Paulo Gonet, o procurador-geral da República, não quer ser acusado de beneficiar ou prejudicar um dos dois grandes blocos políticos nacionais: o de Lula e o de Jair Bolsonaro. Uma pessoa do convívio dele diz que a presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Cármen Lúcia, teria pedido à Procuradoria para evitar protagonismo na campanha. O “xerife” acredita ter encontrado um Ministério Público politizado demais, um mal à própria corporação, algo a ser enterrado agora. Tudo somado, só uma reviravolta o levará a apresentar antes do fim das eleições, em outubro, denúncia criminal contra Bolsonaro ou o ministro das Comunicações, Juscelino Filho. Gonet comenta internamente que não agirá com açodamento. Numa rara declaração à mídia, afirmou ao Globo em julho: “Vou fazendo o que eu me convenço de que é o certo na hora que me convenço que é a devida”.
A trégua de uns 70 dias não seria uma forma de favorecer um suspeito? No Ministério Público, há quem se mostre compreensivo com as ruminações de Gonet, em especial quando o assunto é Bolsonaro, ainda popular. Não é o caso de quem era o procurador-geral há 20 anos. “Uma vez tendo em mãos investigação criminal concluída, o membro do Ministério Público não pode se conduzir por juízo de oportunidade, mas deve – princípio da obrigatoriedade –, de pronto, pronunciar-se”, diz Cláudio Fonteles. Pronunciar-se significa trilhar um de três caminhos: apresentar denúncia à Justiça, arquivar o caso ou pedir mais apurações policiais. Uma investigação criminal finalizada pela Polícia Federal sobre Bolsonaro já está nas mãos de Gonet. É o inquérito das joias. Ele tinha 15 dias para se posicionar. O prazo começou a contar em 1o de agosto.
Para Eugênio Aragão, ex-ministro da Justiça e subprocurador-geral aposentado, se Gonet tiver planos de esperar a PF encerrar todos os inquéritos que atingem o capitão para juntar numa denúncia única, hipótese que circula em Brasília, errará. “É preocupante fazer uma superdenúncia, o MP às vezes tem essas coisas de dar espetáculo. Seria tecnicamente falho. Cada fato tem de ser uma denúncia diferente”, afirma.
Enquanto isso, os bolsonaristas estão em guerra total contra Alexandre de Moraes, do STF
E se há trégua de Gonet, é guerra total do bolsonarismo contra Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, condutor de inquéritos sobre o capitão. Os fiéis do ex-presidente pedem o impeachment dele em razão de mensagens de celular trocadas em 2022 e 2023 por três colaboradores do togado. As conversas acabam de ser divulgadas pela Folha. Nelas estão o juiz Airton Vieira, auxiliar de Moraes no Supremo, Marco Antônio Vargas, que foi auxiliar de Moraes no Tribunal Superior Eleitoral, e Eduardo Tagliaferro, perito criminal que trabalhou no TSE. O trio basicamente falava de ordens de Moraes sobre investigações de fake news. Tagliaferro havia sido levado por Moraes para o TSE assim que o juiz assumira o comando da Corte, em agosto de 2022. Pelas mensagens, o perito abasteceu processos na Justiça Eleitoral e, também, no Supremo, onde há desde 2019 um inquérito sobre milícias digitais.
Ao noticiar as mensagens, a Folha interpretou-as como demonstração de irregularidade: Moraes teria colocado a Corte Eleitoral a serviço do Supremo, feito isso às margens dos padrões vigentes e interessado em alvos específicos, atitude a confundir o papel de magistrado com o de procurador e de policial. Foi a interpretação dada pelo bolsonarismo, ao anunciar um pedido de impeachment de Moraes. Tentativa fadada ao fracasso: é para lá de improvável que o Senado tope julgar o togado. De qualquer forma, a turma do capitão pretende recolher em 7 de setembro assinaturas nas ruas para o impeachment. Recorde-se: foi nessa data, em 2021, que Bolsonaro, ainda presidente, chamou Moraes de “canalha” e disse que não cumpriria mais ordens judiciais dele.
A Justiça brasileira é árbitra entre partes e atua apenas quando provocada. Há uma exceção. A Eleitoral tem poder de polícia, ou seja, pode tomar a iniciativa de combater crimes por conta própria. Esse foi um dos argumentos usados por Moraes para defender-se diante da revelação das mensagens. O juiz disse ainda que seus assessores conversavam para cumprir ordens porque seria “esquizofrênico” ele, Moraes, mandar ofícios do gabinete dele no TSE para o do STF. E que todos os alvos de relatórios pedidos por ele no TSE e enviados ao Supremo souberam dos relatórios. Na sessão de quarta-feira 14 do Supremo, o presidente da Corte, Luís Roberto Barroso, saiu em defesa do colega: “Tempestade fictícia”. Flávio Dino e Gilmar Mendes engrossaram o coro.
Apesar dos argumentos de Moraes, há uma troca de mensagens a indicar algo meio fora de lugar no intercâmbio entre TSE e STF. Em 4 de dezembro de 2022, Vargas escreveu a Tagliaferro: “Dr. Airton está te passando coisas no privado?” A resposta foi sim. “Falha na prova. Vou impugnar”, replicou Vargas, com ironia. Tagliaferro: “Temos que tomar cuidado com essas coisas saindo pelo TSE. É seu nome”. O perito deixou o TSE em maio de 2023, após ser preso em flagrante pela polícia de São Paulo por violência doméstica. A Folha diz que as conversas que divulgou estavam em um celular. E que possui mensagens de agosto de 2022 e maio de 2023. É o período exato de Tagliaferro no TSE. Como as mensagens chegaram à mídia? Obra da Polícia Civil de São Paulo, subordinada ao governador bolsonarista Tarcísio de Freitas? É possível que a polícia tenha apreendido o celular, ou ao menos o seu conteúdo, quando da prisão de Tagliaferro.
Suposições à parte, as mensagens não só causaram embaraços a Moraes como atiçaram o bolsonarismo. O deputado Eduardo Bolsonaro discursou na Câmara, na quarta-feira 14, que não quer só o impeachment do juiz, mas a anulação dos processos a cargo dele no Supremo. A propósito, horas antes, Moraes decretara nova prisão preventiva de dois blogueiros bolsonaristas foragidos no exterior: Allan do Santos e Oswaldo Eustáquio. “Do que saiu (na Folha) até agora, não vi nenhuma irregularidade (de Moraes)”, afirma o advogado Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, para quem é “má-fé” comparar o togado com Sergio Moro e a Operação Lava Jato. “Politicamente, vai ser isso que estamos vendo, um barulho grande. E a demora em tomar algumas atitudes por parte da Procuradoria leva a essa instabilidade.”
O PGR também está preocupado em corrigir falhas nos inquéritos da Polícia Federal
A demora de Gonet para agir sobre Bolsonaro, sua indisposição para denúncias na eleição, tem a compreensão de alguns membros do MP. Um procurador da ativa, em posição privilegiada em Brasília, diz: adiar uma acusação, não importa o motivo, sempre causa dificuldades ao MP e transmite a ideia de atuação seletiva. Contudo, prossegue ele, “não podemos ser ingênuos e achar que uma denúncia em caso de vulto, envolvendo personagens centrais da esfera pública, é um ato simples quanto qualquer outro”. Um subprocurador-geral aposentado concorda: “Esse cálculo (de Gonet) procede, principalmente se as provas de que ele dispõe não forem consistentes ou forem capazes de suscitar divergências hermenêuticas”.
“Divergências hermenêuticas” latentes no caso das joias, graças a uma decisão recente do TCU, órgão auxiliar do Congresso, em um episódio sobre um relógio recebido por Lula em 2005. Por obra do ministro Jorge de Oliveira, o TCU mudou a postura anterior e agora diz que não tem como decretar qual presente precisa ser devolvido por um chefe de Estado no fim do mandato. A decisão não tem valor jurídico para encerrar o caso de Bolsonaro, mas os advogados e simpatizantes do capitão a usam desde já para defender a inocência dele. Oliveira foi secretário-geral de Bolsonaro na Presidência.
Além de contornar “divergências hermenêuticas”, Gonet parece querer corrigir falhas ou preencher lacunas de inquéritos da PF. No caso do cartão fajuto de vacinas anti-Covid, o delegado Fábio Shor, chamado de “putinha de Alexandre de Moraes” por Eduardo Bolsonaro da tribuna da Câmara, acusou Bolsonaro de vários crimes, entre eles o de uso de documentos falsos. O relatório final, de março, não tinha prova de que o cartão havia sido usado nos EUA, para onde o capitão viajara no dia da emissão do cartão fajuto, em dezembro de 2022. Gonet requereu a reabertura da apuração e que a PF buscasse a informação sobre o uso do cartão. As autoridades americanas responderam à PF que não sabiam dizer se houve uso ou não, por falta de registros.