Avassaladora. Se eu precisasse escolher uma palavra para definir a nova mini série da Netflix, Adolescência, seria essa a palavra. Lançada no último dia 13 na plataforma de streaming, a produção se tornou em menos de duas semanas um sucesso de público e crítica. No momento em que escrevo essas linhas a série pontua 8.9 entre os Top Critics no Rotten Tomatoes (site especializado em crítica de cinema) e 4.3 no Letterbox (uma rede social para cinéfilos).
O segredo para seu sucesso talvez esteja na maneira simples, porém profundamente densa, com que temas complexos e delicados são abordados. Com apenas quatro episódios, a série foi escrita por Jack Thorne, produzida por Stephen Graham e dirigida por Philip Barantini. O enredo trata, em formato de drama policial, a história de Jamie Miller, um garoto de 13 anos acusado de assassinar uma colega de escola em um crime tipicamente misógino.
Segundo seus criadores, o aumento de casos de esfaqueamento entre jovens na Inglaterra foi o gatilho para essa produção. Como explicar, apesar dos avanços no acesso à informação, à educação, às campanhas públicas pela igualdade de gênero, que jovens se aproximem e deixem se levar por discursos de ódio masculinista como red pills, sigmas e afins? O que leva um jovem, que mal deixou a infância, a cometer um crime bárbaro?
Ou seja, a série escapa ao enredo clássico policial sobre “quem matou” para mergulhar fundo sobre “porque matou”. Nesse sentido, não há uma cena de fetichização da violência nem uma gota de sangue se quer. Não é esse o ponto.
Mas se engana quem ache que a séria fica mais leve por isso. E aqui vale um comentário sobre um aspecto técnico. Todos os quatro episódios da série foram filmados em plano sequência – ou seja, são realizados sem cortes. Como num teatro, um episódio é, na verdade, uma cena inteira de uma hora, sem interrupção.
Isso por si só já seria um feito extraordinário (imaginem a dificuldade de sincronizar todos os atores, todos os espaços, o deslocamento da câmera em uma única cena, sobre assuntos tão psicologicamente densos, sem que ninguém possa errar). Mas a escolha é muito coerente com a proposta da série.
No cinema tradicional, através do recurso da montagem, o espectador pode contemplar diferentes perspectivas e pontos de vista sobre uma mesma história. Uma série tradicional mostraria o crime pela perspectiva do núcleo policial e a investigação. Depois o núcleo familiar, suas nuances. Ainda, talvez, o ponto de vista da vítima… e tudo isso seria usado para construir uma bricolagem narrativa que tentaria abordar o fato de maneira mais rica e complexa.
Mas em Adolescência não. A construção em plano sequência mantém o espectador preso ao personagem. Não há outros pontos de vista, e, com isso, somos obrigados a mergulhar em sua mente e emoções. O que será que se passou? Não há respostas simples, fáceis. A série não entrega evidências claras, apenas um desconforto crescente.
No primeiro episódio, que começa com a prisão de Jamie e acompanha seu primeiro interrogatório na delegacia passamos pelo primeiro baque. Assim, acompanhamos seu pai que no começo defende seu filho como um “mero garoto inocente” até a brutal tomada de consciência de que talvez seu filho – um garoto de apenas 13 anos – tenha mesmo cometido um crime hediondo. E graças ao recurso técnico do plano sequência, tudo o que nos resta é ocupar o mesmo lugar subjetivo do pai e se perguntar: “mas quem é esse jovem sentado ao meu lado? Por que fez isso?”. Nenhum tiro, nenhum golpe, nenhuma explosão, nenhuma ação. Apenas um mal-estar e um estranhamento de dar um nó na garganta.
Essa, na verdade, é a pergunta central da mini série. Será que conhecemos nossos jovens? Sabemos mesmo o que se passa em suas cabeças?
A construção da subjetividade masculina
Aos poucos, vamos descobrindo que há uma base ideológica por trás do crime e que sustenta esse ódio às mulheres. Pela análise de postagens em redes sociais, os investigadores vão se deparando com um mundo que até então lhes era estranho: os discursos mascunilistas e suas subculturas derivadas como red pills, sigmas, incels (celibatários involuntários) etc. E não se trata apenas dos influenciadores famosos, cruéis e tóxicos. São discursos mais ou menos difundidos nas bolhas dos fóruns, games etc.
Mas não se trata aqui de culpar o jovem incel pelo crime. Esse seria um reducionismo fácil. A questão que se coloca é que esses discursos estão mais ou menos difundidos entre os jovens, inclusive entre garotos e garotas. Sendo a própria vítima uma das praticantes de bullying contra o criminoso, zombando-o como “incel”. Que recursos esses jovens tem para lidar com a não aceitação, a insegurança, a violência que se expressa de forma difundida entre todos os jovens? Cada um em sua jornada vai construindo seu ferramental para isso mas até que se atinja a maturidade para lidar, vamos enfrentar um turbilhão de dúvidas e emoções: às vezes tristeza, às vezes angústia, outras vezes raiva e violência. E aqui está o risco dessas ideologias: caem como uma luva para um momento de extrema fragilidade.
A trama é intrincada e nada na série tem resposta fácil. São camadas de violência sobre camadas de violência, o que fica explícito quando Jamie admite ter imaginado que sua vítima, fruto de outro episódio de machismo, poderia estar frágil e por isso seria facilmente submetida. Mas é Jamie que acaba humilhado.
O debate aqui é, justamente, sob a constituição da subjetividade de um adolescente. A puberdade é um momento de profunda transformação biológica, química, social e subjetiva pela qual todos nós passamos. É um momento de reestruturação simbólica do pertencimento e, não raramente, nos afastamos no núcleo familiar e amarguramos a sensação de quem “ninguém nos entende” (na verdade, nem a gente está se entendendo).
Se essa crise e o relativo afastamento é um processo natural e saudável, é também um momento de vulnerabilidade. E, com o boom das redes sociais, contraditoriamente, estamos ao mesmo tempo tão isolados e tão expostos.
Um dos próprios criadores, que criou perfis falsos e mergulhou nesses fóruns para entender a dinâmica desses grupos, declarou que se tivesse encontrado esses discursos durante suas crises existências da puberdade, talvez elas fizessem algum sentido.
Muitas camadas da ira masculina
E esse é um fato perturbador. Há um abismo entre pais e seus filhos adolescentes agravado por questões culturais. E a série não busca uma resposta simples para explicar como a cultura vai construindo o ódio às mulheres. Será que basta não ser um babaca para impedir que o pior aconteça?
Um dos monólogos do pai de Jamie levanta essa questão. Ele foi de uma geração criada sob o lema de que “homem não chora”, forjados à base de surras e castigos físicos. Ele, contudo, jurou nunca fazer isso. Prometeu que criaria seu filho de maneira totalmente diferente, mas isso não impediu o pior. Onde foi que ele errou? De quem é a culpa?
De todos nós, enquanto sociedade. Todos os personagens em Adolescência são parcialmente culpados – homens, mulheres, jovens, adultos, criminoso e vítima – ao mesmo tempo em que não tem culpa. E isso faz da série uma grande tragédia em seu sentido clássico.
De alguma maneira, essa falta de letramento subjetivo dos homens, está em todos os personagens. Nas entrelinhas, é possível ver a impulsividade, a ira, e a incapacidade de controle também nos outros, não só em Jamie. Nas piadas dos alunos nas escolas, na cumplicidade, no sentimento de “foda-se” o mundo, na incapacidade de um pai de estabelecer uma conversa profunda com um filho.
Por fim, é preciso chamar atenção para um feito inusual. Adolescência consegue abordar a discussão sobre opressão e violência às mulheres sem precisar lançar mão de uma frase feminista sequer. Não há personagens nem falas que representem isso. Aliás, arrisco dizer que a trama se concentra mais em Jamie e seu pai. É a história de um homem que sonhou ser um bom pai e criar um bom filho, mas que fracassa miseravelmente apesar do esforço. É uma construção extremamente sensível e hábil.
Isso significa uma diminuição do feminismo? De maneira alguma. Significa apenas que ou todos nós mudamos como sociedade – e os homens aqui estão incluídos – ou nada mudará. Como homem escrevendo esse texto, não posso deixar de dizer.
Adolescência é uma série que recomendo a todos. Cada um que lida com adolescentes. Professores, pais, mães e outros profissionais. Mas especialmente para nós homens. Em um mundo atravessado por violência e opressão, serve de convite nós revisitarmos o que significa ser um homem e como nossa subjetividade é construída a partir do que entendemos que isso seja. Tomar consciência disso basta para garantir a formação de jovens para um outro mundo?