Adolescência e novas tecnologias: uma descrição da experiência de aproximação entre a escola pública e a universidade

por Talitha Mirian do Amaral Rocha

A minissérie da Netflix “Adolescência” estreou em março deste ano e alavancou o debate sobre o uso da internet e novas tecnologias pelos jovens e adolescentes. Eu estava evitando assistir, já que sou professora do Ensino Médio em Colégios Estaduais do Rio de Janeiro e lido com esse público-alvo frequentemente. Estava me poupando de levar mais trabalho para casa em meus momentos de descanso, sabe? Mas, diante de tantas perguntas de colegas sobre o que estava achando, resolvi assistir aos quatro episódios.

Antes mesmo de ver, minha impressão inicial era de que só se tratava de contextos anglo-saxões e que, por isso, observaria mais sobre a cosmologia local do que aquilo que observo cotidianamente em sala de aula. Ledo engano. Ao final do quarto episódio entendi que a produção das masculinidades tratada no seriado era semelhante com a que vejo em sala de aula.

Meninos, normalmente calados, com seus celulares jogando algum jogo online de tiro é o que o observo desde que comecei a dar aula. Tanto na série quanto na vida real, a adolescência é marcada por um momento conflituoso que muitos pais e outros adultos não sabem lidar. No final do quarto episódio, o pai termina falando: “me desculpe, filho, eu deveria ter feito mais”. E o que ele poderia ter feito? Ou melhor, o que nós podemos fazer?

O primeiro ponto de debate diante dessa pergunta é que precisamos nos preocupar com a maneira como os adolescentes estão consumindo os conteúdos digitais e a forma como usam a tecnologia seja em casa ou em sala de aula. Inspirado nessa preocupação, no dia 13 de janeiro de 2025, o presidente Lula sancionou a lei 15.100/2025 que dispõe a proibição de “aparelhos eletrônicos portáteis pessoais durante a aula, o recreio ou intervalos entre as aulas, para todas as etapas da educação básica”. Entretanto, a legislação permite o uso para fins didáticos e de acessibilidade. Esta é uma primeira medida tomada pelo governo federal para combater o uso excessivo das telas nas escolas.

No dia 21 de março deste ano, o Conselho Nacional de Educação (CNE) publicou uma resolução que institui as diretrizes operacionais sobre o uso de dispositivos digitais nas escolas e estabelece a Educação Digital e Midiática como parte obrigatória do Currículo da Educação Básica a partir de 2026. Para nós que estamos no “chão da escola pública” enxergamos essas medidas muito distantes da nossa realidade, já que depende de medidas conjuntas com os governos estaduais e municipais para a aplicação. A lei do piso nacional do magistério, por exemplo, é descumprida por prefeitos e governadores e, em outras vezes, são feitas manobras para o achatamento da carreira do magistério.

Para mim, antes mesmo de voltarem às aulas, a preocupação dos estudantes sobre a lei federal que proíbe o uso do celular nas escolas encheu minhas caixas de mensagens com a pergunta: “agora não vamos poder mais usar o celular?”. Minha resposta foi que eles não precisariam se preocupar com isso em minhas aulas, já que continuaríamos o mesmo esquema: o uso dos celulares será permitido nos momentos em que eu não estiver explicando algum conteúdo ou quando não tiver nenhum tipo de atividade.

O que me permite tomar essa decisão? A “autonomia pedagógica”. Para quem não conhece esse conceito é ensinado nas licenciaturas para garantir aos profissionais da educação a terem liberdade nas decisões didáticas, permitindo aos professores adaptarem o ensino de acordo com as características da turma e alunos. No jargão professoral chamamos isso de “na minha sala, quem manda sou eu”.

 Explico aqui o porquê dessa minha decisão sobre o uso do celular. Eu dou aula para o Ensino Integral em uma escola da rede estadual de ensino do Rio de Janeiro. Nele, os estudantes devem ficar na escola das 7h às 16h30. Imagina você, leitor, ficar todo esse tempo sem poder acessar o celular. Me parece contraditório incentivar que o estudante fique em tempo integral na escola e ao mesmo tempo proíba o estudante de acessar o celular, não acha? O programa do Governo Federal “Escola em Tempo Integral” pode parecer interessante, mas vou contar uma coisa: a grande maioria dos adolescentes com quem convivo não gostam do Ensino Integral porque não sentem o ambiente escolar atrativo para ficar tanto tempo dentro da escola.

E mais, muitos deles expressam que se sentem mais ansiosos e cobrados quando ficam o “dia inteiro na escola”. Será que proibir o uso do celular é o caminho? No meu caso, percebi que o acordo do uso flexível do celular acabou deixando as aulas mais participativas e consegui criar uma metodologia de trabalho em que ensino pesquisa e oriento os estudantes em minhas aulas.

Saúde mental

O que afirmei anteriormente sobre o ensino integral e casos de saúde mental já foi tema de pesquisa entre meus estudantes do Ensino Médio, durante a Feira de Ciências Simoni Lahud Guedes, organizada pelo Instituto Nacional de Tecnologia – Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC), do qual sou pesquisadora. Este evento é organizado bianualmente por professores e estudantes das escolas públicas do Estado do Rio de Janeiro, juntamente com o apoio dos pesquisadores do INCT-InEAC, com o objetivo de incentivar a educação científica e midiática dos adolescentes.

Somado a isso, a equipe multidisciplinar da “Feira do INCT-InEAC” sempre foi uma das vertentes centrais do nosso evento, também observado nas etapas de formação das Oficinas de Letramento Midiático – ministrada por pesquisadores vinculados ao Programa de Pós Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense (PPGCOM-UFF), voltadas para os estudantes estimularem o pensamento crítico junto ao uso das mídias sociais – e Oficina de Letramento Racial – etapa que surgiu na terceira edição do evento como interlocução com o projeto de extensão do grupo Ebó Epistêmico da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), voltado para que os estudantes reflitam sobre os conflitos raciais presentes no ambiente escolar.

A proposta é que professores inscrevam os seus alunos para participar de um conjunto de atividades sequenciais ao longo do ano para fomentar e estimular a produção de projetos de pré-iniciação científica com base nos conflitos escolares. Ao final do ano, os estudantes devem apresentar um podcast e um resumo expandido fruto de suas pesquisas que é avaliado por uma comissão de pesquisadores para ranquear os três melhores. Já foram três edições deste evento que juntam 54 episódios de podcasts feito inteiramente por estudantes estaduais da rede pública do Rio de Janeiro analisando os embates e vivências de seu cotidiano escolar.

As pesquisas que envolvem a saúde mental na escola aparecem sete vezes, as discussões sobre o uso de tecnologias na escola envolvem quatro pesquisas e a temática de sexualidade e masculinidade também aparecem em, pelo menos, cinco pesquisas. De modo geral, esses episódios são como uma síntese dos conflitos mais discutidos pelos adolescentes que estudam nas escolas que participaram dos três eventos, desde 2020, quando se iniciou nosso evento. Três anos depois da criação, a Feira do INCT-InEAC foi incluída no Catálogo de Tecnologias Sociais da Agência de Inovação da UFF.

Como fruto da Feira de Ciências do INCT-InEAC, temos quatro Laboratórios Escolares de Pesquisa que são parte da nossa rede de pesquisa. O Laboratório Escolar de Pesquisa e Iniciação Científica (LEPIC), fundado em 2016, pelo meu colega, professor Dr. Marcos Veríssimo foi pioneiro em formar um grupo de pesquisas dentro de sua escola para concorrer às bolsas do programa PIBIC Ensino Médio (UFF/CNPq).

Eu coordeno o Laboratório de Vivências Interdisciplinares da Antropologia (Laboratório VidA). O nome foi dado pelo colega, professor Alexandre Magno, para descrever como comecei minha metodologia pedagógica de mesclar a orientação de pesquisas de pré-iniciação de pesquisa com as aulas de Projeto de Vida. Mas, o Laboratório VIdA só foi realmente nomeado quando os estudantes bolsistas se identificaram com o nome, já que, segundo eles, nos espaços e momentos que temos nossas reuniões falamos da vida deles, os estudantes que fazem parte desse Laboratório.

No Laboratório VidA são quatro bolsistas do PIBIC Ensino Médio, do PIBIC/UFF/CNPq e quatro do programa Jovens Talentos da FAPERJ. Todo ano concorro a esse último edital com mais quatro bolsistas e procuro orientá-los a desenvolverem pesquisas em grupos, não só para facilitar a orientação de tantas pessoas, mas também para incentivar a socialização presencial entre eles. Diferentemente do que o início do desenvolvimento dessa metodologia, percebi que conjugar a orientação de pesquisas científicas dos estudantes com base nas referências das ciências sociais era mais profícuo de ser realizado nas disciplinas do Ensino Integral, já que são matriculados menos pessoas.

Não que não seja possível orientar quase 30 estudantes ao mesmo tempo em uma turma do ensino regular, mas o trabalho e desgaste é maior, sem dúvida. Atualmente, quatro pesquisas são realizadas pelos estudantes bolsistas do Laboratório VIdA, com os seguintes nomes: “Briguei com meus Pais, e agora?”; “Bem-vindo ao Futurama: onde a inteligência artificial encontra a criatividade humana”; “A obrigatoriedade do uso do uniforme escolar” e “O dilema do terceiro ano: Faculdade, trabalho ou outra opção?”. Os dois primeiros são realizados por bolsistas Jovens Talentos da FAPERJ e tiveram seus podcasts publicados na “Feira de Ciências do INCT-InEAC” e os dois seguintes estão em elaboração pelas bolsistas do programa PIBIC EM (CNPq/UFF).

Tecnologia social

Diferentemente do que outros programas de pré-iniciação científica realizados no Ensino Básico, as pesquisas realizadas pelos estudantes dos Laboratórios Escolares vinculados ao INCT-InEAC não precisam de tecnologias caras como, por exemplo, impressoras 3D ou um cortador a laser, mas, do mesmo modo, estão difundindo tecnologias na escola. As tecnologias sociais de que tratamos estão voltadas para construir um pensamento crítico e científico com os estudantes, não para que entrem na universidade unicamente, mas para se tornem cidadãos conscientes das diferenças sociais e com opiniões que não são baseadas em fake news.

No final das contas, o que temos analisado é parecido com o que outras pesquisas realizadas pelo INCT-InEAC no âmbito da administração de conflitos já observaram: não é somente a inserção de tecnologias de últimas gerações que vão modificar as práticas sociais, que estão fundadas na desigualdade (material e de interesses) que estrutura a sociedade brasileira. Dessa forma, também equivalem a outras observações já feitas a respeito de outros conflitos como, por exemplo, sobre o uso de drogas.

Ou seja, a proibição única e exclusiva de equipamentos eletrônicos na escola (assim como sua oferta) também não garante o uso consciente pelos adolescentes. O que conseguimos observar durante esses cinco anos de trabalho me permite apontar que o desenvolvimento da tecnologia social que desenvolvemos na Feira de Ciências do INCT-InEAC passou pelo aprendizado e aprimoramento de uma metodologia de trabalho formada conjuntamente pelos próprios professores e estudantes das escolas estaduais do Rio de Janeiro que fizeram parte do projeto. E isso envolve a observação das práticas sociais e a exposição aos conflitos que criaram os protocolos de trabalho. Ou seja, as tecnologias sociais não são vistas somente como algo para “resolver problemas sociais”, mas sobretudo, para refletir sobre esses problemas.

No final das contas, as diferenças sobre as cosmologias locais que observei antes mesmo de ver o seriado “Adolescência” possuem fundamento. Entretanto, ao mesmo tempo, o seriado nos atenta para refletirmos sobre as práticas de educação midiática que estamos implementando nas escolas. No caso da Feira de Ciências do INCT-InEAC estamos procurando voltar nossas ações para que os estudantes possam refletir sobre o seus papéis de cidadãos em uma democracia, entendendo que não lhes cabe usar qualquer tecnologia para fomentar discursos de ódio, violência ou outro comportamento que atente à integridade de outras pessoas.

Talitha Mirian do Amaral Rocha é pesquisadora de Pós-Doutorado Nota 10 (FAPERJ/PPGA-UFF), doutora em Antropologia pelo PPGA-UFF, pesquisadora do INCT/InEAC e professora de Sociologia na rede estadual de ensino do Rio de Janeiro.

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Last Update: 29/04/2025