Admirável mundo novo… ou a investida chinesa, por Fausto Godoy
Polemizando…
Eu estava em Nova York, recentemente, e assisti pela televisão, no dia 20/01, o discurso de posse de Donald Trump. Relembro aqui algumas das suas passagens: “…a América reclamará o seu lugar de direito como a maior, mais poderosa e mais respeitada nação do planeta, inspirando o respeito e a admiração de todo o mundo… A ambição é o sangue vital de uma grande nação e, neste momento, a nossa nação é mais ambiciosa do que qualquer outra. Não há nação como a nossa nação… Depois de tudo que já passamos, estamos à beira dos quatro maiores anos da história americana”…
Muito deste ufanismo de D.T. resulta da percebida superioridade americana no setor da Inteligência Artificial, que, acreditava-se, colocaria os Estados Unidos numa posição praticamente inalcançável para as outras nações e definiria a sua total supremacia na área mais disruptiva da civilização contemporânea. Só que… enquanto Trump fazia seu discurso, uma relativamente obscura empresa chinesa – DeepSeek – lançou o mais recente e impressionante “modelo de linguagem grande” (LLM), que é um tipo de inteligência artificial que processa, compreende e gera linguagem humana. De acréscimo, a sua tecnologia é “aberta”, ou seja, a empresa permite o acesso a seu modus operandi, assim “democratizando”, de certa forma, o conhecimento. Foi o caos: os principais índices das Bolsas de Nova York fecharam sem rumo único e as empresas de tecnologia perderam US$ 1 trilhão em valor de mercado num só dia!
De repente, a liderança dos Estados Unidos sobre a China em IA pareceu menor do que em qualquer outro momento desde que o ChatGPT se tornou famoso. A recuperação da China é surpreendente porque ela estava muito atrás — até porque os Estados Unidos se propuseram a desacelerar o progresso dela nesta área. Com efeito, o governo de Joe Biden temia que a IA avançada pudesse garantir a supremacia militar do Partido Comunista Chinês (PCC). Assim, os Estados Unidos reduziram as exportações para a China dos melhores “chips” para treinamento de IA e cortaram o acesso dos chineses a muitos apetrechos necessários para desenvolver processos substitutos.
Num outro setor – o automobilístico – a competição entre os dois gigantes também se acirra. No seu discurso de 20/01, Trump afirmou que… “com as minhas ações de hoje, acabaremos com o New Deal verde e revogaremos o mandato dos veículos elétricos, salvando a nossa indústria automobilística e mantendo os meus compromissos sagrados aos nossos grandes trabalhadores do setor automóvel americano…a América será mais uma vez uma nação industrial e temos algo que nenhuma outra nação industrial jamais terá: a maior quantidade de petróleo e gás de qualquer país da Terra. E vamos usá-la”. Ipso facto, anunciou que os Estados Unidos revogarão sua participação na “Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC)”, a COP. Ou seja, uma opção evidente pelo mundo do petróleo… e pelas consequências que o segundo maior emissor de gazes de efeito estufa do planeta pode acarretar.
Noutro setor, o automobilístico, a expansão dos carros híbridos e elétricos chineses pelo planeta desafia a indústria mundial de automóveis como um todo, segundo os especialistas. Tanto é assim que as montadoras japonesas Nissan e Honda assinaram recentemente um memorando de entendimento (MOU) descrito pelas companhias como uma “opção para manutenção da competitividade global”. Na prática, elas vão tentar combinar forças em um movimento que pode também vir a envolver a Mitsubishi, para não serem engolidas pelas automobilísticas chinesas.
Mas a estratégia de fusão dessas companhias é carregada de simbolismo, segundo o Estadão, porque “se agora são as montadoras chinesas que representam uma nova era de avanços tecnológicos, nos anos 1980 e 1990 foram os carros japoneses, em geral menores e menos poluentes, que revolucionaram o mundo e ganharam mercados como o norte-americano, o que acabou por abalar o domínio da trinca GM, Ford e Chrysler”. O alvo agora seria a chinesa “Build Your Dreams”/BYD, que já é a maior fabricante mundial de veículos elétricos, como sabemos. Lembremo-nos de que a BYD assumiu em outubro de 2023 o complexo industrial que pertenceu à Ford, em Camaçari, na Bahia, que estava desativado desde que a montadora norte-americana anunciou sua saída do Brasil. A propósito, o Brasil já é um dos mercados prioritários para ela.
Ou seja, estamos entrando numa outra fase da globalização, onde dois dos setores de maior futuro no sentido planetário não mais estariam “nas mãos” dos americanos, contrariando o ufanismo do presidente Trump. Para os que lidam com a China, não se trata de algo acidental, mas fruto de uma política de Estado definida e anunciada, em maio de 2015, pelo Conselho de Estado, através de um plano – Made in China 2025 (中国制造2025), também chamado de “China Manufactured 2025” -, onde foram selecionados dez setores de ponta – tecnologia da informação; robótica; equipamentos aéreos e aeroespaciais; tecnologia marítima; equipamentos e sistemas ferroviários; veículos movidos por energias alternativas; energia elétrica, etc – visando atualizar, consolidar e alavancar a indústria manufatureira da China – já o principal exportador mundial -, transformando-a numa potência global capaz de influenciar cadeias de suprimento e impulsionar a inovação com base na convicção de que o mundo está passando pela quarta revolução industrial, como atesta a confluência da robótica, inteligência artificial, “big data” e computação em nuvem.
Ou seja, enquanto o Ocidente se engalfinha em guerras e disputas “westfalianas” – onde os temas territoriais, políticos e ideológicos definem e dominam a agenda – os chineses se aplicam em criar condições e espaços no que realmente importa: o futuro…
E assim, la nave va..Preocupante…
Fausto Godoy, Serviu nas Embaixadas do Brasil em Bruxelas (1978); Buenos Aires, (1980); Nova Delhi (1984); Washington (1992) e Tóquio (2001). Foi designado Embaixador junto aos governos do Paquistão (2004) e Afeganistão (2005). Serviu posteriormente em Hanoi (2007); Consulado do Brasil em Tóquio; Escritório Comercial do Brasil em Taipé; e nas Embaixadas do Brasil em Bagdá (sediada em Amã), Daca, Astana e Yangon. Foi Cônsul-Geral do Brasil em Mumbai (2009). Aposentou-se do Serviço Exterior Brasileiro em 2015. Doou sua coleção de arte e etnologia asiáticas (com cerca de 3.000 peças), ao Museu Oscar Niemeyer, de Curitiba. Esta coleção constitui a primeira ala asiática em um museu brasileiro. É membro da Diretoria da Câmara de Comércio Brasil-Índia. É coordenador do Núcleo de Estudos e Negócios Asiáticos na ESPM
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