Alexandre e Dino: os leões de Brasília e o golpismo do Congresso
por Aldo Fornazieri
Todos aqueles que atuam politicamente deveriam saber que a natureza da política e do poder é ambivalente, estruturada numa série de pares paradoxais. Deveriam saber também que a moral da política e do poder não se define por regras receituárias, mas que muda de acordo com as variações interdependentes entre objetivos e circunstâncias. Essas são regras universais do agir político estabelecidas por Maquiavel.
Dentre os principais pares paradoxais estão a liberdade/autoridade, satisfação/temor, concessão/advertência, convencimento/imposição, coerção/consenso e lei/força. Os polos de cada um desses pares podem ter outras combinações. No jogo político e de poder quase nunca um dos polos dos pares é aplicado de forma pura. Eles são aplicados de forma combinada, mas com graus diferentes, dependendo sempre das circunstâncias e dos objetivos. O grande líder é aquele que sabe aplicar de forma eficaz as variadas combinações dessas ambivalências, segundo as exigências da realidade.
Para quem governa, o mais importante desses pares é o da lei e da força. Para Maquiavel, o agir pela lei é próprio da natureza dos humanos e o agir pela força – que não é necessariamente violência – é próprio da natureza dos animais. Aos governantes, às vezes, agir pela lei não é suficiente, sendo necessário recorrer à força. Os heróis arquetípicos antigos sabiam dessa regra. Foi transmitida a eles pelo ser mitológico, o centauro Quiron, que era meio homem e meio animal.
Mas o agir pela força implica um novo par: é preciso ser leão e raposa, sabendo usar as características de cada um desses animais, de acordo com as circunstâncias. O leão aterroriza os lobos, mas não sabe evitar as armadilhas. Já a raposa percebe as armadilhas e age com astúcia evitando-as, mas não é capaz de defender-se dos lobos.
Com a ascensão da extrema-direita no mundo e, particularmente no Brasil através do bolsonarismo, a conjuntura e as circunstâncias estão implicadas num jogo mais caracterizado por relações de força. É precisamente isso que Alexandre de Moraes e Flávio Dino perceberam e que o governo foi incapaz de perceber. Daí o comportamento de leões dos dois e o comportamento de gatinho do governo.
Alexandre de Moraes age como um leão no enfrentamento dos golpistas. Existem várias formas e dosagens na aplicação da lei. Existe a forma branda e a forma severa ou a força da lei. Moraes percebeu que o bolsonarismo articula um estado permanente de intenção golpista e de uma propensão compulsiva de violar as leis e a Constituição. Não há como debelar e cortar a cabeça dessa propensão compulsiva agindo de forma branda. Dadas as atuais circunstâncias, agir de forma branda significaria dar vasão a um golpismo continuado, que é praticado pela extrema-direita em todas as partes.
No caso do Brasil, o golpismo continuado está vivo dentro do Congresso, que no caso do julgamento dos golpistas, articula o projeto da anistia e a intenção de dominar o Senado na próxima legislatura para confrontar o STF. Com uma visão clara do que está acontecendo Alexandre decidiu agir com uma estratégia leonina, de forma dura e contundente, sem transigências, porque é preciso deter os ataques bolsonaristas contra a democracia.
As mesmas circunstâncias e a mesma conjuntura percebidas por Alexandre, foram captadas por Flávio Dino ao enfrentar o problema das emendas parlamentares e as ferozes críticas que vem sofrendo por parte de deputados e pelas direções da Câmara e do Senado. Não resta a menor dúvida para qualquer jurista honesto e para qualquer pessoa de bom senso que as emendas secretas são inconstitucionais. Dino tem enfrentado de forma intransigente as manobras golpistas do Congresso, exigindo que a Constituição seja cumprida.
Com o argumento de que o STF usurpa o poder, congressistas, chefiados por Hugo Motta e Davi Alcolumbre, agem em prol de um golpe contra a Constituição ao querer impedir que o Supremo exerça suas funções de controle da constitucionalidade. Ora, em todas as constituições democráticas e republicanas cabe às Supremas Cortes exercer o controle constitucional, seja barrando abusos do Parlamento, seja impedindo abusos do Executivo. Querer que o Congresso seja absolutamente independente para praticar os arbítrios e as violações que quiser, consiste numa prática golpista, pois tudo o que é contra a Constituição é golpe.
Golpe foi, também, o que o Congresso fez com o decreto do governo que aumentava a alíquota do IOF. O decreto legislativo que sustou o decreto do presidente da República é claramente inconstitucional, pois usurpou uma prerrogativa do Executivo que é a de editar decretos de natureza normativa, visando a execução da lei. Os congressistas, liderados por Motta e Alcolumbre, agiram de forma deliberada e consciente contra a Constituição.
Golpe também é o que o Congresso vem fazendo contra o Executivo ao sonegar os instrumentos que este precisa para governar. O Congresso, pela não aprovação de medidas arrecadatórias ou por não aprovação de propostas que reduzem gatos do Estado relacionadas a setores privilegiados das elites, impede que o governo cumpra o preceito constitucional da responsabilidade fiscal.
Na verdade, o Congresso aplica um golpe contra o povo. Impede qualquer medida de justiça fiscal. Age para penalizar cada vez mais os pobres com impostos regressivos e com medidas que visam suprimir direitos dos trabalhadores. O Congresso reclama corte de gastos, mas age vergonhosamente aumentando gastos, como foi a decisão de acréscimo de mais 18 cadeiras de deputados.
Mais vergonhosa ainda é a atitude da bancada do PT: 75% dos parlamentares do partido se juntaram a 90% da bancada do PL para aprovar o aumento do número de deputados. Parte da bancada petista aprovou também a derrubada de vetos do presidente Lula da lei das eólicas, decisão que provocará o aumento da conta de luz para a população. Não resta dúvida que parte da bancada do PT, hoje, faz parte do centrão.
Em outro ocasião afirmei que temos “um Congresso sem pudor e um governo sem rumo”. Podemos acrescentar que temos um Congresso golpista e um governo prostrado. O governo precisa reagir. Precisa abandonar a ilusão de que o país não está polarizado. Se Alexandre e Dino estão certos ao agirem como leões, o governo, por depender do Congresso, precisa agir com inteligência estratégica, ora agindo como leão e ora como raposa. Ora com força e ora com astúcia.
A articulação política e a comunicação do governo continuam desastrosas. O governo continua sem comando político. Lula precisa arrumar o governo para que tenha um rumo político. Deveria fazer a reforma da mal feita reforma ministerial.
Governo e PT são dois atores políticos diferentes. Se o PT tem o dever de apoiar o governo, não pode acomodar-se ao governismo, pois seu papel político é outro. Se o governo deve fazer um jogo ambivalente de confrontação e da negociação com o Congresso, o PT, perdido que está, deveria preparar a militância e os ativistas para uma eleição que será altamente polarizada, de radicalização e confrontação. Acreditar que não será isso e não se preparar para esse cenário, consiste em pavimentar o caminho para a derrota.
Aldo Fornazieri – Professor da Escola de Sociologia e Política e autor de Liderança e Poder.
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