A primeira fase do julgamento da trama golpista na 1ª Turma do STF (Supremo Tribunal Federal) deixou ao menos uma certeza: a de que acreditar na não existência de tentativa de golpe de Estado, engendrada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro e autoridades de seu entorno, depende de profunda ingenuidade ou genuína má-fé.
Afinal, como desvencilhar desse processo o mandatário que, por anos, tentou descredibilizar sistema eleitoral sem apresentar prova de fraude? Que tinha como hábito atacar o STF e tratar a oposição como uma inimiga a ser extirpada? Que sempre defendeu a ditadura, a tortura e a morte de opositores e o uso das Forças Armadas como “poder moderador”?
Como, ainda, descolar Bolsonaro e seus comparsas de atos como os acampamentos que pediam intervenção militar (algo claramente inconstitucional); do fechamento de estradas por caminhoneiros após as eleições de 2022; dos ataques em Brasília após a diplomação de Lula e Alckmin e da tentativa de explosão de um caminhão de combustível nas proximidades do aeroporto da capital federal em dezembro do mesmo ano?
De que forma é possível fingir não ter visto as manifestações do ex-presidente e seus aliados pelas ruas, no Sete de Setembro, em reuniões ministeriais ou com embaixadores, sempre apostando na destruição das instituições brasileiras?
E, ponto máximo do golpismo, como desatrelar o ex-presidente da invasão e depredação dos prédios dos Três Poderes uma semana após a posse de Lula, em 8 de janeiro de 2023?
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Para corroborar a tese de que não haveria relação entre Bolsonaro e seu entorno — que inclui ex-ministros e militares de alta patente, como os generais Augusto Heleno e Walter Braga Netto — com esses e outros atos, seria preciso acreditar que a motivação dos milhares de fanáticos bolsonaristas que executaram parte dessas ações agiram, todos, por conta própria, ativados por suas convicções e auto-organizados, sem que houvesse nenhum estímulo externo.
E mais: seria preciso crer que Bolsonaro — aquele que não reconheceu a derrota, demorou dias para falar à nação após o segundo turno e que foi para os Estados Unidos para não ter de passar a faixa presidencial a Lula —, não queria se manter no poder.
Ainda seria forçoso ignorar a minuta golpista que estabelecia a possibilidade de decretação de uma GLO (Garantia da Lei e da Ordem) e de Estado de Sítio em caso de uma “convulsão social” (causada, talvez, segundo eles, por geração espontânea), bem como ignorar o plano “Punhal Verde-Amarelo”, que previa os assassinatos do presidente Lula, de seu vice, Geraldo Alckmin, e do ministro do Supremo Alexandre de Moraes.
Para acreditar nas alegações apresentadas pelas defesas dos réus, que basicamente disseram que seus clientes nada têm a ver com a tentativa de golpe, seria preciso abstrair tudo isso e todos os anos de verborragia autoritária e odiosa lançada pelo bolsonarismo, com o ex-presidente liderando a turba formada, em boa parte, por militares.
Descredibilizar as provas levantadas pela Polícia Federal e pela Procuradoria-Geral da República ao longo do processo investigatório; reduzir as acusações à delação de Mauro Cid e querer uma “ordem de golpe assinada” para estabelecer uma ligação que é óbvia significa ignorar todos os riscos que as instituições brasileiras correram sob o bolsonarismo e depende ou de alienação profunda ou da perfídia dos que se beneficiariam diretamente da morte da democracia.