Pepe Mujica, ex-presidente uruguaio morto nesta terça (13), aos 89 anos. Reprodução

Em menos de um mês, o mundo — se ainda podemos chamá-lo assim com alguma fé no seu significado — perdeu duas figuras que, em sua inteireza humana, alçaram-se àquilo que de melhor a humanidade já pôde oferecer a si mesma. Primeiro, o Papa Francisco, arauto de uma fé vivida como ternura e denúncia. Agora, José “Pepe” Mujica, o lavrador de ideias e afetos, o estadista improvável que nos ensinou a força política da simplicidade.

Ambos, cada qual à sua maneira, encarnaram uma ética da humildade radical, um chamado incessante à fraternidade universal e à responsabilidade mútua entre os seres, o cuidado obrigatório com a nossa casa comum, o dilapidado planeta Terra.

Quantos de nós não fomos levados às lágrimas ouvindo seus apelos por um mundo mais justo, mais compassivo, mais compreensível? Não por pieguice ou nostalgia, mas porque seus discursos vinham acompanhados por vidas que os legitimavam — vidas gastas com coerência, despojamento, coragem moral e uma impressionante capacidade de escuta.

É difícil não sentir, com a partida de Mujica, que um tempo se encerra. Não apenas um tempo cronológico, mas um tempo ético, talvez até mesmo um tempo espiritual. Sua figura — o velho de olhar límpido, a fala pausada, os gestos despretensiosos — contrastava com estridência brutal diante do tipo humano que hoje ocupa o palco político: vaidoso, raivoso, indiferente à dor alheia.

Enquanto figuras como Donald Trump, Vladimir Putin, Volodymyr Zelensky, Giorgia Meloni, Viktor Orbán e o abjeto carniceiro Benjamin Netanyahu dilapidam diariamente os significados de humanidade e dignidade, Mujica se retirava do mundo dos vivos como quem já havia, há muito tempo, se retirado do mundo dos brutos. E, neste nosso continente golpeado por um neofascismo ruidoso e cada vez menos envergonhado — representado por repulsivas figuras como Javier Milei, Nayib Bukele, Santiago Peña e Jair Bolsonaro — besta-fera apocalíptica — e outros tantos com os mesmos maneirismos de autoritarismo midiático —, a ausência de Mujica parece ainda mais gritante.

Mas não se trata aqui apenas de celebrar um homem que foi coerente e decente. Trata-se de reconhecer uma perda política no sentido mais profundo da palavra. Mujica não era apenas um símbolo de resistência ou um representante da esquerda romântica latino-americana. Ele foi, por uma raríssima conjugação de destino e escolha, um estadista com alma de poeta, um guerrilheiro que não se envergonhou da ternura, um presidente que soube manter intacta a sua humanidade mesmo entre os compromissos e as concessões do poder.

Os presidentes Gustavo Petro, da Colômbia, e Luiz Inácio Lula da Silva, do Brasil. Reprodução

Em Lula e Gustavo Petro talvez possamos vislumbrar alguns dos ecos da utopia de Mujica. Mas é justo dizer que sua utopia era singular demais para ser simplesmente herdada. Havia em Mujica uma combinação quase extinta de modéstia e radicalidade, de estoicismo e generosidade, que torna qualquer tentativa de continuidade sempre incompleta. O próprio Mujica, com a sabedoria dos que sabem envelhecer sem se apequenar, tratou de desinflar a própria mitologia, mostrando-se disposto a revisitar posições, a rir de si mesmo, a encerrar ciclos sem mágoas.

É possível, quem sabe até necessário, reconhecer que sua revolução pessoal — a que o levou das armas ao campo de flores, da prisão à presidência, da rigidez ideológica à delicadeza política — foi também uma forma de preparar o fim. Não como desistência, mas como maturidade. Como se soubesse, desde sempre, que a grande vitória do idealista não está em viver para ver a utopia triunfar, mas em fazer com que ela se torne possível para os outros. Ao contrário de tantos revolucionários tomados de ressentimento, Mujica envelheceu leve — e, por isso mesmo, mais profundo.

Resta-nos agora a esperança, frágil, mas insistente, de que sua ética de convivência — essa arte difícil de construir pontes entre diferentes, de ceder sem trair, de resistir sem perder o coração — volte a ocupar o centro da cena. É preciso que volte. O mundo não suporta mais a ausência de homens assim.

José Mujica nos deu muito. Mais do que suas palavras ou suas decisões de governo, nos ofertou um modo de estar no mundo: com sobriedade, com sentido, com cuidado. Como quem entende que viver é, antes de tudo, partilhar o tempo com os outros — os mais frágeis, os invisíveis, os esquecidos.

Descanse em paz, Pepe. A paz que você sempre buscou para os outros, que agora seja sua: inteira, merecida. E que, entre os que ficam, sua memória continue a soprar como um vento suave — desses que não estilhaçam portas, mas abrem janelas.

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Last Update: 13/05/2025