Agenda 2030: Inspiração Internacional, falta de aspiração Nacional e uma breve análise do ODS 12.

por Cintia Neves Godoi, Sandro Luiz Bazzanella e Jairo Marchesan

A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, proposta pelas Nações Unidas, estabelece um conjunto de 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) (https://brasil.un.org/pt-br/sdgs), com metas globais voltadas para promover a prosperidade, a equidade social e a preservação ambiental

Entre esses objetivos, o ODS 12 “Consumo e produção responsáveis”, busca assegurar padrões sustentáveis de consumo e produção, reconhecendo a urgência em compreender, questionar e, promover transformações nos modelos econômicos vigentes para enfrentar desafios vitais que se apresentam planetariamente, tais como, a exploração excessiva de recursos naturais, o desperdício de energia, alimentos, dentre outros.

No entanto, a implementação do ODS 12 em diferentes contextos nacionais exige adaptações que considerem particularidades locais, o que levanta questões sobre a adequação e a eficácia das metas globais em realidades específicas.

Ainda nesta direção, é preciso ter em consideração que os ODS foram pensados, debatidos e apresentados ao mundo, sem que a concepção de “desenvolvimento” fosse debatida e revista em sua dimensão teleológica, ou seja, em suas finalidades que remontam as filosofias do progresso da modernidade e sua pretensão de contínua marcha adiante alheia aos efeitos colaterais provenientes desta intensa e intrépida marcha do desenvolvimento.

Sob tais pressupostos, os ODS em sua afirmação contraditória do “Desenvolvimento Sustentável” se apresentam como imposição advinda da lógica do progresso gestada na modernidade e implementada pelo Ocidente, não sem violência e barbárie sobre outros povos e culturas. Talvez por isso mesmo é que os ODS não expressam visões de mundo, experiências vitais e práticas de povos indígenas, ou da diversidade de práticas e relações de povos e culturas minoritárias espalhadas mundo afora.

Em documentos oficiais, como o “Transformando Nosso Mundo: A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável” é possível acessar um ponto de vista que aponta que os problemas ambientais, sociais, econômicos e políticos do mundo, como potenciais riscos para aquelas áreas que alcançaram desenvolvimento no mundo. Neste sentido, se pode questionar que os problemas ambientais, sociais e espaciais do mundo, foram, na verdade, construídos a partir justamente das propostas de concentração da riqueza global nestas áreas que hoje são ditas desenvolvidas. Analisemos a seguinte frase:

“Encontramo-nos num momento de enormes desafios para o desenvolvimento sustentável. Bilhões de cidadãos continuam a viver na pobreza e a eles é negada uma vida digna. Há crescentes desigualdades dentro dos e entre os países. Há enormes disparidades de oportunidades, riqueza e poder. A desigualdade de gênero continua a ser um desafio fundamental. O desemprego, particularmente entre os jovens, é uma grande preocupação. Ameaças globais de saúde, desastres naturais mais frequentes e intensos, conflitos em ascensão, o extremismo violento, o terrorismo e as crises humanitárias relacionadas e o deslocamento forçado de pessoas ameaçam reverter grande parte do progresso do desenvolvimento feito nas últimas décadas.”

Certamente, é possível argumentar que os problemas levantados na frase, acima, são, em muitos casos, causas e não consequências do progresso advindo deste “modelo” de desenvolvimento. O desemprego juvenil, por exemplo, frequentemente reflete mudanças estruturais trazidas por avanços tecnológicos e econômicos, como a automação e a globalização, que podem desestabilizar mercados de trabalho tradicionais e reduzir oportunidades para jovens que ainda não possuem experiência ou qualificações específicas.

Da mesma forma, as ameaças globais à saúde, como pandemias, têm sido exacerbadas pela crescente conectividade internacional, pela intensidade de exploração de recursos naturais, que facilitam o progresso econômico, rápida disseminação de vírus e doenças e concentram riqueza. Esses desafios, portanto, não são simplesmente um obstáculo ao desenvolvimento, mas, consequências diretas ou inerentes das dinâmicas deste processo por ele desencadeado.

Além disso, desastres socioambientais e políticos intensificados pelo aquecimento global, conflitos e deslocamentos forçados de significativos contingentes humanos, também são frequentemente resultados do próprio modelo de desenvolvimento predominante, que prioriza o crescimento econômico a qualquer custo acima da sustentabilidade ambiental e da equidade social. A exploração desenfreada de recursos naturais, a desigualdade socioeconômica e a marginalização de comunidades geram condições que sustentam tanto os desastres ambientais, quanto os conflitos. O progresso agrava tensões sociais, gera exclusão e aumenta a vulnerabilidade de populações a crises humanitárias. Assim, responsabilizar esses problemas por ameaças ao desenvolvimento ignora sua complexidade e interdependência, além de obscurecer a necessidade de reavaliar os próprios paradigmas de crescimento econômico e progresso que os geraram.

No Brasil, em vez de problematizarmos a agenda internacional de desenvolvimento, esforços têm sido realizados para adaptar os objetivos à realidade do país, como evidenciado pelas iniciativas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).

Este texto inicia questionando o fato de sermos signatários de uma agenda internacional de desenvolvimento, e explora mais especificamente a trajetória dos levantamentos e análises relacionados ao ODS 12, com foco na condição brasileira. São investigados os avanços, desafios e lacunas na interpretação e implementação do objetivo, por meio da análise de documentos oficiais, políticas públicas e indicadores disponíveis.

O exercício buscou contribuir com debate sobre a relevância das adaptações realizadas e os caminhos necessários para alcançar os padrões sustentáveis propostos, considerando a complexidade das agendas globais e chamar a atenção para contextos nacionais.

Primeiramente, foram analisados os documentos oficiais das Nações Unidas relacionados à Agenda 2030 e ao ODS 12, incluindo metas, indicadores e relatórios de progresso. Em seguida, realizou-se a revisão de materiais produzidos por instituições brasileiras, como o IPEA e o Portal ODS Brasil, para identificar adaptações realizadas às metas e indicadores globais. Além disso, o estudo examinou a série histórica de políticas e iniciativas vinculadas ao ODS 12 no Brasil, com destaque para documentos como o Guia Nacional de Licitações Sustentáveis, o Plano de Ação para Produção e Consumo Sustentáveis (PPCS) e acordos internacionais como a Strategic Approach to International Chemicals Management – SAICM e a Basel Convention.

A meta 12.2, voltada à gestão sustentável dos recursos naturais, enfrenta dificuldades de implementação devido à indisponibilidade de dados detalhados. Similarmente, na meta 12.3, que argumenta pela necessidade de reduzir pela metade o desperdício de alimentos, ajustes foram realizados para remover a expressão “redução pela metade”, refletindo limitações na coleta e organização de informações.

Em 2023, o portal ODS Brasil apresentou um panorama sobre as metas relacionadas ao ODS 12. Entre as metas analisadas, 121 eram consideradas produzidas, 72 estavam em análise ou construção, 51 permaneciam sem dados e 10 eram não aplicáveis ao Brasil. Esses números destacam a necessidade de aprimorar a transparência e a continuidade das políticas e relatórios nacionais.

A análise revela que o Brasil possui iniciativas promissoras no âmbito do ODS 12, como o Guia Nacional de Licitações Sustentáveis e a participação em acordos internacionais como a SAICM. Contudo, a descontinuidade de políticas e a falta de atualização de séries históricas comprometem a capacidade do país de atender às demandas da Agenda 2030. Outro ponto crítico é a dependência de dados confiáveis e detalhados para monitorar e avaliar o progresso das metas. Sem informações consistentes, torna-se difícil identificar avanços e propor melhorias nas políticas de consumo e produção sustentáveis. Além disso, a falta de continuidade nas políticas entre diferentes governos compromete a implementação de uma agenda de longo prazo.

No endereço virtual do Brasil nas Nações Unidas (brasil.un.org) é possível conhecer uma série de ações em andamento no Brasil em todas as regiões do país. Em 2023, é possível levantar 18 ações em andamento, 2024, 19 ações em andamento, e é possível acessar previsões de ações para anos seguintes.

Estas atividades apresentadas no endereço em questão apontam orçamentos, agentes envolvidos, dentre outras características. Mas, é também possível encontrar inconsistências de diversas ordens, em mapas do Sudeste, por exemplo, há projetos que estão localizados no Tocantins, mas o mapa remete à Minas Gerais, bem como outros erros que geram insegurança na interpretação e análise dos dados disponíveis em endereços e plataformas de organizações internacionais.

No caso do endereço (odsbrasil.org.br) também há vários problemas no acesso e acompanhamento de dados. Em 2024 foi possível perceber também que a plataforma do IPEA apresentou dados de acompanhamento do ODS 12 difíceis e compreender, pois, por exemplo, em 2023 se apresentava oficialmente que foram alcançados 121 indicadores produzidos, 72 em análise, 51 sem dados e 10 não se aplicavam ao Brasil. Em 2024 o mesmo portal apresentou que foram 5 indicadores produzidos, 1 em análise, 7 sem dados e 0 não se aplicavam ao Brasil. Além disso, há vários ODS que são “clicáveis”, mas que quando tentamos acessar os dados, há disponibilização de novas páginas para os ODS 1, 2, 5 11 e 16, e ainda faltam os demais. Além disso, há uma sugestão de acesso às planilhas de dados para download, mas quando se busca acessar, não é possível acessar nenhum dado, as planilhas estão vazias.

Em 2024 foi lançado um documento pelo IPEA, chamado “Avaliação do Progresso das Principais Metas Globais para o Brasil”, neste documento é possível conhecer mais dados e elementos para que possamos conhecer a situação do Brasil na Agenda 2030. Apresentam dados sobre empresas que publicam relatórios de sustentabilidade, segundo números de empregados, segundo setores de atuação,

O endereço ligado à Confederação dos Municípios do Brasil, intitulado Mandala Municipal era uma plataforma brasileira de disponibilização de dados que também foi descontinuada e não permite mais acessos para avançar em pesquisas e análises.

A implementação do ODS 12 no Brasil reflete avanços quanto desafios. As metas globais apresentam diretrizes, e sua adequação ao contexto nacional requer ajustes significativos. Por exemplo, enquanto a meta 12.1, que promove o Plano Decenal de Programas sobre Produção e Consumo Sustentáveis, é considerada mantida, a falta de atualizações no Plano de Ação para Produção e Consumo Sustentáveis desde 2019 compromete seu impacto.

Ao que tudo indica, dos indicadores da Agenda 2030, no que diz respeito ao ODS 12, os dados disponíveis, no caso do Brasil, parecem ter a ver com o número de empresas que publicam relatórios de sustentabilidade e sobre a capacidade instalada de energias renováveis per capita.

Mas, o essencial a se discutir é que a análise do ODS 12 no contexto brasileiro evidencia um paradoxo intrínseco à Agenda 2030: a ambição de transformar padrões globais de consumo e produção é frequentemente limitada pela falta de articulação entre políticas públicas e o acesso transparente a dados confiáveis. Apesar de iniciativas relevantes, como o Guia Nacional de Licitações Sustentáveis, as inconsistências nas plataformas oficiais e a descontinuidade de políticas dificultam avanços concretos. Essa situação aponta para a necessidade de uma abordagem mais integrada e sustentável que priorize a construção de bases sólidas de dados, alinhando políticas a uma visão de longo prazo que vá além de ciclos de governos.

Ademais, a concepção do ODS 12, como parte de uma agenda global, reflete desafios que transcendem o contexto brasileiro e questionam a própria noção de desenvolvimento sustentável. É preciso repensar o conceito de progresso, incorporando perspectivas que valorizem saberes locais e práticas de comunidades historicamente excluídas, para que os esforços globais não perpetuem desigualdades estruturais. Além disso, propõem-se que os ODS sejam apresentados, amplamente discutidos com a sociedade e compreender as suas especificidades. Afinal, não basta ser apresentadas intenções de propostas, normalmente, exógenas ou produzidas em outros contextos, mas, há a necessidade de conhecer especificidades locais e adaptar as condições e realidades locais ou regionais. Somente com uma reavaliação ampla e crítica das premissas que sustentam a Agenda 2030 será possível avançar para a construção de um modelo mais democrático, inclusivo e adequado, que promova padrões de convivência, produção e consumo compatíveis com a preservação dos bens naturais do planeta e o bem-estar de suas populações.

Cabe por fim salientar que os ODSs e, aqui em análise o ODS 12 desconsideram em sua pretensão impositiva de “universalização” de estratégias e práticas as singularidades humanas, sociais, políticas, antropológicas, históricas, entre outras variáveis constitutivas de povos e países. Talvez esta desconsideração auxilie no entendimento de que os ODS se apresentam como roteiro pensado e definido por uma tecno-burocracia “desenvolvida” com pretensões de imposição, controle e domínio global. Ou seja, o povo brasileiro em sua diversidade étnica, em suas singularidades nacionais não é convocado a pensar, a propor e executar um projeto de desenvolvimento nacional autônomo, soberano. Qualquer proposta de desenvolvimento que desconsidere a perspectiva de constituição de uma democracia popular direta e participativa apresenta-se apenas como mais uma estratégia de controle e de domínio de povos e países.

A globalização em sua variante econômica vendida ao mundo como vitória do capitalismo sobre toda e qualquer forma de organização social e produtiva alternativa somente pode sobreviver a partir de tentativas de impor sobre os povos agendas burocráticas e autoritárias de desenvolvimento. E para que tal estratégia possa alcançar algum tipo de resultado é preciso contar com a colaboração e conivência de governos e agências nacionais, bem como com o financiamento de pesquisas e, de pesquisadores dispostos a replicar tais discursos com pretensões de verdade aos seus pares, bem a como a sociedade em geral, como tábua de salvação do planeta, mas sobretudo de um sistema capitalista decrépito, imperialista , e depredador das condições básicas para manutenção da vida.

Cintia Neves Godoi – Professora de Geografia

Sandro Luiz Bazzanella – Professor de Filosofia

Jairo Marchesan – Professor de Geografia

Referências:

BRASIL. Agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável. Disponível em: https://brasil.un.org/sites/default/files/2020-09/agenda2030-pt-br.pdf. Acesso em: 2 jan. 2025.

BRASIL. Portal das Nações Unidas no Brasil. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br. Acesso em: 2 jan. 2025.

CNM – CONFEDERAÇÃO NACIONAL DE MUNICÍPIOS. Mandala de Desenvolvimento Municipal (2018). Disponível em: https://cnm.org.br/storage/biblioteca/Mandala%20de%20Desenvolvimento%20Municipal%20(2018).pdf. Acesso em: 2 jan. 2025.

IPEA – INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Observatório dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/ods/. Acesso em: 2 jan. 2025.

ODS BRASIL. Painel de Monitoramento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Disponível em: https://odsbrasil.gov.br/. Acesso em: 2 jan. 2025.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn “

Categorized in:

Governo Lula,

Last Update: 07/01/2025