golpistas são réus e serão julgados nos próximos meses, isso está longe de significar tranquilidade.

Os golpistas brasileiros, que mentem ao falar em compromisso com a pátria e com a família, a começar por Bolsonaro, são os mesmos que apoiam e batem palmas para Trump.

Se dependesse desta corja, o Brasil voltaria a ser colônia. A classe dominante brasileira não passa de vira-latas e serviçal do Tio Sam.

Claro que isso você não vai ler, ouvir ou ver na mídia oligárquica, para a qual Maduro é “ditador” e Trump um democrata, mesmo promovendo a maior guerra econômica de que se tem notícia no mundo e ameaçando invadir e anexar países amigos.

É este delicado contexto nacional e internacional que Lula tem enfrentado. Contexto que promete radicalizar-se, uma vez que Trump passa a exigir que a América Latina escolha entre alinhar-se aos Estados Unidos ou à China.

Como maior e mais importante país da região, o Brasil não conseguirá desconhecer por muito tempo o ultimato de Trump.

Lula tem evitado o confronto, mas, com categoria, vem colocando o ocupante da Casa Branca no seu devido lugar, ao anunciar que estará presente na comemoração dos 80 anos do Dia da Vitória contra o nazismo, em Moscou, e na participação na Cúpula Celac-China, em Pequim, ambos em maio.

Obviamente que haverá muita crítica e gritaria da mídia oligárquica contra Lula. Tom que deverá continuar subindo nos próximos meses, a fim de tentar impedir que ele se candidate à reeleição.

Se há dois séculos os ideais de independência foram derrotados e se há quarenta anos a democracia que conquistamos ficou pela metade, temos finalmente a chance de tornar o Brasil um país livre. Antes tarde do que nunca.

*Ângela Carrato é  jornalista. Professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG. Membro do Conselho Deliberativo da ABI.

*Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.

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Last Update: 21/04/2025