Algumas considerações sobre história, democracia e desenvolvimento
por Jairo Marchesan, Cíntia Neves Godoi e Sandro Luiz Bazzanella
O processo de colonização do Brasil, desde 1500, operou a partir da tríade composta pelo Estado Português, pelas Companhias Colonizadoras e pela Igreja Católica. Tal processo, desde o princípio, imprimiu relações de poder – sociais, políticas e econômicas – autoritárias e violentas sobre os povos originários (indígenas) e, depois, sobre os povos trazidos à força da África, que foram brutalmente escravizados. Assim, tais relações de poder se deram, primeiramente, da metrópole sobre a colônia, e, posteriormente, dos donos das Capitanias Hereditárias, incluindo os demais latifundiários, aos referidos povos, com uso de violência e colocando obrigatoriamente uma sociedade em formação a serviço dos colonizadores e seus asseclas.
Paralelamente, citam-se os poderes autoritários da Igreja Católica sobre os mesmos povos, em conformidade com a barbárie exploratória dos Estados colonizadores imperialistas europeus ocidentais, com argumentos que de evangelização, catequização e a necessária cristianização destes para salvá-los do mal do inferno.
Neste contexto, a escravização explícita e legalizada pelo mundo dito Ocidental e pelo Estado Português, avalizada pela Igreja por aproximadamente 400 anos, provocou sofrimentos físicos (torturas, exaustão, morte) e psíquicos (apartados de sua terra de origem, de sua comunidade, de seus familiares, de suas crenças e tradições, submetidos inclusive à exploração sexual, entre outras barbáries), e é por isso mesmo que não pode ser negligenciada, muito menos esquecida!
Nesta mesma direção, os gritos oriundos do sofrimento humano da época continuam a ecoar Brasil afora, pois agora estão expressos e visíveis nas atuais condições de desigualdades, na exclusão social e na contínua violência sobre a população trabalhadora informal, precarizada, intermitente e plataformizada. É condição intrasferível, urgente e necessária lembrar que o Brasil foi o último país da América a proclamar a abolição da escravatura, que ocorreu não por compaixão pelos sofrimentos imputados aos negros nestas terras no percurso da escravidão, mas, para atender a lógica de acumulação do capital promovida pelo capitalismo, que naqueles tempos era capitaneado pela Inglaterra e na atualidade é conduzido pelo imperialismo do Ocidente coletivo – Estados Unidos e Europa Ocidental – sobre os demais povos do mundo.
Assim, o país foi se constituindo e se conformando no contexto de relações autoritárias e violentas de poder, expressas no dizer popular que continua sendo reproduzido: “manda quem pode, obedece quem precisa”. Ainda: relações de poder, sejam elas patriarcais, machistas, raciais, dentre outras, se estenderam desde o Estado, a Igreja, a família, instituições e demais instâncias da sociedade.
Nesta mesma direção, as relações de poder – marcadas pela violência, pela exploração e ausência do compromisso de constituir uma sociedade e Estado soberano – impetradas, primeira e diretamente pelo Estado metropolitano, mais tarde, reproduzidas pela lógica dos governos imperiais aqui constituídos (1822 a 1899), conduzidos por Dom Pedro I e Dom Pedro II, e posteriormente no período republicano, continuam a manifestar-se na atualidade.
A partir de 1889 a elite brasileira se organizou e fundou a República, mais uma vez alicerçada pela aristocracia e sem a participação popular. Pode-se dizer que, desde a formação ou constituição do Estado brasileiro, este foi apropriado, senão sequestrado pelas elites, que operaram de acordo com seus interesses e para sustentar seus privilégios. Foram, portanto, governos oligarcas, extremamente elitistas, constituídos por grandes latifundiários (elite agrária), que reproduziram relações impositivas e violentas de poder.
Essa lógica se reproduz sistematicamente, desde os períodos colonial, imperial e republicano até a atualidade, e, nas vezes em que os negros, indígenas e trabalhadores se manifestaram ou se levantaram para contestar o status quo e o modus operandi da estrutura societária e do governo, ou mesmo quando tentaram participar da vida política, exigindo melhores condições de trabalho e renda, justiça social e qualidade de vida, sofreram duras e reativas respostas por parte do Estado controlado por oligarquias rurais e urbanas, mediante golpes de Estado, implementação de ditaduras militares, de massacres a lideranças comunitárias, a sem terras e a sem tetos, bem como, a promoção de genocídios sobre comunidade indígenas, dentre outras.
Foram dezenas de expressivas revoltas populares que ocorreram Brasil afora, tais como, Palmares, em Alagoas, no século 17; dos Escravos, em 1835, na Bahia; Inconfidência Mineira, em Minas Gerais, no ano de 1789; dos Malês, em 1835; Canudos, na Bahia, em 1893; Contestado, em Santa Catarina, entre os anos de 1912 e 1916.
Ademais, ocorreram centenas de movimentos da classe trabalhadora questionando as relações de poder, condições de trabalho, de vida, educação, acesso à saúde, entre outros. É preciso, portanto, continuar a insistir, informar e relembrar a sociedade brasileira, bem como, dizer e reafirmar, de modo escrito, falado ou por outros meios de comunicação, que as relações de poder no Brasil caracterizaram-se por serem autoritárias, impositivas, associadas à violência e brutalmente reprimidas pelas forças do Estado, inclusive com torturas e mortes, principalmente às lideranças dos movimentos sociais, comunitários, indígenas e de trabalhadores.
Assim, em razão desta conjuntura, a maior parte da população, historicamente e socialmente foi desconsiderada, subestimada e negada a participar da vida política e pública, e, além disso, privada de educação, saúde e demais condições adequadas de vida.
As elites brasileiras, desde o período imperial, passando pela República até a atualidade, de maneira geral nunca tiveram projeto de país, de nação e de desenvolvimento socioeconômico a ser compartilhado com a massa dos trabalhadores que compõem o tecido social brasileiro em sua quase totalidade.
Por estas e outras condições e circunstâncias, historicamente situadas, a sociedade brasileira sofre violências internas e externas, foi alijada de seus direitos fundamentais por uma elite que se curvou, obedeceu e atendeu os interesses metropolitanos, primeiramente os europeus, e, posteriormente, do capital estadunidense. Além disso, tais elites, detentoras do capital, fizeram uso de ferramentas de comunicação – jornais, rádio, televisão e, mais recentemente, as redes sociais –, constituindo-se e conformando-se numa sociedade impossibilitada de reagir à imposição da condição de dominação.
No entanto, de maneira histórica, a trajetória da sociedade brasileira demonstra que, mesmo sob tais condições de dominação, foi capaz de criar o maior partido político de esquerda da América Latina e um dos maiores do mundo, ter o maior movimento popular da América Latina – MST, eleger o primeiro Presidente da República de origem operária na década de 2000, reeleito posteriormente, ter eleito a primeira mulher à Presidência em 2010 e reeleita em 2016, integrando o país a outros poucos que tiveram mulheres candidatas e, ainda, ao menor número dos países que tiveram mulher eleita e até mesmo reeleita.
As últimas eleições expuseram esforços de comunidades que tiveram que caminhar por quilômetros, mesmo com rodovias fechadas e homens armados, e com impedimentos diversos para que não votassem, e mostraram, novamente, a vontade de um povo de se fazer presente nas urnas. Estes, dentre outros fatores expõem a coragem, força e a luta, a duras penas e sangue, deste povo e desta sociedade por um país diferente das violências perpetradas pelas elites coloniais e de seus remanescentes na atualidade.
Ainda nesta direção, é preciso insistir que a violência imputada pelas oligarquias rurais e urbanas sobre o conjunto da população pauperizada e que se apresenta como a base estendida da sociedade brasileira, foi e é de tal ordem, que representantes da classe média destilam ódio contra os contingentes de trabalhadores precarizados e contra os programas sociais de assistência a segmentos sociais em situação de vulnerabilidade. Atribuem aos pobres as responsabilidades pelas dificuldades de desenvolvimento enfrentadas pela sociedade brasileira. Reclamam a meritocracia diante de políticas públicas de cotas e de promoção social dos menos favorecidos.
O fogo dos infernos os consome por dentro quando ouvem discursos que preconizam a urgência da justiça social. Vociferam pela volta da ditadura e dos militares no poder. Seguramente, não são poucos aqueles que se disponibilizam para instalar tribunais de exceção, tortura e execução de representantes populares que organizam os precarizados trabalhadores em torno de pautas que minimizem a violência do capital contra o trabalho.
Mesmo com todo este esforço, o que se tem, majoritariamente, é a reprodução de um modus operandi de centralização das relações de poder, que vão desde a família, passando pela escola, pelas instituições religiosas, de classe, privadas, até as esferas governamentais.
Neste contexto, observa-se que a sociedade, a todo momento, é cerceada de seus direitos, seja com episódios de fechamento de rodovias, como forma de dificultar deslocamentos, seja com assassinatos políticos (Marielle Franco presente!), seja no controle das finanças e do preço dos alimentos, dentre outros aspectos, não estimulada em seus direitos, muito menos convidada a participar da vida política, social ou econômica da qual é fundadora! Capturada na lógica do crédito e débito, restou-lhe a privatização de sua condição de trabalhador precarizado lutando para sobreviver mais um dia, uma semana e ao final mês pagar as contas, e, no dia seguinte, retomar ao Leito de Procusto[1] e, assim, ser consumido em suas forças vitais pela voracidade do capital.
A partir da década de 1970 iniciaram-se as discussões sobre a participação popular nas definições de políticas no Brasil. Com a Constituição de 1988 ficou sedimentada a importância do envolvimento da sociedade na construção de modelos, plataformas e ideias para o planejamento financeiro e de atividades do Poder Público. A partir de então, municípios começaram a se organizar para avançar na condução deste modo de operar.
Na mesma direção, a partir da década de 1990, algumas administrações municipais implementaram iniciativas e experiências de Orçamento Participativo, os quais representaram instrumentos de incentivo para a participação popular na aplicação parcial de recursos financeiros e na tomada de algumas decisões de gestão dos recursos públicos. Outras iniciativas incluíram a constituição de Conselhos, normalmente compostos por representantes de entidades de classe, para a participação das decisões políticas, sejam elas municipais, estaduais ou federais.
No entanto, estas experiências de gestão pública minimamente comprometidas com a participação popular das décadas finais do século 20 não encontram mais amparo diante de administrações públicas burocratizadas e comprometidas com a agenda neoliberal em curso.
Tratam-se, sobretudo, de administrações públicas que incorporam no âmbito público o ideário administrativo da empresa privada. Assim, o prefeito e seus secretários assemelham-se aos empresários e seus gerentes e subgerentes, todos comprometidos com uma administração autoritária e eficaz a serviço da lógica de mercado, em detrimento do espaço público, dos bens coletivos, sobretudo dos interesses da sociedade que se encontra em condições de vida precarizadas.
Por isso mesmo, na escala municipal, sob o ponto de vista das Administrações Públicas, o que se percebe dos gestores são contínuas decisões de gabinete, centralizadas e impositivas quanto à aplicação dos recursos financeiros públicos e sem a participação da sociedade.
Recentemente, o Brasil amargou mais uma tentativa de golpe de Estado, o qual foi gestado, financiado e amparado pelo capital interno e externo, operado pelas elites nacionais e parte do Exército Nacional.
De forma paralela, mais uma vez iludiram a população brasileira com absurdas mentiras, construídas e repetidas sistematicamente, até serem absorvidas, incorporadas ou se tornarem “verdades” para a sociedade.
O evento de 8 de janeiro de 2023, em que ocorreram os ataques às sedes dos Três Poderes da República, foi a expressão de relações de poder, de violência e de destruição do patrimônio público, conduzida por uma sociedade manipulada pelos interesses elitistas nacionais e internacionais. Tal evento foi mais um atentado aos respiros ou soluços da democracia.
Em tal contexto, como pensar em um projeto de desenvolvimento nacional autônomo, independente, soberano e voltado a atender os anseios da sociedade brasileira? O que fazer para que o monstro do fascismo e dos interesses capitalistas imperialistas deixem de prosperar com tanta brutalidade sobre a sociedade brasileira? O que e como podemos fazer para construir ou reconstruir mecanismos de fortalecimento da democracia?
Constata-se que desde o Período Imperial, passando pela instituição da República até a atualidade, as elites brasileiras que se apossaram do Estado e conduziram de forma política e administrativa o Brasil não tiveram interesse, ousadia, muito menos boa vontade e capacidade técnica de instituir no país um projeto de nação e de desenvolvimento socioeconômico, mesmo que dentro da lógica capitalista. Prova disso é o pouco que investiram em universidades, escolas (com educação de qualidade) e centros de pesquisa e tecnologia, bem como, em mecanismos de participação popular. Preferiram, lamentavelmente, submeter-se às orientações, à dependência e aos ditames metropolitanos, ou seja, reproduzindo a vinculação ao colonialismo herdado dos portugueses e, mais recentemente, à geopolítica mundial da globalização neoliberal e ao processo de neocolonialismo.
Assim, quando forças políticas mais progressistas ocupam o governo após eleições, mesmo com composição de coalizão, esboçando movimentos de distribuição de renda e da terra, melhorias para a educação e a saúde, não tardam reações das elites nacionais, em conluio com as internacionais, para a execução de golpes de Estado.
Assim ocorreu em 1964, quando da apresentação das Reformas de Base, que resultou na ditadura militar por longos e duros 21 anos; a partir do ano 2000, com os projetos de inclusão social e que redundou no golpe de Estado no ano de 2016; e, recentemente, no ano de 2023, com uma nova tentativa de golpe de Estado, que resultou nos atos financiados pelas elites, com projetos de assassinato, sequestros (com investigações em andamento) e ações que geraram depredação das sedes dos Três Poderes da República.
Em relação ao desenvolvimento, quando de sua apresentação, este vem associado ao estímulo e como reprodução da lógica da extração, produção e consumo, sempre vinculada a uma ordem capitalista que, tradicionalmente, atende aos princípios e às lógicas exógenas ou metropolitanas. Parece, portanto, que estamos fadados ou condenados historicamente a sermos um país dominado, periférico e a serviço dos interesses externos.
Neste contexto e nesta condição, as elites nacionais agem como fieis mediadoras ou interlocutoras para a reprodução dessa lógica do subdesenvolvimento e da subserviência. Logo, essa mesma elite age sistematicamente com artifícios, falsas narrativas e com ações que impedem que a população possa ter consciência de classe, conhecimento da realidade e educação. Desenvolvem mecanismos para ludibriar ou manipular a sociedade por meio de mentiras, para que esta não tenha ou não tome consciência de sua condição e realidade, permanecendo em crise, dividida, e sem capacidade de organização e mobilização para lutar por melhores condições de vida.
Diante deste quadro, não temos nem democracia e nem desenvolvimento, e continuamos reproduzindo a lógica das metrópoles sobre as colônias – do extrativismo, da apropriação dos bens materiais e da acumulação financeira às custas da exploração dos trabalhadores.
É oportuno, senão urgente e necessário, conhecer e reconhecer nossa história e ampliar o debate referente às questões que afligem a sociedade, sobretudo a partir da tríade história, democracia e desenvolvimento e suas relações com as atuais condições e circunstâncias do Brasil.
Autores:
Dr. Jairo Marchesan – Geógrafo
Dra. Cíntia Neves Godoi – Geógrafa
Dr. Sandro Luiz Bazzanella – Filósofo
[1] O uso da terminologia “Leito de Procusto” é uma metáfora relativa à violência do capitalismo que consome diariamente a vida, as forças vitais de indivíduos, comunidades e povos. “Conta a história que Procusto oferecia uma cama de ferro para seus hóspedes deitarem e, durante o repouso noturno, ele amordaçava e amarrava suas vítimas no leito. Desse modo, se eventualmente a pessoa fosse maior que a cama, Procusto cortava os pés e a cabeça da vítima”
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