Como escapar dos picaretas e das mentiras nas eleições
Por Ângela Carrato
A julgar pela primeira semana de campanha, as eleições municipais deste ano serão marcadas pela presença de uma infinidade de candidatos sem qualquer compromisso com os reais interesses da população e, sobretudo, com a verdade dos fatos.
São extremistas de direita, propagadores de mentiras e de discursos de ódio, seguidores ou não de Jair Bolsonaro.
No passado, era mais fácil identificar tais figuras. A maioria acabava recebendo a pecha de “oportunista” ou “picareta” e não ia muito longe.
O que não significa que alguns não tenham conseguido se eleger e seguirem carreira na política.
A entrada em cena das fake news e da guerra cultural redundou em uma desinformação de tamanha magnitude, que a maioria da população se mostra preocupada com o assunto.
Mais ainda: a maioria acredita que a integridade eleitoral depende de medidas eficazes que possam ser tomadas contra a desinformação.
Isso fica patente quando se observa os resultados da pesquisa DataSenado, divulgados na última semana.
Realizada com a finalidade de subsidiar o parlamento brasileiro, o estudo faz um raio X dos usuários de redes sociais, especialmente dos que se identificam como tendo tido acesso a notícias falsas nos últimos seis meses.
O objetivo era avaliar a dimensão das notícias falsas no Brasil e descobrir como a opinião pública percebe os seus impactos e compreende o papel das plataformas de redes sociais para lidar com a questão.
A pesquisa teve como população-alvo cidadãos de 16 anos ou mais, residentes em todos os estados.
A amostra total foi composta por 21.870 entrevistas telefônicas, que seguiram questionário previamente estruturado.
A duração média das entrevistas foi de 13 minutos e o nível de confiança nos resultados é de 95%.
Esta pesquisa revelou que 67% da população já foi exposta à desinformação e que essa desinformação foi compartilhada nas redes sociais.
As razões apontadas para esse compartilhamento são diversas: 31% acreditam que as pessoas o fazem para mudar a opinião dos outros, enquanto 30% acham que isso acontece porque não se sabe que a notícia é falsa.
Uma ampla maioria (81%) acredita que as plataformas devem ser responsabilizadas pela divulgação de notícias falsas. Essa opinião é praticamente unânime em todos os estados, com exceção de Santa Catarina, onde a concordância é um pouco menor (73%).
O impacto da desinformação em eleições também é uma preocupação central. Para 81% dos entrevistados, a disseminação de notícias falsas pode afetar “muito” os resultados eleitorais.
Neste sentido, quase oito em cada 10 brasileiros avaliam como “muito importante” o controle de notícias falsas nas redes sociais para garantir uma disputa justa nas eleições.
A partir desses dados é possível se fazer uma série de reflexões.
Não resta dúvida de que as notícias falsas circulam com grande intensidade pelas plataformas e por suas redes sociais.
Não resta dúvida, por outro lado, que essas plataformas precisam ser responsabilizadas pelo impacto que os conteúdos falsos podem ter e tem tido na democracia brasileira.
A título de exemplo, das 10 principais redes sociais em atuação no país, a mais acessada é o WhatsApp (93%), o que indica uma preferência por mensagens curtas e instantâneas.
Preferência que pode ser explicada também pelo fato de a maioria dos smarth phones vendidos aqui contar com essa rede social instalada e o seu uso não impactar no custo do pacote de dados dos usuários.
O número dos que se informam pelo WhatsApp é 20% superior ao dos que se informam pela TV aberta, onde a Globo predomina, com a TV Record, do bispo-empresário Edir Macedo, da Igreja Universal do Reino de Deus, ocupando o segundo lugar.
Mesmo assim, se a mídia corporativa tradicional – aqui entendida como jornais, revistas, rádios e TVs – cumprisse o que sempre prometeu (“compromisso com os fatos”), era para haver, no mínimo, um importante contraponto às fake news.
Por que isso não acontece?
Entender esse aspecto significa chegar ao x da questão.
Vale ressaltar que esse aspecto não foi captado pela pesquisa DataSenado, por dois motivos:
1. seu escopo envolveu somente as plataformas e redes sociais; e
2. ainda prevalece a equivocada visão de que a mídia corporativa não divulga fake news.
A audiência das emissoras de TVs abertas vem caindo a cada dia. A TV Globo perdeu um terço de seu público nos últimos anos.
As perdas das demais emissoras como Record, SBT e Band seguiram caminho semelhante. Já a Rede TV, que nunca chegou a ter audiência significativa, agora sequer pontua.
Situação que se repete no canal pago GloboNews, do grupo Globo. O que não significa que o poder da TV aberta e dos demais veículos da mídia corporativa possa ser subestimado.
É preciso entender que mídia corporativa junto com as plataformas e redes sociais compõem um ecossistema de informação que, no Brasil, assume características especialmente perversas ao combinar interesses supostamente religiosos e o uso das emoções com a precariedade da educação e da informação por parte do público.
Diferentemente da maioria dos países europeus, dos Estados Unidos, do Japão e da Austrália, o Brasil não tem uma legislação capaz de regular o poder das TVs e das emissoras de rádios.
Mesmo sendo concessões públicas, seus concessionários agem como se fossem donos do espectro eletromagnético, transformando-o em espaço para a defesa dos seus interesses.
Diante de qualquer possibilidade de que esse poder possa ser controlado, esses concessionários sempre partem para o ataque se dizendo ameaçados por “censura”, apoiando e até patrocinando golpes de estado.
Foi assim em 1964, com a derrubada do presidente João Goulart (PTB), que teve na mídia verdadeira linha de frente contra ele.
Foi assim em 2016, com o golpe, travestido de impeachment, contra a presidenta Dilma Rousseff (PT).
Golpe que pode ser definido como parlamentar, jurídico e midiático, tal a importância desses três setores para a sua concretização.
Ameaças desse tipo persistem nos dias atuais, com o governo Lula permanentemente atacado pela extrema-direita, com o apoio dos barões da mídia tradicional e também das plataformas e redes sociais.
Alguns podem argumentar que outros governos e populações se encontram sob o ataque das mentiras da extrema-direita, pois esse é um fenômeno mundial.
É verdade.
É verdade, no entanto, que o Brasil nunca contou com dois elementos essenciais para que a sua população pudesse enfrentar as mentiras da mídia tradicional e, mais recentemente, as fake news das redes sociais: educação e letramento para a mídia.
Em pleno século XXI, apenas 30,1% da nossa população possui ensino médio completo. Porcentagem que cai para 19,7% quando se trata do ensino superior.
O Brasil tem ainda 9,3% de analfabetos (5,4 milhões de pessoas) e 29% de analfabetos funcionais (38 milhões de pessoas). Esses dois contingentes representam quase um quarto da população, parcela significativamente mais vulnerável a discursos autoritários, mentirosos e de ódio.
Tão grave quando a ausência ou precariedade do ensino no Brasil é o desconhecimento de como a mídia funciona, mesmo que, aqui, como acontece no futebol, quase todos se julguem craques no assunto.
Desde o final da Segunda Guerra Mundial, quando ficou nítido o papel que os meios de comunicação tiveram na divulgação de ideias nazistas e fascistas, adotou-se em diversos países o Letramento para a mídia (Media Literacy).