Um novo sistema de pagamentos criado por países africanos está começando a alterar a forma como o continente realiza transações comerciais internacionais, conforme reportagem da Reuters. A mudança busca reduzir a dependência do dólar americano, diminuir os custos financeiros e ampliar a integração econômica entre nações africanas.
A iniciativa, impulsionada por fatores práticos, ganhou relevância diante de pressões geopolíticas e reações negativas do governo dos Estados Unidos.
O Sistema Pan-Africano de Pagamentos e Liquidações (PAPSS), lançado oficialmente em janeiro de 2022, permite que empresas realizem transações diretamente em suas moedas locais. A proposta é contornar a necessidade de conversões para dólares, prática comum até então mesmo em transações entre países africanos vizinhos.
De acordo com dados do próprio PAPSS, transações realizadas entre nações africanas por meio de bancos correspondentes estrangeiros podem ter custos que variam entre 10% e 30% do valor da operação. Com o novo sistema, esse percentual pode cair para cerca de 1%.
Segundo Mike Ogbalu, presidente-executivo do PAPSS, a motivação principal não é política. “Nosso objetivo, ao contrário do que as pessoas podem pensar, não é a desdolarização”, afirmou. “Se você observar as economias africanas, verá que elas enfrentam dificuldades com a disponibilidade de moedas globais de terceiros para liquidar transações.”
A atual estrutura financeira, baseada no dólar, exige que bancos africanos dependam de instituições estrangeiras para concluir pagamentos internacionais. Esse processo contribui para o aumento dos custos comerciais, um fator que, combinado com limitações logísticas, elevou o custo do comércio africano para um patamar 50% superior à média global, segundo dados da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento.
Além disso, o modelo tradicional limita a integração regional. Um relatório do Grupo MCB, sediado em Maurício, apontou que 84% do comércio africano ocorre com países de fora do continente.
Com o PAPSS, a expectativa é promover o comércio intra-africano e reter divisas no continente. Ogbalu estima que o uso de moedas locais como a naira nigeriana, o rand sul-africano ou o cedi ganês pode gerar uma economia de até US$ 5 bilhões anuais em moeda forte.
O PAPSS começou com 10 bancos comerciais e está operacional hoje em 15 países, incluindo Zâmbia, Tunísia, Malawi e Quênia. Atualmente, 150 instituições financeiras fazem parte da rede. “Também vimos um crescimento muito significativo em nossas transações”, afirmou Ogbalu, sem divulgar dados específicos.
A iniciativa ganhou apoio de outras instituições. A Corporação Financeira Internacional (IFC), ligada ao Banco Mundial, começou a oferecer empréstimos em moedas locais para empresas africanas.
Ethiopis Tafara, vice-presidente da IFC para a África, explicou que a decisão busca proteger as companhias da volatilidade cambial. “Se eles não estiverem gerando moeda forte, um empréstimo em moeda forte impõe um fardo que dificulta o sucesso deles”, disse.
O tema também avançou para fóruns internacionais. A presidência rotativa do G20, atualmente sob comando da África do Sul, colocou os sistemas de pagamento regionais na pauta. Em uma reunião de ministros das Finanças e presidentes de bancos centrais realizada na Cidade do Cabo, o tema foi discutido abertamente.
Lesetja Kganyago, presidente do banco central sul-africano, afirmou: “Alguns dos corredores mais caros para pagamentos transfronteiriços são encontrados no continente africano. Para que possamos funcionar como um continente, é importante que comecemos a negociar e liquidar em nossas próprias moedas.”
As movimentações, no entanto, não passaram despercebidas por autoridades dos Estados Unidos. O ex-presidente Donald Trump, que reassumiu a presidência, tem demonstrado oposição a iniciativas que reduzam o uso do dólar em comércio internacional.
Em resposta à criação de uma moeda comum pelo grupo BRICS — formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, além de novos membros como Egito e Etiópia — Trump ameaçou impor tarifas comerciais severas.
“Não há chance de os BRICS substituírem o dólar americano no comércio internacional, ou em qualquer outro lugar, e qualquer país que tente deve dizer olá às tarifas e adeus à América!”, escreveu em publicação no Truth Social.
Desde então, Trump intensificou o discurso e declarou publicamente estar disposto a utilizar tarifas como instrumento de pressão contra aliados e adversários. A postura reacendeu tensões comerciais e gerou reações em várias partes do mundo.
Especialistas avaliam que os sistemas africanos podem ser percebidos no exterior como parte de uma tendência geopolítica. Daniel McDowell, professor da Universidade de Syracuse e estudioso em finanças internacionais, destacou que o esforço africano pode ser interpretado fora do continente como uma extensão das estratégias de desdolarização lideradas por Rússia e China. “A percepção provavelmente é de que isso tem a ver com geopolítica”, disse.
Apesar do contexto global, as autoridades africanas mantêm o foco nos benefícios econômicos. O avanço de sistemas como o PAPSS é apresentado como uma solução para gargalos históricos no comércio regional e um caminho para a autonomia financeira do continente. A próxima reunião do G20, marcada para julho, poderá oferecer novos desdobramentos e impulsionar iniciativas de integração entre sistemas de pagamento locais em escala global.