Um aspecto cultural do capitalismo tardio é a relativização do conceito, antes dogmático, de divindade. Se pegarmos um quadro do pintor de ícones russo Mikhail Shishkin, há uma mensagem que representa o espírito da sociedade e do pensamento religioso de seu tempo: a falta de perspectiva no traço de pintor era uma forma de aprisionar o tempo e representar o imutável e o eterno.
Mas o capitalismo, desde suas origens no renascimento, com o avanço da perspectiva, introduziu o espaço e o tempo na pintura e começou a mudar aos poucos a maneira como as sociedades representam a imortalidade da divindade.
Atualmente, a ideia de sagrado foi cooptada, instrumentalizada e distorcida, tornando-se uma forma bastante vulgar de expressão desse sentimento e, ao mesmo tempo, da decadência do próprio sistema.
Ela abdicou completamente da representação pictórica para ser uma manifestação verborrágica espetacularizada em palcos. O sacerdote, antes de tudo, precisa ser um ator que realiza uma performance com gestos e falas exageradas.
A Bíblia, objeto de cena, com sua capa usualmente preta, compõe a mise-en-scene de uma espécie de drama do cotidiano: as mazelas das doenças, da falta de dinheiro e dos relacionamentos perversos. O pictórico se tornou teatro. Longe do sublime, do transcendente e do épico, claro. Mais próximo da farsa certamente.
Há um texto do pensador alemão Theodor Adorno intitulado Capitalismo como Religião que é muito bom para entender o sagrado no atual momento histórico. Trata-se de um apanhado de ideias que certamente comporiam algo mais estruturado se Adorno não tivesse morrido em 1969.
Em um dado momento, ele diz: “no ocidente, o capitalismo se desenvolveu como parasita do cristianismo – o que precisa ser demonstrado não só com base no calvinismo, mas também com base em todas as demais tendências cristãs ortodoxas -, de tal forma que, no final das contas, sua história é essencialmente a história de seu parasita, ou seja, do capitalismo”.
Nesse momento de crise aguda do sistema econômico, percebemos igualmente decadente a manifestação cultural daquilo que chamamos de divindade, que beira o grotesco. Nesse processo, nota-se também um afastamento do monoteísmo que não significa um retorno ao politeísmo de outras manifestações religiosas, antigas ou atuais.
Ao contrário, um deus que é, ao mesmo tempo, mercadoria e mercado, manifesta-se como um produto. Imagine uma prateleira de supermercado cheia de marcas de cerveja. São dezenas de marcas. Mas, no interior de cada garrafa, com uma ou outra variação no sabor, apenas cerveja.
Esse é o politeísmo do capitalismo tardio. Em comum, cada marca de deus compete uma com a outra apenas para defender uma falsa liberdade de escolha, uma falsa sensação de pertencimento e uma falsa esperança.
No fundo, existe apenas para defender que os interesses mais mesquinhos já manifestados por seres humanos neste planeta se mantenham imutáveis. Veja-se, por exemplo, o deus dos sionistas. Um parasita, utilizado para justificar atrocidades que só o capitalismo em decadência é capaz de exaltar.
Ou o deus da religião norte-americana, um tipo peculiar de parasitismo que foi exportado para o mundo todo e que foi capaz de criar uma geração de capitalistas que vendem absolutamente nada, principalmente em países como o Brasil.
Se houvesse algum tipo de desenvolvimento social e econômico, até poderia ser algo positivo. Mas é um espetáculo do nada absoluto, que sobrevive em palcos televisivos sugando mercadorias como a miséria, o sofrimento e a violência como fontes primárias de seu lucro.
Esses deuses do capitalismo tardio ainda se apresentam em outras tantas marcas, com slogans extraordinários e rasa teologia. Essas manifestações ilusórias e de mau gosto são sintomas a mais de um sistema à beira de seu fim.