L.A. Kauffman lembra-se do dia em que centenas de milhares de mulheres, homens e crianças marcharam pelas ruas de Washington. “Se você nunca esteve numa multidão tão grande, é difícil transmitir como é poderosa a sensação de estar com tantos que compartilham seus objetivos e o sentimento de comunidade e conexão”, disse a organizadora política, ativista e escritora.

A Marcha das Mulheres, realizada no dia seguinte à posse de Donald Trump em janeiro de 2017, foi o maior protesto em um único dia na história dos Estados Unidos, até as manifestações que irromperam após o assassinato, pela polícia, de George Floyd, três anos depois. Foram os exemplos mais espetaculares da “resistência” ao primeiro mandato do republicano como presidente. Agora, Trump está voltando à Casa Branca, e uma Marcha Popular em Washington está marcada para 18 de janeiro, dois dias antes da posse. Há temores de que seja, no entanto, uma imitação pálida do primeiro protesto histórico. O clima parece mais abafado. Alguns norte-americanos dizem sentir-se cansados e desiludidos, e que desligam os noticiários por estarem simplesmente exaustos do magnata.

O comediante e comentarista político Bill Maher aponta uma “diferença marcante” entre as reações em 2016 e 2024. “Quando Trump venceu em 2016, havia 3 milhões nas ruas”, disse em seu talk show na HBO. “Lembram dos gorros de gatinha e tudo o mais? Quero dizer, foi a maior manifestação de todos os tempos. Neste ano, nada. O que é isso, renúncia?” Jen Psaki, apresentadora da MSNBC e ex-secretária de imprensa da Casa Branca, comentou na exibição em Washington de um documentário sobre a política de separações familiares de Trump na fronteira: “As pessoas estão exaustas de lutar contra políticas que consideram imorais, políticas às quais se opõem, pessoas que votaram em Kamala Harris e se sentem decepcionadas com o resultado. Parece que a mesma energia de oposição ou protesto não existe neste momento”.

A sensação de mal-estar em torno da “Resistência 2.0” pode ser causada em parte pelo fato de que, enquanto a primeira vitória de Trump pareceu um acidente histórico chocante, a segunda foi entregue por um eleitorado que sabe exatamente o que vai receber. Se perdeu o voto popular nacional para Hillary Clinton em 2016, ganhou mais em todo o país do que Harris e reivindica um mandato. Para muitos liberais, esse resultado foi um soco no estômago que pareceu minar o trabalho de três ciclos eleitorais.

Teja Smith, fundadora da agência de mídia social Get Social, especializada em advocacia política e conscientização, sediada em Los Angeles, disse: “Comecei a trabalhar com justiça social há quase uma década, e tenho trabalhado incansavelmente para manter Trump fora do cargo, basicamente. Na primeira vez, muitos não estavam realmente interessados na eleição. Tínhamos Hillary concorrendo e ela ganhou o voto popular. Houve apenas um monte de comentários como ‘Ah, bem, essas coisas acontecem’. Desta vez foi apenas a grande maioria que votou nele, e é isso. Foi no que vocês votaram, quanto mais podemos lutar contra ele?”

Há uma pressão para os estados controlados por democratas protegerem suas políticas progressistas

Depois de Trump ter sido declarado vencedor contra Harris, muitas mulheres negras politicamente engajadas disseram que ficaram tão consternadas com o resultado que decidiram reavaliar seu entusiasmo pela política eleitoral e priorizado o autocuidado. As negras, observa Smith, compareceram firmemente e votaram a uma taxa de 92% na candidata democrata. “Nesta altura, estão apenas cansadas”, ela prossegue. “O ato de resistência convocado agora é descansar para mantermos um pouco de sanidade. Eu tenho um marido, tenho um filho de 2 anos e passei o ano inteiro em campanha, viajando por todos os EUA para enfrentar essa boa briga, lutar por nossos direitos, mas a desinformação venceu.”

Smith não duvida, porém, que as mulheres negras continuarão a lutar. “No próximo ano, entenderemos o que esta Presidência vai significar e o que a eleição dele realmente fará. Esse será o momento em que não teremos escolha a não ser nos levantar. Queremos? Sim. Mas estamos cansadas de ser as únicas chamadas? Com certeza.”

O sentimento foi repisado por LaTosha Brown, cofundadora da organização de direitos de voto Black Voters Matter (Eleitores Negros Importam). “Sempre lutaremos para proteger nossas comunidades, mas posso dizer a vocês que, pessoalmente, serei muito mais estratégica no modo como vou usar meu tempo e quais lutas enfrentar. Serei muito mais intencional em proteger a mim mesma e minha família, o que sinto que negligenciei na última década, e serei muito mais criteriosa.”

De fato, apesar da melancolia, é muito provável que a segunda resistência se transforme em resignação. Também há sinais de resiliência e adaptação. Quando Trump assumir o cargo e lançar políticas como deportações em massa de imigrantes sem documentos, a reação poderá ser espontânea e rápida. Kauffman, a organizadora política e escritora que participou da primeira Marcha das Mulheres, analisa: “Não sei qual será a faísca que levará a multidão às ruas, mas não acho que os norte-americanos se intimidem tão facilmente. A atmosfera de medo cuidadosamente cultivada durante a campanha eleitoral funciona em curto prazo, mas os cidadãos não vão permanecer nesse tipo de medo em longo prazo. Vão responder quando virem injustiças, como fizeram em outros pontos cruciais, como fizeram não apenas na semana da primeira eleição de Trump, mas com o anúncio da proibição de muçulmanos. Em aeroportos por todo o país, correram para falar a favor dos imigrantes visados. Poderemos ver novamente esse tipo de reação rápida.”

Há uma ênfase crescente em “tornar os estados azuis à prova de Trump”, com apelos para governadores e legislativos democratas tomarem medidas para proteger políticas progressistas. Há também sinais de que os ativistas vão mudar de estratégia, afastando-se de protestos em massa e se concentrando em esforços mais direcionados e localizados, como iniciativas em nível estadual e campanhas por questões específicas. Do vale do Hudson, em Nova York, Kauffman acrescentou: “Estou vendo que as pessoas procuram encontrar uma forma de atender a essas necessidades de conexão comunitária de maneiras mais silenciosas e íntimas. Há muitas reuniões nas casas, em centros comunitários e bairros. Não é uma reunião em massa que nos dê uma sensação de ampla união coletiva. Tem acontecido em comunidades menores, mais unidas e presenciais”.

Para Leah Greenberg e Ezra Levin, há uma sensação de déjà vu. Os ex-funcionários do Congresso cofundaram o grupo progressista “Indivisível” em resposta à primeira vitória de Trump em 2016. No fim de semana após o Dia de Ação de Graças daquele ano, na casa de Levin, em Austin, no Texas, eles começaram a escrever o Guia Indivisível para quem quer se organizar na luta contra a agenda do republicano. O guia capturou a imaginação do público e inspirou a criação de milhares de grupos Indivisíveis, que desempenharam um papel crucial em salvar a lei de saúde do ex-presidente ­Barack Obama. O movimento também teve peso na reconquista dos democratas da Câmara dos Deputados nas eleições de meio de mandato em 2018.

Desde a eleição de 2024, Greenberg e Levin lançaram o novo guia Indivisível: Guia Prático para a Democracia em Perigo, com foco em ações locais e campanhas direcionadas, e observam que cerca de cem novos grupos Indivisíveis foram formados em estados vermelhos, azuis e roxos – republicanos, democratas e mistos. “Estou animado, porque a resposta geral que estou recebendo de nosso pessoal é que eles estão determinados. Essa foi a palavra que surgiu na pesquisa dos Indivisíveis da Geórgia quando me juntei a eles no fim de semana após a eleição. Eles estão passando por muitas fases diferentes do luto, mas não mostram sinais de simplesmente desistir totalmente”, comemora Levin.

Força. Os protestos contra a decisão da Suprema Corte em relação ao aborto e os antirracistas foram alento e inspiração – Imagem: Elijah Nouvelage/AFP e Oli Scarff/AFP

Outro ponto de interrogação é sobre a mídia. Alguns veículos têm reafirmado um compromisso com o jornalismo de responsabilidade, mas lidam com fadiga, desengajamento do público e perda de confiança, enquanto tentam não amplificar cada explosão de Trump. De modo preocupante, o jornal The Washington Post recusou-se a endossar um candidato presidencial antes da eleição.

A primeira resistência não foi totalmente liberal e democrata. Foi uma coalizão que incluía republicanos do “Trump Nunca”. Entre os mais combativos estava o Lincoln Project, comitê de ação política fundado em dezembro de 2019 por agentes conservadores moderados para eviscerar Trump e conhecido por seus anúncios chamativos e contundentes. Um de seus cofundadores, Rick Wilson, está determinado a continuar. “Muitos dizem que estamos acabados, estamos fora, não podemos continuar a lutar”, aponta. “Sinto muito, mas eu simplesmente não sou programado dessa forma como indivíduo ou como ativista, nem nossa organização. Continuamos nessa luta. Perdemos uma eleição como parte de uma grande coalizão. Estávamos do lado errado na luta eleitoral, mas não estamos do lado errado da história, então vamos continuar a bater, tentando garantir que os aliados e as políticas que Trump quer impor aos EUA não tenham êxito.”

Apesar da escala monumental da Marcha das Mulheres, ela não impediu uma perda fundamental no ano seguinte, quando a Suprema Corte aboliu o direito constitucional ao aborto. Wilson, que trabalhou como consultor e criador de anúncios políticos para vários candidatos e partidos estaduais, comentou: “Por mais animadas que estivessem com toda essa coisa do gorro de gatinha, não funcionou, então, se estão dando uma pausa no movimento para decidir qual mensagem precisam passar e qual é a melhor maneira de fazer isso, esse é um bom resultado”. O analista prossegue: “Não é um sinal de fraqueza. É um sinal de cautela e postura estratégica, dar um tempo para descobrir o que vai funcionar. Porque, novamente, gorros de gatinha cor-de-rosa não fecharam o negócio. Eles não mudaram os resultados que precisávamos ter.”

Mais: “Sou orientado para resultados e vitórias e, embora alguns estejam deprimidos, abatidos e derrotados hoje, em algum momento você tem de lamber as feridas e se levantar, voltar à luta. Entre morrer em pé ou morrer de joelhos, uma das duas, eu prefiro ir em pé, se eu tiver de ir.” •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1340 de CartaCapital, em 11 de dezembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Ainda estamos aqui’

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Last Update: 05/12/2024