América Latina e Caribe na guerra comercial entre EUA e China
por Maria Luiza Falcão Silva
O comércio internacional permite que os países cresçam além da capacidade de seus mercados domésticos e facilita o fluxo de mercadorias, serviços e tecnologias que de outra forma não teriam sido possíveis.
O relatório Perspectivas do Comércio Internacional da América Latina e do Caribe, 2024. Reconfiguração do comércio mundial e opções para a recuperação regional apresentado pela Cepal, em uma coletiva de imprensa concedida pelo seu Secretário Executivo, José Manuel Salazar-Xirinachs, em 23 de outubro de 2024, sugere que o valor das exportações de bens da região cresceu em torno de 4%, como resultado de uma expansão de volume de 5% e uma queda nos preços de 1%. Para as importações, projeta-se um aumento de 4% no volume e uma queda de 2% nos preços, resultando em um aumento projetado de 2% em seu valor. Em termos líquidos os resultados são favoráveis representando mais dólares para o grupo regional.
Os setores, com maiores aumentos projetados, em termos de valor são as exportações agrícolas (11%), seguidas pelas de mineração e petróleo (5%) e manufaturas (3%). Por sub-regiões, projeta-se que os maiores aumentos serão liderados pelo Caribe (23%) e a América do Sul (5%). O elevado índice para o Caribe se deve principalmente ao aumento do volume de exportações de petróleo da Guiana e do Suriname. Na América do Sul, destacam-se os acréscimos no volume exportado de produtos agrícolas como soja, milho e trigo. A expansão projetada no valor das exportações do México e da América Central — mais intensivas em manufaturas — fica abaixo da média regional (2% e 1%, respectivamente).
Para onde se dirigem essas exportações? Os parceiros comerciais de sempre. As exportações devem crescer para a China (6%), Estados Unidos (4%) e União Europeia (3%). Preocupa que as exportações intrarregionais cairiam, pelas projeções, em 5%. Com isso, de acordo com a CEPAL, o coeficiente de comércio intrarregional deve sofrer um decréscimo: de 14% em 2023 para 13% em 2024. Destaque para os serviços: a CEPAL projeta que o valor das exportações regionais de serviços deve fechar o ano com aumento 12%, em 2024, impulsionadas pelo turismo e pelos serviços modernos fornecidos digitalmente. As importações regionais de serviços devem avançar em apenas 1% de acordo com o baixo dinamismo da atividade econômica.
Os principais parceiros comerciais da América Latina e Caribe são os Estados Unidos (EUA) e a China.
Nos EUA, a atividade econômica vem se comportando relativamente bem, graças a um conjunto de medidas tomadas pela administração Biden. As vendas estão robustas, os preços das ações subindo, e o investimento doméstico na produção de chips deu novo ânimo à economia. Mr Trump, o novo presidente eleito, reclama de barriga cheia. A economia de guerra, incrementada com as guerras na Ucrânia e no Oriente Médio (Israel e Gaza), favorece aos Estados Unidos, grande mentor de conflitos travados em terras alheias. Ganha enquanto fornecedor e financiador de todo tipo de equipamento de uso bélico. Óbvio que essa situação leva ao aquecimento da economia norte-americana e à manutenção de preços rígidos. A inflação americana continua alta. Do lado das notícias ruins houve uma gripe aviária que aumentou os preços dos ovos e há as ameaças de aumento de todo tipo de restrições ao comércio exterior via tarifas de importação anunciadas com toda pompa pela administração Trump, que terá início amanhã, dia 20 (segunda-feira), com foco principal sobre a China mas que repercutirá sobre o mundo inteiro.
A China é hoje a maior importadora de commodities como petróleo e minério de ferro, por causa do modelo econômico de investimento do país em imóveis e infraestrutura que dá sinais de esgotamento. O recente desarranjo no mercado imobiliário chinês, no entanto, impacta esse resultado na medida em que, premida pela crise, a China passou a desacelerar e a demandar menos desses produtos de seus parceiros históricos. Um ciclo se encerra e a China dá sinais de que se voltará para o seu mercado doméstico. Os investimentos em infraestrutura e logística mundo a fora continuarão com a Iniciativa Cinturão e Rota (BRI), abarcando cada vez um número maior de países e funcionando como estimulador de comércio entre esses países e, principalmente, entre eles e a própria China.
Foi com esses cenários que as duas maiores economias do mundo fecharam o ano de 2024.
A divulgação das estatísticas do comércio exterior da China em matéria do New York Times,em12/01/25, intitulada “O superávit comercial da China atinge o recorde de cerca de um trilhão de dólares”, assinada por Keith Bradsher, pegou todos de surpresa e foi reproduzida pela imprensa mundial: a China havia exportado quase US$ 1 trilhão a mais em produtos do que importara em 2024. Mercadorias e serviços chineses da ordem de US$ 3,58 trilhões invadiram países industrializados e em desenvolvimento, em contraste com importações avaliadas em US$ 2,59 trilhões, gerando um superávit de US$ 990 bilhões. Um recorde mundial, mesmo para o século passado nos períodos que sucederam as grandes guerras mundiais, lembrando que após a II Guerra, a Europa estava devastada levando à supremacia norte-americana e a ascensão do dólar como moeda hegemônica mundial. O superávit chinês mais alto até então tinha sido de US$ 838 bilhões, em 2022. Em parte, por conta desse resultado surpreendente a China cresceu, em 2024, 5%, um pouco a mais do que os 4,8% projetados pelo Fundo Monetário Internacional.
O que pode estar por trás desse estrondoso superávit de quase um trilhão de dólares? Talvez antecipação de compras por seus inúmeros parceiros, inclusive os EUA, temendo o início do governo de Trump nesta segunda feira. A guerra comercial que se avizinha com o protecionismo anunciado por Trump, embutido em suas promessas de taxar as exportações chinesas em 60%, já iniciou, e a China saiu na frente. Talvez a mudança no modelo de desenvolvimento chinês que com a renda concentrada em níveis maiores do que os desejados a la socialismo chinês e a renda média aumentado aquém do necessário, tenha provocado uma crise de realização na China, com subconsumo de manufaturados. A crise do mercado imobiliário desempregou milhões de trabalhadores e afetou o consumo de manufaturados no mercado doméstico. As incertezas geradas pelo desemprego impactaram o consumo das famílias que perderam poupança e se comportam de forma relutante. A mudança para novos empregos em setores que vão de painéis solares para carros elétricos e produtos que utilizam tecnologias sofisticadas não se dá da noite para o dia, leva algum tempo. A efervescência das exportações chinesas contrasta com a crise interna. Países em desenvolvimento temem a concorrência com a China que produz a custos menores dada a abundância de mão de obra barata e, em decorrência, custos de produção mais baixos.
Qual o quadro que se vislumbra para o Brasil e para a América Latina e Caribe que têm EUA e China como seus maiores parceiros comerciais, no cenário pós Trump, da propalada “guerra comercial” entre os dois gigantes da economia mundial?
No Brasil o cenário pré Trump, em 2024, apresentava boas perspectivas para 2025, visto pelas lentes de economistas não convencionais: superávits sucessivos na balança comercial, aumentos de renda média, disposição da população para gastar mais nas festas de fim de ano e um impulso grande ao turismo interno. A indústria dando seus primeiros passos no sentido de reações positivas aos estímulos da neoindustrialização o que se refletia em um PIB que crescia a taxas acima das previstas. As reuniões do G20 e olhos voltados para BRICS+ e para a COP 30, em 2025, consolidavam sua liderança no cenário internacional. O lado real da economia dava mostras de um crescimento mais estável quando veio o movimento que explodiu o dólar nas últimas semanas de dezembro alimentado por declarações sucessivas de Roberto Campos Neto, ainda presidente do Banco Central, em relação ao “quadro fiscal”.
A América Latina e Caribe, apesar da ascensão de quadros de extrema direita e alguns percalços em relação ao seu processo de integração, frente à China se encontram em situações parecidas com o Brasil. Ameaçados pela invasão de produtos manufaturados chineses cada vez mais sofisticados, mas, ao mesmo tempo, salvos pelo mercado extraordinário para nossas exportações, especialmente de alimentos e commodities de toda espécie. O momento requer cautela. O gargalo de logística e infraestrutura é fato que atravanca o crescimento do comércio na região, tanto intra como inter-regionalmente. É uma oportunidade para negociarmos com a China em bloco, de forma mais coordenada possível, para obter os melhores resultados para a região em termos de investimentos em logística e infraestrutura. Os investimentos chineses na região alavancam empregos e ampliam as trocas comerciais. São uma saída para reverter as projeções de quedas no comércio intrarregional conforme relatório apresentado pela CEPAL. Rever posições em relação a BRI se fazem necessário, assim como avançar em relação ao processo de integração na região. Precisamos tratar a questão politicamente lembrando que a guerra comercial é com os EUA de Trump e não com o mundo em desenvolvimento.
Maria Luiza Falcão Silva é economista (UFBa), MSc pela Universidade de Wisconsin – Madison; PhD pela Universidade de Heriot-Watt, Escócia. É pesquisadora nas áreas de economia internacional, economia monetária e financeira e desenvolvimento. É membro da ABED. Integra o Grupo Brasil-China de Economia das Mudanças do Clima (GBCMC) do Neasia/UnB. É autora de Modern Exchange-Rate Regimes, Stabilisation Programmes and Co-ordination of Macroeconomic Policies: Recent experiences of selected developing Latin American economies, Ashgate, England/USA.
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