Os atores de “Adolescência”: Owen Cooper (Jamie Miller, à frente). Stephen Graham (Eddie Miller) e Ashley Walters (Luke Bascombe)

O que move a ação humana é uma pergunta feita por filósofos de todas as épocas e culturas, o que nos oferece uma ideia do quanto deve ser difícil respondê-la. Temos realmente liberdade de agir como bem entendermos ou somos determinados pela sociedade em que nascemos, a família em que fomos criados, a genética, os traumas, o capitalismo e toda a série de acasos que nos constitui enquanto alguém absolutamente único?

“Adolescência”, a nova minissérie fenômeno global da Netflix, aclamada pela crítica como uma das melhores da história do streaming, traz uma nova formulação dessa velha pergunta, e como toda obra de arte que se preze, não se preocupa em oferecer respostas fáceis.

Jamie, um menino de 13 anos, filho de uma família amorosa e estruturada, de uma pacata cidade da Inglaterra, é acusado de matar a facadas uma colega de escola chamada Katie. Se você não gosta de nenhum tipo de spoiler, melhor parar por aqui e confiar, se não em mim, na BBC, no New York Times e no The Guardian, e correr para assistir antes que alguém lhe conte. No mais, prometo até o fim do texto não revelar nada que considere atrapalhar a experiência.

Mas o vídeo de Jamie esfaqueando a menina é apresentado logo no primeiro episódio, então não é a dúvida sobre a autoria do assassinato que importa. O que nos prende do início ao fim, além das brilhantes atuações do elenco, do triunfo da filmagem em plano-sequência, é que assim como a polícia, a família, a escola e a psicóloga queremos ou precisamos entender por que ele fez isso.

O coautor da série, Stephen Graham (que também atua como o pai de Jamie, Eddie Miller), afirma que ele próprio também queria entender as motivações de dois casos reais semelhantes ocorridos recentemente, e assim surgiu “Adolescência”.

Nietzsche certamente poderia ajudar o autor nesse sentido, e é provável que tenha feito, pela forma como a história é contada. Mais do que apresentar um motivo, a preocupação parece ser demonstrar que a relação de causa e efeito simplesmente não pode ser desvelada totalmente.

Ou a causa do assassinato foi o bullyng sofrido, o machismo e a misoginia estruturais e internalizados, o movimento incel, a falta de supervisão dos pais à vida online do menino, uma escola omissa, más companhias, etc, etc… Como articular todos os fatores possíveis, e assim emitir um enunciado com pretensão de verdade? O perspectivismo nietzschiano interdita essa possibilidade, ao mesmo tempo que aponta caminhos de investigação.

Na “Genealogia da Moral”, Nietzsche oferece o método de revisitar o passado até uma época em que os valores atuais ainda não estivessem cristalizados, e assim poder observar o quanto eles se transformam ao longo do tempo.  Assim o instinto de rebanho reproduz valores que representam muitas vezes apenas sintomas da decadência de determinada comunidade, ou como o desejo ressentido foi capturado por falsos sacerdotes, mestres em oferecer um sentido a todo ódio internalizado.

Nietzsche talvez então dissesse para Graham tentar buscar o que esses assassinatos e tantos outros têm em comum, e salvo raríssimas exceções que confirmam a regra, são sempre homens rejeitados matando mulheres, cada vez mais cedo. Dizer que a culpa é do machismo parece muito pouco, ainda que claro que seja também.

Saída ainda mais fácil, e por isso popular, é acreditar na maldade de alguns, como se o “sujeito” fosse algo dado, e não constituído a cada momento por suas experiências num mundo que o antecede, com todos os seus códigos e valores inscritos a ferro e fogo ao longo dos séculos.  Acreditar na liberdade que todos sentimos como nossa, no livre-arbítrio de decidir agir de uma maneira ou de outra, o que sustenta tanto a ideia de meritocracia neoliberal, quanto o discurso  punitivista.

Mas acreditar na resposabilidade individual é realmente muito menos trabalhoso do que tentar compreender como a sociedade pode produzir assassinos e tentar desenvolver estratégias para interromper o mecanismo. O problema é que pelo caminho mais difícil sequer temos a garantia de uma saída. O conjunto completo de causas que movem a ação humana parece ser desconhecido inclusive para o próprio agente – e assim surgiu a noção de inconsciente –, mas se não sabemos nem mesmo por que agimos como agimos, que dirá em relação aos outros.

“Adolescência” se arrisca por esse caminho, e que bom é ter a arte para nos conduzir no desconhecido.

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Last Update: 25/03/2025