Em maio de 2023, Arthur Lira, presidente da Câmara, sentia-se o próprio Rei Arthur. Em Nova York, disse que o Brasil “é um país de sistema presidencialista em que quem manda é o Parlamento”. De volta a Brasília, estava disposto a detonar, por meio de uma votação, o desenho que o presidente Lula propusera, na posse, para o ministério: “É importante que as pessoas saibam que a realidade do Congresso não é mais a mesma”. Uma decisão do Supremo Tribunal Federal por aqueles dias em relação a um processo capaz de transformá-lo em réu levaria o deputado a baixar um pouco a bola. Idem uma operação da Polícia Federal que atingiria gente próxima a Lira, em um rolo de desvio de verba pública para escolas de Alagoas, seu estado natal.
O mundo deu voltas de lá para cá. Flávio Dino, ministro da Justiça em 2023, agora é juiz do Supremo e tem nas mãos várias ações contra emendas parlamentares, fontes do poder de Lira e do senador Davi Alcolumbre. “O método ‘quero, posso, mando’ destrói as instituições, em face da ausência de moderação, sobrepujada por excessos”, escreveu Dino em 14 de agosto, em uma liminar contra o “orçamento impositivo”. Em 2015 e 2019, o Congresso havia mudado a Constituição para obrigar o governo a pagar obras inseridas por parlamentares, de forma individual ou coletiva, no orçamento. Para desespero de Lira, Alcolumbre e cia., os outros dez togados do STF referendaram a liminar. Endossaram ainda outras duas liminares de Dino contra as “Emendas Pix”, método inventado pelo Congresso para enviar, sem controle, verba a estados e municípios.
Armou-se uma crise entre os Três Poderes. Lira fez andar uma mudança constitucional que permite ao Congresso anular decisões do STF. Na noite da segunda-feira 19, reuniu-se com o presidente Lula. Na terça-feira 20, foi juntamente com o colega do Senado, Rodrigo Pacheco, e o chefe da Casa Civil, Rui Costa, ao Supremo para conversar com os integrantes da Corte. Firmou-se um acordo. O orçamento impositivo será ressuscitado, mas terá de passar por ajustes no tamanho e no conteúdo. Na prática, o governo volta a ter algum poder sobre as emendas. Os critérios sobre obras a serem financiadas, procedimentos de repasse de recursos e de rastreabilidade do dinheiro serão negociados pelo Legislativo com o Executivo até o fim de agosto. Até lá, segue em vigor a liminar de Dino. Ela será revogada caso as negociações deixem satisfeitos os dois lados da mesa. O mesmo vale para as duas liminares sobre as “Emendas Pix”.
O presidente da República tornou-se refém de um Parlamento irresponsável, diz a ação do PSOL acatada pelo Supremo
As emendas parlamentares somam 49 bilhões de reais no orçamento de 2024, dos quais dois terços têm caráter impositivo, eis os motivos da crise. O gigantismo financeiro e a obrigação de o governo pagar 33 bilhões neste ano, 67% do total, dificultam, e muito, a vida do Palácio do Planalto. As liminares de Dino cumpriram uma espécie de profecia do líder de Lula no Senado, Jaques Wagner. Em um café de fim de ano com jornalistas em dezembro de 2023, o senador havia comentado, a propósito da quantia reservada às emendas e da força que elas davam ao Congresso: “Eu não vou chamar ninguém para a briga. (Mas) Em algum momento, vai ficar impossível (governar)”.
Estudo do economista Marcos Mendes, consultor do Senado, constatou que o Brasil está muito à frente dos países da OCDE quando se trata de autorizar congressistas a incluir obras no orçamento. Aqui, as emendas representam 20% das despesas manejadas livremente pelo governo. Nos Estados Unidos, são 2%. “O fato é: sequestraram o orçamento. Como que se planeja a política em saúde e educação se bilhões de reais são destinados sem transparência?”, pergunta Glauber Braga, deputado pelo PSOL.
O partido de Braga moveu, em 8 de agosto, uma ação direta de inconstitucionalidade contra as emendas impositivas. A mesma legenda tinha acionado o STF contra o “orçamento secreto” em 2021. Por conta da ação daquele ano, Dino tomara decisões recentes para tentar fazer com que fosse obedecido o julgamento de 2022 que decretara a morte dos “segredos”. E foi na ação de agosto que, referendado pelos colegas, deu a liminar contra as impositividades. Permitir ao Congresso mandar o governo pagar certas obras, afirma a ação do PSOL, “representa grave prejuízo à efetividade das políticas públicas nacionais, com a pulverização dos investimentos públicos, a precarização do planejamento estratégico dos gastos e a perda progressiva de eficiência econômica, tudo em detrimento do interesse público”. Segundo a ação, o presidente da República “tornou-se refém” de “um parlamentarismo silencioso, poderoso, mas absolutamente irresponsável”.
Os advogados do PSOL gostaram do acordo da terça-feira 20, apesar de as emendas impositivas terem ressuscitado. Acreditam que, pelos termos, elas não funcionarão mais como tem sido há quase uma década e que “o refém” foi libertado. Na ação, eles haviam apontado ainda uma situação interessante por trás do papel das emendas. A proibição de dinheiro empresarial para campanhas políticas, uma decisão de 2015 do Supremo, foi contornada pelos congressistas via emendas. Deputados e senadores enchem os cofres de prefeitos e governadores aliados e, em troca, estes agem como cabos eleitorais dos legisladores. Não que o método inexistisse antes das emendas impositivas, mas o enorme volume financeiro reforçou, e muito, o mecanismo. “Por que alguém apresenta emenda e não quer que seja publicizada, se é feita para ganhar apoio político?”, perguntou Lula, em 16 de agosto, em entrevista a uma rádio gaúcha.
A decisão de Dino sobre “orçamento secreto” ainda não foi examinada pelos colegas de Supremo, ao contrário das liminares sobre “orçamento impositivo” e “Emendas Pix”. O “orçamento secreto”, tipo específico de emenda, tem sido escrutinado pela Controladoria-Geral da União, por ordem do magistrado. Os resultados devem aparecer em fevereiro ou março próximos. O trabalho da CGU tem potencial para revelar bandalheiras quando houver eleições para presidente da Câmara e do Senado, ou elas tiverem acabado de ocorrer. Bandalheiras que aconteceram muito no Maranhão, o estado de Dino. Um antigo colaborador do ministro diz que, como governador do estado de 2015 a 2022, o hoje magistrado viu de perto como as emendas têm se prestado a malfeitos. Há histórias, noticiadas na mídia, de recursos demais enviados para bancar consultas médicas e extração de dentes em cidades maranhenses nas quais há população de menos. Aconteceu nos municípios de Pedreiras e de Lago dos Rodrigues, por exemplo. Juscelino Filho, deputado pelo União Brasil e ministro das Comunicações, é um rolo maranhense. Aprontou com emendas no governo Bolsonaro, segundo a Polícia Federal. Na condição de deputado, diz a PF, Filho separou verba do orçamento para a estatal Codevasf pavimentar ruas na cidade de Vitorino Freire, administrada por sua irmã, Luanna Rezende. A empreiteira da obra, a Construservice, tem como sócio oculto um amigo do ministro, Eduardo José Barros Costa, o Eduardo DP. Os recursos saíram de Brasília via Codevasf, chegaram a Vitorino Freire e uma parte foi parar no bolso da família de Juscelino Filho, conforme o inquérito.
O ministro só prestará contas ao Supremo caso o procurador-geral da República, Paulo Gonet, apresente uma denúncia. O relator do processo no STF é justamente Dino. Na hipótese de haver denúncia, Lula demitirá o ministro. Um dos padrinhos da chegada de Filho ao primeiro escalão é Alcolumbre, senhor do “orçamento secreto” ao lado de Lira. O senador é alvo no Supremo de uma acusação de “rachadinha” em seu gabinete. O relator do caso, que corre em sigilo, também é Dino.
A distribuição de emendas está no centro de dezenas de escândalos investigados pela PF
Outro conterrâneo do juiz a estrelar enredos policiais por causa de emendas é Josimar de Maranhãozinho, chefe do PL no estado e o terceiro deputado mais votado por lá. Uma operação da PF em 2021, a Descalabro, revelou um esquema de desvio de verba de emendas na área da saúde. De acordo com a polícia, o deputado mandou dinheiro para cidades do Maranhão e, no fim das contas, ficou com uma parte, por meio de uma arquitetura a contar com empresas de fachada e licitações fajutas. A PF filmou-o com maços de dinheiro nas mãos.
Se Juscelino Filho abasteceu o cofre da irmã prefeita, Josimar fez igual, conforme outro inquérito da PF. A cidade chama-se Zé Doca e a prefeita, Maria Josenilda Cunha Rodrigues. Só não está claro se, nesse episódio, a verba também provinha de emenda ou apenas pertencia ao cofre da Codevasf. Pelas apurações da Operação Engrenagem, dinheiro da estatal bancou até a escola de filhos de Josimar. É outra conclusão policial à espera do pronunciamento de Gonet. Aliás, o procurador-geral ter