Por [Seu Nome]*
O Brasil tem uma das piores mídias corporativas do mundo.
Verdadeiras capitanias hereditárias, elas estão concentradas nas mãos de seis famílias, que controlam perto de 70% de tudo o que a população lê, escuta, assiste ou acessa. Além dos tradicionais jornais, esses senhores detêm as concessões de emissoras de rádio, de TV e são os proprietários dos principais portais de notícias.
A situação não é de agora, mas está piorando.
Durante os 21 anos da ditadura militar, em que pese a maioria dos donos da mídia ter estado na linha de frente da derrubada do presidente João Goulart, alguns rapidamente se desiludiram.
Já a maioria dos jornalistas daquela época nunca se deixou iludir por slogans ufanistas e, menos ainda, por vantagens que pudessem receber.
A essa escola parece pertencer a repórter da TV Record, [nome da repórter], que até a última quarta-feira, acumulava também as funções de apresentadora eventual do Jornal da Record, principal noticiário da emissora do bispo Edir Macedo, dono da Igreja Universal do Reino de Deus.
Escalada para a destacada função de entrevistar com exclusividade, na terça-feira, o presidente Lula, [nome da repórter] conversou com ele quase uma hora. As perguntas foram muitas e variadas, prevalecendo as relativas à economia, em especial corte de gastos e arcabouço fiscal.
Mas o que fez [nome da repórter]? Uma das três sócias da empresa de consultoria política Capital Advice, [nome da repórter] vazou, no início da tarde, para um de seus clientes, a corretora de valores BGC, trechos descontextualizados da entrevista.
O resultado foi uma corrida ao dólar que, há mais de uma semana, vinha em trajetória de queda no Brasil.
A elevação atribuída a essas falas manipuladas e descontextualizadas de Lula contribuíram para gerar nova crise e apreensão no mercado financeiro, possibilitando que alguns espertalhões ganhassem com a especulação e muita gente perdesse dinheiro.
Quando a íntegra da entrevista foi ao ar, a manipulação ficou evidente, mas o leite já havia sido derramado.
Desde o início da tarde, [nome da repórter] divulgou uma nota, alegando que o presidente Lula se dizia não preocupado com o controle de gastos, um dos temas mais caros aos ricos e endinheirados brasileiros e a seus parceiros estrangeiros.
Os bilionários querem que o governo Lula corte gastos apenas pelo lado dos mais pobres, deixando intactos seus privilégios. Aqui só pobres e classe média pagam impostos. Dividendos estão isentos.
A folha de pagamento das maiores empresas – nacionais e estrangeiras – segue desonerada (sem pagar impostos ou com impostos reduzidos), itens de consumo de luxo como jatinhos, iates e jet skis não são tributáveis, o mesmo acontecendo com as fortunas escondidas em paraísos fiscais.
O ministro da Fazenda, [nome do ministro], teve que se pronunciar a fim de desfazer a mentira, lembrando que Lula tem compromisso com o controle dos gastos públicos e que a economia brasileira vai bem, como apontam diversos indicadores.
O próprio [nome do ministro] também não escapou da campanha. Memes com o “Taxad” invadiram as redes sociais, na tentativa de reduzir o seu trabalho à “criação de taxas abusivas”.
Taxad é uma ironia se valendo da palavra taxa e do sobrenome do ministro.
No mesmo dia da divulgação da fala manipulada de Lula, na Times Square, em Nova Iorque, um dos locais mais caros e com maior visibilidade no mundo, um painel luminoso com oito metros de altura, mostrava os memes contra [nome do ministro], afirmando que “ele e Lula são os responsáveis pelas maiores taxas cobradas dos cidadãos em todo o planeta”.
Por razões óbvias não dá para desvincular o vazamento da entrevista, os memes e o painel na Times Square. Por razões óbvias, igualmente, não dá para acreditar que foram beneficiários dos programas sociais ou cidadãos comuns que criaram os memes e bancaram o caríssimo luminoso contra [nome do ministro] e Lula, num momento em que tentam fazer com que ricos e bilionários paguem alguns impostos.
Para entender o que se passou é preciso, como sempre, seguir o dinheiro.
A BGC é a subsidiária brasileira da corretora gigante de mesmo nome, com sede nos Estados Unidos.
Criada em 2004 e com atuação global, sua especialidade é a gestão financeira e entre seus clientes estão bancos de varejo, de investimento e fundos de pensão. O ideal para a BGC é que o terceiro governo Lula, como fez Temer, Bolsonaro ou mesmo Fernando Henrique Cardoso, pusesse o país à venda, privatizando tudo a preço de banana.
Para essa gente, Lula é considerado inimigo, enquanto o governador de extrema-direita de São Paulo, [nome do governador], é o amigo da vez, digno de todos os elogios da mídia corporativa e aplausos do mercado financeiro.
Tarcísio acaba de entregar a companhia de saneamento do Estado, a Sabesp, para o mercado. Detalhe: a empresa, eficiente e lucrativa, foi arrematada em leilão do qual participou uma única empresa, a Equatorial Energia, sem experiência na área.
A Equatorial é integrada por vários fundos de investimentos, o que dificulta até rastrear quem são efetivamente os seus donos.
Já a Capital Advice foi criada em 2020 e tem [nome da repórter] como uma de suas proprietárias. A empresa vende boletins de “análise política”, “apurações on demand”, “projeção de cenários” e “mapeamento de riscos políticos”, conforme consta do seu site.
O que [nome da repórter] fez foi manipular e vazar informações supostamente obtidas na entrevista exclusiva que fez com o presidente Lula para seu cliente. O cliente, a BGC, as utilizou para criar confusão no mercado financeiro brasileiro e atribuí-las a “falas do presidente Lula”.
Que as recentes crises envolvendo a alta do dólar eram artificiais muitos já sabiam. Conceituados economistas como [nome do economista], ex-vice-presidente do New Development Bank (NDB) e representante do Brasil no FMI por décadas, as têm denunciado.
Para ele, a atuação nociva e absolutamente pró-mercado do atual presidente do Banco Central, o bolsonarista [nome do presidente do Banco Central], é a responsável. O que não havia era evidência de envolvimento direto de jornalistas neste tipo de atuação.
Agora há.
As informações sobre o que a TV Record vai fazer com a sua funcionária estão desencontradas, girando de afastamento a demissão. Através de nota divulgada na quinta-feira, a emissora se disse “surpresa” com o ocorrido, alegou não saber das relações da repórter com a empresa Capital Advice, se comprometeu a apurar o ocorrido e tomar as providências cabíveis.
De lá para cá, não houve novo comunicado da TV Record, com raríssimos veículos de mídia se interessando pelo assunto, apesar da gravidade. Motivo pelo qual, caro leitor ou leitora, possivelmente você não tenha conhecimento de nada disso.
Afastamento ou demissão da jornalista estão longe de significar ponto final no assunto.
Será que alguém acredita que a direção da TV do bispo Edir Macedo desconhecia a situação de uma funcionária na casa há 17 anos? [nome da repórter] não era uma funcionária qualquer, tanto que recentemente foi elevada à condição de apresentadora eventual do principal noticiário da emissora.
Divulgação de informação privilegiada é crime previsto em lei e deve ser apurada pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), autarquia vinculada ao Ministério da Fazenda, que tem por objetivo disciplinar e fiscalizar o mercado financeiro. A pena é de um a três anos de cadeia.
Até o momento, a CVM não se pronunciou.
[nome da repórter] infringiu vários artigos do Código de Ética da Associação Brasileira de Imprensa (ABI). No artigo 9º, por exemplo, é dito expressamente que “jornalista e veículo de comunicação não pode associar-se às fontes de informação e a seus interesses, nem lhes prestar aconselhamento ou assessoria de qualquer natureza”.As punições previstas vão do arquivamento à exclusão dos quadros da entidade, passando por penas mais leves como advertência e suspensão.
Não sei se [nome da repórter] é filiada à ABI. O certo é que até o momento em que escrevo, nenhuma entidade da nossa categoria (a própria ABI, a Federação Nacional dos Jornalistas ou os sindicatos regionais) se manifestou sobre o assunto.
Também estão em silêncio as Faculdades de Jornalismo, entidades e movimentos sociais que lutam pela ética e transparência da informação.
Que muitos jornalistas são penas de aluguel não há dúvida.
Que muitos jornalistas fazem o jogo dos interesses dos patrões para crescer na profissão, não é novidade.
Que alguns jornalistas se vincularam e se vinculam a grupos conservadores contra governos progressistas, nunca faltaram suspeitas.
No entanto, a atuação, com todas as digitais, de uma jornalista manipulando a informação para beneficiar um poderosíssimo cliente (o mercado financeiro) contra o interesse do governo e da maioria da população brasileira é uma lamentável novidade.
Um atentado à ética profissional como esse deve nos remeter à importância da criação do Conselho Nacional de Jornalismo, entidade prevista na Constituição de 1988, que ainda não saiu do papel.
A exemplo da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e dos Conselhos Federais das mais diversas categorias (médicos, engenheiros, arquitetos, contabilistas etc), nós, jornalistas, também precisamos de uma entidade específica para discutir e se posicionar sobre questões éticas envolvendo o nosso exercício profissional.
Códigos de Ética, no presente e no passado, nunca faltaram aos jornalistas. Eles se tornam letra morta, no entanto, se não existir entidade capaz de zelar por sua aplicação.
Um cirurgião que, por incompetência ou desleixo, deixar pacientes morrerem, ou advogados, que não respeitam as práticas adequadas de sua profissão, não podem continuar a exercê-las. O mesmo precisa acontecer com jornalistas e empresas jornalísticas.
A informação é algo extremamente sensível, que mexe com a vida das pessoas e com a imagem de governos. Pode causar danos materiais, destruir reputações e até contribuir para derrubar governos.
Quem pagará pelos prejuízos que [nome da repórter] causou a milhares de pessoas que compraram dólares ou venderam a moeda estadunidense temendo crise na economia brasileira?
Quem pagará pelo desgaste caus