
Por Erick Gimenes
Especial para o Joio e o Trigo
Brasília – Os créditos do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) têm sido predominantemente despejados no agronegócio convencional, em detrimento de agricultores familiares e comunidades tradicionais que produzem sociobiodiversidade, excluídos por regras que não condizem com a realidade em que vivem.
O programa oferece nove linhas de financiamento, com juros que variam entre 0,5% e 6% e valores financiáveis que podem chegar a R$ 420 mil por beneficiário.
O incentivo, no entanto, está quase todo confinado à cadeia produtiva do gado: em 2024, conforme dados do Banco Central, 91,7% dos créditos do Pronaf na Amazônia Legal foram para a pecuária convencional, contra apenas 8,3% para atividades agrícolas em geral – nesse caso, ainda assim prevalecem commodities, como soja e milho.
Quando se trata de produtos ligados à sociobioeconomia, o índice é ainda menor: 99% dos produtores de açaí, castanha, cacau nativo, óleos vegetais, fibras, pescados e outros produtos biodiversos disseram nunca ter acessado o crédito rural, de acordo com mapeamento da Conexsus, uma organização que incentiva negócios comunitários que contribuem para a preservação de florestas e biomas.
Um dos principais entraves é a exigência de documentos individuais, como o Cadastro Nacional da Agricultura Familiar (CAF) e o Cadastro Ambiental Rural (CAR), para povos e comunidades que vivem e produzem em territórios coletivos. Isso impede que a maioria dos assentados da reforma agrária, quilombolas, ribeirinhos, extrativistas e indígenas acessem o programa.
É o caso de 250 famílias que formam a comunidade remanescente de quilombo Caraíbas, situada na entrada do sertão sergipano, na confluência de cinco municípios: Canhoba, Aquidabã, Amparo de São Francisco, Telha e Cedro de São João.
“Nossa terra é coletiva, com produção coletiva. Mas eles exigem documentos individuais, que a gente não tem. Quando vamos ao banco, já dão um ‘não’, sem chance de conversa. Levamos uma porta na cara, logo num primeiro momento. A política é desenhada lá em cima, pensada para nós, mas não temos como aplicar”, comenta Xifroneze Santos, moradora da comunidade e representante da coordenação nacional da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq).
A falta de titulação é a causa fundamental para a exclusão dos povos e comunidades tradicionais do Pronaf, segundo ela. Na Caraíbas, o processo começou em 2004 e está parado desde 2018, quando houve o reconhecimento de posse e uso coletivo. Estivesse titulada, a comunidade teria um CNPJ coletivo, passível de ser utilizado para acessar o programa.
“Esse é o principal gargalo das comunidades quilombolas, porque a gente não planta no vento, né? A gente não planta no ar. Para ser pensado para nós, o programa precisa ser pensado a partir da terra. Porque nenhuma casa começa pelo telhado: começa do alicerce. O nosso alicerce é nossa terra. Enquanto não houver desapropriação dos territórios, continuaremos vivendo de fantasia”, diz Xifroneze.

Enquanto a titulação e os consequentes recursos não chegam, a produção das comunidades quilombolas fica enclausurada aos fundos dos quintais, para subsistência, ou percorre caminhos curtos, até feiras próximas, o que gera renda insuficiente.
“O campo está envelhecendo, está morrendo. Nós precisamos desses projetos para nos salvar, para permanecer nos nossos territórios. Eles precisam olhar para a gente com respeito, para atender a demanda da política que é tão publicizada pelo governo.”
Os pescadores artesanais também se sentem embarreirados: para que eles consigam acessar os créditos, precisam ter o “CAF-Pronaf”, documento que substituiu, em 2024, a DAP (Declaração de Aptidão ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar). O processo para emissão, no entanto, de tão moroso e burocrático, leva a maioria à desistência.
“O pessoal do banco não sabe te explicar, ninguém dá apoio. Às vezes, pedem documentos que a gente sabe que não precisa. A maioria dos pescadores desiste, porque sempre tem um empecilho. Quando a pessoa simples chega lá, às vezes acaba nem sendo atendida. Acho que é preconceito. O governo sempre diz que tem políticas públicas para pescadores, mas a gente não consegue acionar, porque não tem vez. Quem tem são os donos de barcos, os empresários, que acabam usufruindo dessas políticas públicas”, reclama Lucila da Rocha Lopes, presidente da Colônia de Pesca de Itapaiva, no município de Itapemirim (ES).
A falta de dinheiro para tocar a pesca que lhes garante a sobrevivência abre espaço para atravessadores, em geral donos de barcos maiores, que se aproveitam da vulnerabilidade financeira para enganar e chantagear os pequenos.
“O pescador carrega o barquinho dele com gelo, rancho, óleo, mas tudo é o atravessador que adianta [o dinheiro] para ele. Se precisa de um reparo, o atravessador também passa o dinheiro. De uma forma ou outra, você acaba amarrado. Depois, o peixe pode estar no preço que for, você é obrigado a vender para ele, porque tem uma dívida. O pescador acaba lesado no preço final. Isso acontece muito”, relata Lucila.
Parcerias para transpor barreiras
Extrativistas que trabalham com o manejo sustentável do açaí no município de Portel (PA), no arquipélago do Marajó, conseguiram transpor as restrições do Pronaf com parcerias e fortalecimento comunitário.
Organizadas em uma cooperativa, a Manejaí (Centro de Referência em Manejo de Açaizais Nativos do Marajó), 25 famílias de nove assentamentos da reforma agrária firmaram acordos de cooperação com a Conexsus e o Banco da Amazônia para destravar os créditos.
Por anos, porém, os produtores enfrentaram uma série de dificuldades para acessar o Pronaf. A principal delas se dava pela distância das comunidades, isoladas por rios caudalosos que atravessam o arquipélago.
A presidente da Manejaí, Gracionice Costa da Silva Correa, conta que viajava por quase dois dias de barco para entregar a documentação necessária em uma agência bancária na capital, Belém. “Às vezes, chegávamos lá e o sistema estava fora do ar. Aí a pessoa tinha que virar as costas e fazer a viagem de volta, por mais dois dias. Ou tinha até que esperar o outro dia para conseguir um barco”, relembra.
A realidade mudou com os acordos de cooperação. Desde 2022, por meio da parceria com a Conexsus, a Manejaí passou a fazer parte do programa Rede de Ativadores de Crédito Socioambiental (CrediAmbiental), cujo objetivo principal é formar técnicos locais para que eles próprios consigam acessar o crédito rural coletivamente.
Hoje, quatro técnicos locais atuam na operação técnica do Pronaf para a Manejaí. O resultado é a liberação de créditos para 386 famílias, até agora, segundo Gracionice.
“As parcerias nos trouxeram grandes avanços, porque fazem com que nós consigamos resistir no nosso território, apesar das inúmeras ameaças. No fundo, nós somos sobreviventes. Sem essa união, a vulnerabilidade tomaria conta. Mesmo assim, precisamos seguir nos organizando, para que as comunidades mantenham suas próprias identidades”.
Atualmente, a Rede de Ativadores de Crédito Socioambiental conta com 55 ativadores ou ativadoras de crédito em exercício, com atendimento direto de 4.068 Unidades Familiares de Produção (101 mil hectares mapeados de cadeias da sociobioeconomia). Por meio do programa, foram aprovados 894 contratos de crédito rural, com acesso a R$ 13 milhões.

Pedido por mudanças
Em razão das restrições, o Observatório das Economias da Sociobiodiversidade (ÓSocioBio), uma rede colaborativa formada por 42 organizações da sociedade civil, movimentos sociais populares, empreendimentos comunitários e cooperativas, incluindo a Conexsus, fez uma série de sugestões, em uma nota técnica enviada ao governo federal, para o Plano Safra 2025/2026 e para a atualização do Manual de Crédito Rural (MCR).
Entre os pedidos apresentados ao governo estão a ampliação da lista de documentos exigidos para o Pronaf Grupo B, a exigência de que 20% de todo o recurso do Pronaf sejam destinados a cadeias da sociobioeconomia e a permissão para que associações e cooperativas possam emitir o CAF em nome de seus associados.
“Não estamos pedindo mais recursos ou diminuição da taxa de juros. O que pedimos são mais mecanismos de acesso, para que os povos e comunidades tradicionais, as pessoas que mantêm a floresta em pé, tenham acesso a essa política pública. Para que não fique só para o gado”, explica Fernando Moretti, líder do núcleo de crédito socioambiental da Conexsus.
Para Moretti, promover a autossuficiência dos povos e comunidades tradicionais que produzem produtos sociobiodiversos é o único caminho para uma economia nacional sustentável, independentemente do setor.
“As cadeias da sociobioeconomia podem não ter uma participação muito grande no PIB [Produto Interno Bruto] do país, atualmente, mas elas têm relação direta com qualquer cadeia produtiva do país. Todos dependemos diretamente delas, porque, a partir da proteção das florestas e dos biomas, elas nos protegem das secas, das mudanças climáticas. Tudo está interligado. Se o país quer estar bem, se o agro quer estar bem, precisamos fortalecer essas populações em seus territórios.”
NOTA DE ESCLARECIMENTO
Publicada em 16 de junho, 12h01.
Em atenção à matéria intitulada “Agronegócio fica com quase todo dinheiro de programa de apoio à agricultura familiar”, publicada em 11 de junho de 2025 por este O Joio e O Trigo, o Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA) esclarece que o conteúdo apresenta imprecisões que podem levar a interpretações equivocadas sobre o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) e as políticas públicas em vigor.
Por definição legal, o Pronaf é voltado unicamente para agricultores e agricultoras familiares, devidamente registrados no Cadastro Nacional da Agricultura Familiar (CAF), conforme critérios estabelecidos pela Lei nº 11.326/2006. No âmbito do Pronaf, portanto, nenhuma operação de crédito pode ser acessada por grandes produtores, empresas ou agentes que não se enquadrem como agricultura familiar. A sugestão de que o agronegócio se beneficia do programa desconsidera esse critério essencial.
O CAF é o instrumento oficial de identificação e qualificação das Unidades Familiares de Produção Agrária (UFPA). Desde a implantação do CAF 3.0, em março de 2025, o sistema se tornou mais ágil e inclusivo, com mais de 3,2 milhões de unidades ativas e reconhecimento formal de todos os 28 segmentos de Povos e Comunidades Tradicionais (PCTs). Não existe mais o documento “CAF-Pronaf”, como citado na reportagem: o próprio CAF, devidamente registrado e qualificado, é suficiente para acesso ao crédito nas instituições financeiras. O MDA também está coordenando a atualização do Decreto nº 9.064/2017, para ampliar o reconhecimento de formas coletivas de organização no campo.
A agricultura familiar brasileira é diversa. A produção de soja ou a criação de bovinos, por si só, não invalidam o enquadramento como agricultor familiar. Muitos agricultores familiares adotam essas culturas por razões econômicas, logísticas ou pela adequação às características do seu território. O Pronaf baseia suas linhas de financiamento no perfil do produtor familiar, não exclusivamente no tipo de cultura ou atividade exercida.
Entretanto, o programa privilegia e incentiva fortemente o crédito rural para atividades voltadas à produção de frutas, hortaliças, agroecologia e produtos orgânicos, oferecendo taxas de juros significativamente menores — em alguns casos, até 50% inferiores às aplicadas para culturas como a soja. Esse estímulo tem resultado em crescimento expressivo desses segmentos, como evidenciado pelos dados da safra atual em comparação com safras anteriores.
O MDA segue comprometido com a transparência, com o fortalecimento da agricultura familiar e com a escuta ativa da sociedade. Inclusive, recebeu e analisou com atenção a manifestação pública mencionada na reportagem, no contexto do processo de construção participativa do Plano Safra da Agricultura Familiar 2025/2026.
Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar.