
Alan, 3
por Felipe Bueno
Neste setembro completou dez anos uma imagem que, para além da tragédia que descreve, trazia, pelas suas consequências imediatas, um mínimo de esperança de que o tratamento dado por europeus a refugiados de fora do continente poderia mudar.
Refiro-me à imagem do menino sírio Alan Kurdi, de três anos de idade, flagrado morto pela fotógrafa turca Nilüfer Demir no dia 2 de setembro de 2015. O corpo do garoto jazia no litoral sudoeste da Turquia. Seu destino seria a ilha de Kos, na Grécia.
Em tempos de redes sociais já bastante turbinadas, o clique disparou manifestações que culminaram num ato concreto, o discurso da então chanceler alemã Angela Merkel simbolizado pela frase wir schaffen das (vamos conseguir) abrindo as portas do país a refugiados, não apenas da Síria. As palavras e as ações da então principal – e até agora, a última – grande liderança europeia dos tempos atuais foi interpretada como um sinal inequívoco de que preconceitos e violências contra não-europeus poderiam chegar ao fim.
Não foi o que aconteceu, nem na Europa nem em nenhum lugar do mundo. As fontes habituais continuam produzindo refugiados. As portas nas quais eles e elas batem estão cada vez menos abertas. Muitas, podemos considerar praticamente trancadas.
Mas isso é só um dos aspectos da questão.
Logo no início do texto, destaquei que as redes sociais já eram relativamente turbinadas dez anos atrás. A imagem de Alan correu o mundo. Você, provavelmente, ao consumir algum tipo de noticiário, deve ter passado pela foto. Agora, uma década depois, não seria estranho se você soltasse algo como um “ah, eu me lembro” ao revê-la.
Depois, antes, se esqueceu. Depois, agora, se esquecerá.
E esse é outro aspecto da questão.
Hoje, em 2025, as redes sociais estão muito mais turbinadas. O sereno corpo do menino Alan passou de novo pelos seus olhos dez anos depois. Nilüfer Demir e Angela Merkel voltaram a ilustrar buscas on-line e conversas com inteligências artificiais. Nada disso, porém, foi o bastante. Merkel chegou a assumir, recentemente, que suas decisões de 2015 acabaram ajudando a aumentar a potência da narrativa da extrema-direita alemã (e europeia) nos anos seguintes, culminando no que testemunhamos hoje.
Depois de quinze minutos de tristeza e indignação, vemos que as bolhas não foram furadas, e as médias e longas durações não foram afetadas. A normalização das tragédias é, em si, uma tragédia do nosso tempo.
Felipe Bueno é jornalista desde 1995 com experiência em rádio, TV, jornal, agência de notícias, digital e podcast. Tem graduação em Jornalismo e História, com especializações em Política Contemporânea, Ética na Administração Pública, Introdução ao Orçamento Público, LAI, Marketing Digital, Relações Internacionais e História da Arte.
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