Por Aline Blaya*
Na segunda-feira, tivemos aula sobre práticas pedagógicas que se estabelecem a partir do desafio inerente ao processo de ensinar alguém a aprender alguma coisa.
Uma das duplas de alunos propôs criar um espaço na Atenção Primária à Saúde com a tarefa de estímulo às práticas corporais voltado às pessoas com dores crônicas.
A ideia era trabalhar a emancipação através da compreensão sobre como funciona a dor crônica e como é possível manejar e viver bem, mesmo convivendo com algum grau de dor.
Comentei que achava o projeto extremamente necessário e que a atividade física havia feito uma revolução na minha vida.
Uma colega na sequência elogiou o grupo e disse que tinha fibromialgia e que achava que a ideia era excelente porque a dor crônica é muito solitária, é descredibilizada e invalidada, inclusive pelas pessoas mais próximas, o que torna o sofrimento ainda maior.
Segundo ela, o grupo seria excelente para que as pessoas vissem que outras pessoas sofrem de forma similar a elas e que quem consegue vencer a si mesmo e fazer atividade física, pode melhorar muito.
Depois falou que havia aprendido comigo em outra disciplina que ler exige disciplina, mas muda a vida. E que agora ia levar para si essa ideia de espaço e que assim que terminassem as disciplinas do mestrado iria voltar para a atividade física.
Parei a aula solenemente e disse que agradecia a deferência, mas sugeria que ela não usasse o mestrado como argumento para protelar algo que era na minha percepção muito mais definidor e importante para a vida dela do que ter um título de mestre em saúde coletiva.
Lembrei a todos sobre a máscara de oxigênio no avião quando há uma despressurização (minha filha diz que essa metáfora é quase um mantra na nossa casa e eu me alegro que seja). Não é possível ser uma boa pesquisadora, não é possível ser uma mãe suficiente, não é possível fazer uma revolução, não é possível pensar criticamente… com dor, com fome, com frio.
A sábia ministra Marina Silva, que foi desrespeitada nesta semana em pleno Congresso Nacional, nos ensinou que o capitalismo nos induz a ter — ter um título de mestre, ter um emprego, ter remédios… E neste processo vamos nos desconectando de nós mesmos e dos que amamos.
Vamos esquecendo de ser, nos desrespeitando e nos desresponsabilizando por nós mesmos, pelos nossos, e por nossas necessidades orgânicas mais básicas e elementares.
Falei para ela, não dê desculpas, não tente agradar ninguém, nem a si mesma, saia mais uma vez da zona de conforto em que o sistema aprisiona você e vá ler, vá ser, vá fazer atividade física, vá estar com outras pessoas que sentem dores crônicas e não me diga que você não tem tempo porque vou pedir para olhar o seu celular para ver quanto tempo você ficou conectada nos últimos dias.
Lembrei a ela, e a todos, que ela “entregará” (como somos todos um produto do capitalismo) uma pesquisadora melhor ao mundo se o primeiro compromisso que ela tiver com a coletividade e com o SUS for cuidar de si mesma.
Foi então que outra aluna pediu a palavra e disse… OK professora, esse discurso é ótimo, mas ele é perverso com a mãe de família que trabalha 10 horas por dia, em dois empregos informais para apenas alimentar os filhos.
Será?
A turma concordou, e lembrou que diante de tantos marcadores sociais de diferença, muitas vezes para uma mãe preta de um filho com deficiência é luxo ter alguém que a ampare para tomar um banho de 5 min.
Questionei a turma: Será mesmo que o discurso é perverso ao dizer para ela que precisa fazer atividade física? Ou será que o capitalismo, em toda sua sofisticação, já moldou tanto nossos pensamentos para acharmos que ela está sozinha e que o melhor dos mundos para ela é tomar um banho de 5 min e se sentir pronta para seguir carregando o sistema inteiro nos ombros (sem reclamar)?
Perverso é idosos terminarem a vida se degladiando dentro de casa por conta da fragilidade, da frustração e da dor crônica, física, emocional e psicológica, depois de terem passado a vida desconexos de si mesmos e dos seus para dar conta de um modo de produção que mata, sufoca e aliena, ao mesmo tempo que espera que todos aceitem e agradeçam pelo pouco que tem.
Conversamos sobre o quanto essa mãe preta, pobre, provedora e cuidadora precisa saber que não está só e que é seu direito e necessidade básica colocar a máscara de oxigênio em si mesma para então ser protegida e proteger aos seus.
Precisamos entender que não é egoísmo ou negligência querer correr ou fazer as unhas. O desejo dela(s) é a revolução. A revolução está em ela saber que mesmo que lhe dêem a oportunidade de ir a uma academia, não se sentirá disposta e com “vontade”, e que isso nãoacontece porque ela é preguiçosa e sim porque o mundo é perverso e espera que ela se contente com o banho de 5 min.
E o pior é que o mundo seguirá sendo perverso com as suas filhas, caso ela não desligue a porcaria do celular e vá construir estratégias com outras mulheres para que possa correr, ou pular corda com as crianças, ou dançar, ou caminhar na volta da casa.
Enquanto não nos colocarmos diante do mundo, juntas, emocionalmente e fisicamente fortes, não seremos capazes de colocar nossas próprias máscaras de oxigênio e precisaremos nos contentar com pouco.
Desde sempre as mulheres se aquilombam e protegem umas às outras, contudo, desde muito tempo o patriarcado e o racismo nos ensinam a colocar o sarrafo lá embaixo, a buscar contentamento em migalhas e a seguir “no nosso lugar”, como foi dito a Marina Silva essa semana.
Também nos ensinam a julgar e a limitar nossos lugares em narrativas perversas que nos aprisionam sem que percebamos.
Sim, falo para a mestranda, branca, privilegiada: responsabilize-se e faça.
Falo para a mãe preta, periférica, exausta, responsabilize-se e faça.
Façamos, porque as mãos estão dadas e algumas de nós irão segurar a barra para que você possa sonhar e fazer.
Marina Silva é o triunfo de todas nós, de todas que não aceitaram nenhum lugar imposto, não aceitaram a malária, a desnutrição, a barreira de acesso à educação… e que mesmo quando todo mundo achava que era perverso para a menina do Acre querer sair da floresta, ela foi lá e fez. Uniu-se aos seus e fez até tomar para si o lugar que lhe pertence, o de Ministra de Estado.
A você, Marina Silva, agradeço por ter colocado a máscara de oxigênio em si mesma e consecutivamente nos seus. Você permitiu e segue permitindo que todas nós possamos seguir respirando, fazendo atividade física, terapia, as unhas e a revolução para que nossas filhas não estejam esperando ter vaga no grupo de manejo de dores crônicas.
Dedico este texto à Ministra Marina Silva e aos estudantes do Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva da UFRGS, pessoas que incansavelmente buscam ser.
*Aline Blaya Martins: Professora da Faculdade de Odontologia e do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
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