Desde a fundação do Superior Tribunal Militar, em 1808, nunca uma mulher havia chegado ao poder castrense pelo voto direto. Na verdade, até 2007, a presença feminina não existia na Alta Corte. No início de seu segundo mandato, o presidente Lula pôs fim a essa distorção ao nomear para uma das vagas a advogada mineira e procuradora federal Elizabeth Rocha. Agora, aos 65 anos, a ministra fez jus à escolha e deu um novo salto na carreira. Será a primeira presidenta do STM. “É a ascensão das mulheres ao poder”, comemora. “Quebrei o teto de vidro, mas não é um teto, é uma casa inteira. São paredes, janelas, portas colocadas a nós, mulheres, de forma que não possamos ingressar ainda em espaços ocupados prioritariamente pelos homens.” A posse, emenda, “representa uma vitória do feminismo e do feminino”.

A magistrada assume o tribunal em um momento delicado nas casernas. Caberá à Corte decidir sobre a eventual cassação das patentes dos denunciados pela tentativa de golpe. Dos 34 listados pela Procuradoria-Geral da República, 23 são militares. Na entrevista a seguir, a nova comandante do STM, casada com um general três estrelas e que teve um cunhado assassinado pela ditadura, fala do papel da Corte e do debate sobre anistia, a de ontem e aquela defendida pelos bolsonaristas.

CartaCapital: Como a senhora analisa sua vitória?
Elizabeth Rocha: É a ascensão das mulheres ao poder. Eu me senti quebrando todos os obstáculos. Quebrei o teto de vidro, mas os estilhaços não caíram sobre mim, caíram sobre uma sociedade patriarcal e que estigmatiza seres humanos.

CC: O 8 de Janeiro foi uma tentativa de golpe de Estado?
ER: Não tenho a menor dúvida. Felizmente, o golpe não se consumou. E, justiça seja feita, não se consumou em razão de as Forças Armadas não terem aderido. À exceção do almirante Garnier, que foi denunciado, o Alto-Comando da Marinha sequer tinha conhecimento dessas conjecturas, dessas conjurações. O Exército e a Aeronáutica se opuseram firmemente. A grande lição que fica é de que a democracia é e sempre será um projeto inacabado.

CC: O que a senhora acha da proposta de anistia aos golpistas?
ER: Ainda é um pouco precipitado falar em anistia, na medida em que nem os réus foram julgados. Não há ainda um julgamento de todos os autores e todos os perpetradores dos delitos no 8 de Janeiro. Então, não é o momento para se discutir esse tipo de benesse estatal.

CC: E a politização das Forças Armadas?
ER: Política e atividade militar não combinam. A política não pode invadir os quartéis. Quando a política entra nos quartéis, a hierarquia e a disciplina ficam comprometidas.

CC: Por conta da trama golpista, os militares vão ser julgados no STF. Se provocado, o STM também os julgará?
ER: Sim, mas será necessário que o MPM os denuncie, considerando que nossas ações penais são públicas incondicionadas (independem da vontade da vítima ou de qualquer outra condição). Para além, cabem, após as condenações com trânsito em julgado, os Conselhos de Justificação e as Representações de Indignidade/Incompatibilidade para com o oficialato. São tribunais de honra que apreciarão se o oficial, depois de condenado, continuará com a patente e o posto.

CC: Os tribunais podem chegar a conclusões diferentes e até opostas?
ER: Não há esse risco de conclusões diferentes. Se julgarmos os militares denunciados, será por crimes militares, não pelos motivos do processo no Supremo.

CC: O STM é uma instituição corporativa?
ER: É injusta essa pecha, na medida em que o STM se portou com isenção e imparcialidade ao se pronunciar sobre os agravos e seus desdobramentos do 8 de Janeiro.

A magistrada não tem dúvida. Houve uma tentativa de golpe

CC: Qual a opinião da senhora sobre a revisão da Lei da Anistia em relação aos crimes permanentes cometidos na ditadura?
ER: Sempre me posicionei sobre a não recepção da Lei da Anistia pela Constituição de 1988, desde antes de o STF referendá-la. Mas, mesmo se a considerássemos acolhida pela nova ordem jurídica vigente, ela teria sido revogada com a decisão do próprio Supremo sobre a supralegalidade dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, internalizados pelo Brasil, como a Convenção Interamericana e o Pacto de São José da Costa Rica. Resta-nos agora aguardar, após a repercussão geral reconhecida pela Corte, qual será o novo entendimento jurisprudencial adotado por ela.

CC: Recentemente, a senhora disse que concorda com a proposta de uma idade mínima de aposentadoria para os oficiais militares e ainda falou que “um Exército de velhos que não consegue segurar uma baioneta, que não consegue atirar com um fuzil, pode comprometer a soberania da pátria e da nação”. Este é seu entendimento?
ER: O Brasil está transformando o Estado em uma gerontocracia. Isso me assusta.

CC: A senhora é uma intelectual profícua, o gosto pela política vem da herança mineira?
ER: Sem dúvida. Meu pai foi um advogado militante do antigo MDB, e quando Leonel Brizola retornou do exílio foi um dos fundadores do PDT em Minas Gerais. Com ele aprendi a importância da democracia e da legitimidade e a necessidade de se respeitarem os direitos humanos. O pior temor que se pode ter é do Estado Leviatã, que intimida e massacra as divergências e persegue a oposição.

CC: O seu cunhado, Paulo Costa Ribeiro Bastos, foi preso, torturado e morto pelos militares, que jogaram o corpo dele no mar. Esse crime está cicatrizado?
ER: Nunca estará. É uma dor recorrente, pois não poder enterrar os mortos nem chorar por eles é pior do que a morte em si. É uma afronta às leis divinas e humanas que desafia a evolução civilizatória.

CC: O que a senhora tem a dizer para quem defende a volta da ditadura?
ER: Quem pede o retorno da ditadura não sabe e não viveu as agruras que um regime autoritário causa individualmente, para cada um, e coletivamente, para toda a sociedade. Não é como uma morte que se encerra no funeral. É uma morte social que se prolonga por décadas e décadas e dói nas famílias e em todos aqueles que vivenciaram uma ditadura.

CC: A senhora assistiu ao filme Ainda Estou Aqui?
ER: O filme me emocionou profundamente. Saí com lágrimas nos olhos. •

Publicado na edição n° 1353 de CartaCapital, em 19 de março de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Água e óleo’

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Last Update: 13/03/2025