Alta das despesas com juros supera “gasto extra” com IOF em 12 vezes
por Lauro Veiga Filho
Há uma generosa dose de hipocrisia no debate e nas críticas endereçadas por analistas e pela grande imprensa à decisão da equipe econômica de aumentar as alíquotas do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), não apenas em relação ao impacto direto da medida sobre empresas e, parcialmente, sobre cooperativas de grande porte, transações com dólar (e outras moedas estrangeiras) e algumas formas de aplicação em fundos de previdência complementar, a exemplo do Vida Garantidos de Benefícios Livres (VGBL). Mas também em relação às mudanças na forma de cobrança do imposto, considerando sua linha no tempo, o que tende, em alguns casos, até mesmo a desautorizar a gritaria claramente desproporcional promovida pela mídia corporativa e entidades empresariais.
A “esquadrilha austericida” ocupou-se imediatamente de tratar o aumento do imposto como abusivo, em mais uma demonstração do (suposto) descaso da equipe econômica em relação ao cenário fiscal (a despeito do salto de 154,2% no superávit primário no primeiro trimestre, já descontada a inflação). Nessa visão muito enviesada, a correção do IOF – ainda sujeita a alterações de rumo, dada a pressão crescente do setor corporativo, incluindo o sistema financeiro – demonstraria que o governo não teria a menor disposição para cortar despesas e assim frear a “gastança”, o que seria o caminho mais indicado para fazer o famigerado ajuste fiscal e recuperar o equilíbrio entre receitas e despesas.
Obviamente, a gastança dos juros continua fora do cardápio reclamado pela “esquadrilha de austericidas”. Numa aproximação feita por este espaço, tomando dados oficiais, as despesas com juros das empresas e pessoas físicas registram elevação de R$ 671,30 bilhões em 12 meses, ou seja, um gasto adicional praticamente 12,4 vezes maior do que o impacto a ser gerado pelo aumento do IOF.
Nas estimativas do Ministério da Fazenda, o aumento do IOF sobre uma série de operações deverá gerar uma arrecadação adicional de R$ 54,0 bilhões em 12 meses, caso não ocorram alterações no trajeto com novas mudanças naquela taxação. Ressalva feita, a comparação com o aumento das despesas de empresas e famílias com o pagamento de juros ajuda a dar uma dimensão mais apropriada aos efeitos do IOF mais alto.
Juros recordes
O que mostram as estatísticas do Banco Central (BC)? Entre março do ano passado e o mesmo mês deste ano, o saldo do crédito ampliado tomado pelas empresas aumentou 14,47% em valores nominais, subindo de R$ 5,731 trilhões para quase R$ 6,560 trilhões. Na comparação com o Produto Interno Bruto (PIB), aquele estoque avançou de 51,6% para 54,7%. O saldo da dívida ampliada das famílias cresceu de R$ 3,885 trilhões para R$ 4,339 trilhões, passando de 35,0% para 36,2% do PIB. Os juros médios no sistema financeiro subiram de 18,88% em março do ano passado para 22,77% em igual mês deste ano nas operações com empresas, atingindo um novo recorde na série de dados do BC. Nas transações com pessoas físicas, os juros médios subiram de 32,83% para 35,38%.
Supondo que a mesma taxa média de juros poderia ser aplicada a todo o estoque do crédito ampliado (lembrando que a média inclui o custo mais baixo do crédito direcionado e as taxas mais salgadas dos recursos livremente contratados no sistema financeiro), as empresas teriam gasto R$ 1,082 trilhão para R$ 1,494 bilhão também entre março de 2024 e idêntico período deste ano, em alta de 38,1%. O desembolso adicional somou, portanto, algo como R$ 411,76 bilhões.
No caso das famílias, os juros teriam consumido perto de R$ 1,535 trilhão nos 12 meses encerrados em março deste ano, diante de aproximadamente R$ 1,276 trilhão nos 12 meses anteriores, numa variação de 20,35% também em termos nominais. O gasto extra chegou a R$ 259,54 bilhões.
Se forem consideradas apenas as operações de empréstimo e financiamento realizadas dentro do sistema financeiro, o impacto teria sido menor, mas igualmente relevante. As empresas teriam desembolsado 29,56% a mais no mesmo intervalo, com os juros saindo de R$ 431,56 bilhões para R$ 559,14 bilhões – um desembolso de R$ 127,58 bilhões a mais. Para as pessoas físicas, que teriam gasto perto de R$ 1,187 trilhão com o pagamento de juros nos 12 meses até março do ano passado, o desembolso cresceu 20,12%, atingindo R$ 1,425 trilhão, ou seja, perto de R$ 238,67 bilhões a mais. Na soma dos dois segmentos, o aumento do gasto com juros correspondeu a pouco mais de R$ 238,67 bilhões, significando 6,8 vezes a mais do que os R$ 4,0 bilhões projetados como ganho de arrecadação com a elevação do IOF.
Impactos evidentes
Parece evidente que a mexida no IOF trará impactos para empresas e para as famílias, especialmente para aquelas de renda mais elevada, que investem em mecanismos de previdência complementar e transacionam lá fora em moeda estrangeira ou remetem dólares para o exterior. Presume-se, no entanto, que a medida poderá corresponder à interrupção no processo de elevação dos juros básicos pelo Banco Central (BC), já que o IOF teria o mesmo efeito de encarecer o crédito, afetando a chamada demanda agregada ao desestimular a contratação de empréstimos, levando assim a um esfriamento dos negócios, com consequente redução na pressão de alta sobre a taxa de inflação.
Juros e concentração
Há outro dado que vem sendo deixado de lado nesse debate, já bastante distorcido pela posição das corporações, incluindo a mídia, notoriamente refratária a qualquer decisão deste governo. Ainda nas estatísticas do BC, os gastos com juros do governo geral (União, Estados, municípios e estatais) em 12 meses até fevereiro deste ano somaram R$ 824,559 bilhões, correspondentes a 7,44% do PIB. Nos 12 meses seguintes, o valor cresceu para R$ 1,001 trilhão (8,36% do PIB), crescendo 21,42% (em torno de R$ 176,649 bilhões a mais).
Toda aquela dinheirama teve como destino os detentores de títulos emitidos pelo setor público, beneficiando especialmente os muito ricos e donos do dinheiro no País. Para os recursos arrecadados pelo IOF, ao contrário, a expectativa é de que devam ser destinados a gastos e investimentos do governo federal, reforçando a oferta de serviços e as transferências de renda para a população mais necessitada.
Mais claramente, o gasto com juros agrava a concentração da renda e das riquezas no País, enquanto as despesas financiadas pelo IOF mais alto tenderão a promover alguma redistribuição da renda, amenizando a extrema concentração ainda em vigor. Caso o ganho de arrecadação não seja destinado exclusivamente para aumentar o resultado primário, ou seja, para o pagamento de juros, o que anularia seus efeitos redistributivos.
Linha do tempo
A ofensiva contra o IOF desconsidera ainda que, nas operações com cartões de crédito e débito internacional, compra de moeda, cartão pré-pago internacional e cheques de viagem para gastos pessoais, até 2022, a alíquota do imposto chegava a 6,38% e passou a ser reduzida dali em diante. O decreto eleva o IOF para 3,5%, muito abaixo, como se percebe dos níveis registrados há três anos. O mesmo ocorre com empréstimos externos, que tiveram a alíquota reduzida de 6% para zero depois de 2022 e passarão a pagar 3,5% de IOF nas operações com prazo inferior a 365 dias.
Continuarão isentas operações interbancárias, de importação e exportação, ingresso e retorno de recursos de investidor estrangeiro e a remessa de dividendos e juros sobre capital próprio para investidores estrangeiros (na contramão dos esforços para a taxação de lucros e dividendos aqui dentro). Assim como não será cobrado o imposto sobre aplicações de investimentos de fundos nacionais no exterior. Não será alterado ainda o regime tributário aplicado, sempre no caso do IOF, a pessoas físicas, Pix e demais modalidades sobre as quais já não incidia o imposto.
Numa medida para tentar corrigir injustiças na área tributária, a medida impõe uma taxação de 5% sobre aportes acima de R$ 50 mil destinados a planos de seguro de vida com cobertura por sobrevivência (a exemplo do VGBL). De acordo com o Ministério da Fazenda, “a medida corrige distorção em situações de plano de seguro de vida utilizado, na prática, como investimento de baixíssima tributação para contribuintes de altíssima renda”.
As operações de crédito contratadas por empresas tiveram a alíquota fixa elevada de 0,38% para 0,95%, com alta ainda da alíquota diária de 0,0041% para 0,0082%. A alíquota diária incidirá apenas no primeiro ano do empréstimo. Aqui, o impacto é bem mais relevante. No exemplo apresentado pela equipe econômica, ao tomar um empréstimo de R$ 10 mil ao longo de um ano, o IOF a era recolhido pela empresa saltará de uma média mensal de R$ 15,66 para R$ 32,91 – um salto de 110,15%.
Lauro Veiga Filho – Jornalista, foi secretário de redação do Diário Comércio & Indústria, editor de economia da Visão, repórter da Folha de S.Paulo em Brasília, chefiou o escritório da Gazeta Mercantil em Goiânia e colabora com o jornal Valor Econômico.
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