Da Página do MST
A Lei 14.785/2023, conhecida como “Pacote do Veneno”, é objeto de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) protocolada no Supremo Tribunal Federal (STF) pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), Rede Sustentabilidade, Partido dos Trabalhadores (PT), Central Única dos Trabalhadores (CUT) e Confederação Nacional dos Trabalhadores Assalariados e Assalariadas Rurais (Contar). A iniciativa conta com o apoio técnico e jurídico de organizações sociais e movimentos populares.
Na ação, os autores destacam que a normativa viola princípios constitucionais norteadores da administração pública, tais como legalidade e eficiência, e direitos a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, à saúde, dos povos indígenas, dos povos tradicionais, à vida digna, do consumidor, de crianças e adolescentes, entre outros. Dado o intenso impacto ambiental e à saúde, os autores da ADI requerem que seja concedida uma medida cautelar, isto é, a suspensão dos efeitos da Lei até análise do mérito sobre a inconstitucionalidade da norma.
Jakeline Pivato, da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e Pela Vida, explica que a lei vai na contramão das reais necessidades de saúde e meio ambiente apontadas historicamente pela sociedade civil organizada.
“Flexibilizar uma lei tornando-a incapaz de proteger o ser humano e o meio ambiente é incentivar a morte. Historicamente, os movimentos, organizações e a sociedade civil têm denunciado os impactos dos agrotóxicos no Brasil. A Lei do Pacote do Veneno traz, para uma realidade já trágica, produtos ainda mais perigosos. Além de limitar a capacidade de ação de nossos órgãos reguladores, como Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Portanto, denunciamos que essa lei fere o direito à alimentação saudável, ao meio ambiente sustentável e a saúde da população brasileira. Nesse sentido, seguimos em luta afirmando sua inconstitucionalidade”, diz Pivato.
De autoria do ex-senador Blairo Maggi (PP-MT), conhecido como “rei da soja”, o projeto de lei contou com intenso lobby do agronegócio ao longo da tramitação e forte esforço da bancada vinculada ao agronegócio, a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA). Majoritária nas últimas legislaturas, a Frente aglutina hoje 47 senadores dos 81 assentos. Já na Câmara são 300 dos 513 deputados e deputadas.
Por meio de apensos à primeira versão do projeto de lei, o texto final aprovado pelas duas casas legislativas constitui uma mudança profunda na legislação anterior, a Lei 7.802/1989. O argumento central da bancada era a necessidade de atualização da normativa e que a legislação então vigente era impeditiva à aprovação de novos registros. No entanto, o Brasil teve nos últimos anos uma escala crescente de novas autorizações de agrotóxicos. No ano de aprovação do “Pacote do Veneno” foram 555 novos registros. O alto número não é muito diferente da média anual de média de 545 liberações durante o Governo Bolsonaro, com total recorde de 2.182 liberações entre 2019 e 2022.
“O Congresso, majoritariamente composto por representantes do agronegócio, legislou em benefício próprio. A expectativa da sociedade com o ajuizamento da ADI contra o Pacote do Veneno é que a legislação seja analisada pela Suprema Corte à luz de outros aspectos: proteção à saúde humana, respeito ao meio ambiente e à biodiversidade, todos fundamentais para o desenvolvimento do país”, destaca a assessora jurídica da Terra de Direitos, Camila Gomes.
Para fornecer subsídios e dados com a intenção de contribuir na tomada de decisão pela Corte, a Terra de Direitos, Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e Pela Vida, Fian Brasil, Instituto Preservar e Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado do Maranhão (Fetaema) ingressaram com pedido de amicus curiae (amigos da corte).
Flexibilização legal
Uma das mudanças mais significativas da Lei 14.785 foi a centralização da agenda dentro do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), pasta sob forte influência do agronegócio. A legislação anterior previa um modelo tripartite, segundo o qual cabia ao Mapa, a Anvisa e ao Ibama a atribuição conjunta de avaliação, a partir de critérios técnicos e científicos, para a liberação ou veto de registros e fiscalização dos agrotóxicos. Pela nova lei, esta atribuição é tarefa exclusiva do Mapa. Aos demais órgãos cabe apenas a revisão complementar à análise do Ministério. Ou seja, a avaliação dos impactos para saúde e meio ambiente com a liberação de determinados agrotóxicos pode não ocorrer se não requerida pelo Mapa.
Além da centralização do processo de liberação de registro de agrotóxicos no Mapa e desconsideração do órgão ambiental e sanitário, a nova lei traz outros retrocessos quando comparada com a lei anterior, como: uma definição mais vaga do critério para veto à registros de agrotóxicos com maior grau de toxidade, a revogação de uma série de regras relativas à pagamento de taxas ambientais, a dispensa de registro de agrotóxicos para fins de exportação, entre outras medidas.
“[a Lei] vai na direção contrária à tendência mundial de limitação e proibição desse tipo de substância tóxica, aumenta o risco de contaminação ambiental e humana, eleva o perigo de incidência de câncer e outras doenças agudas e crônicas relacionadas à exposição da população brasileira aos agrotóxicos, contamina os ecossistemas nos diferentes biomas brasileiros e põe em risco sobretudo o trabalhador rural e contraria os princípios da prevenção, precaução, agroecologia e do desenvolvimento sustentável”, apontam os autores da ação.
Impactos à saúde e meio ambiente
Na época da aprovação do projeto de lei pelo Congresso Nacional, a Anvisa destacou em nota que a medida, caso fosse implementada, “põe vidas brasileiras em risco”. Já o Ibama classificou o projeto de lei como um “flagrante retrocesso socioambiental”.
Ao longo da tramitação legislativa a proposta foi amplamente repudiada e denunciada por Relatorias Especiais da ONU, Conselho Nacional de Direitos e Instituto Nacional do Câncer (Inca), além de diversos órgãos públicos, autoridades nacionais e internacionais, conselhos de direitos e controle social, órgãos do Sistema de Justiça.
Na ação os requerentes sublinham que o grave cenário de intoxicação por agrotóxicos no Brasil deve ser intensificado com a implementação da Lei 14.784. Desde 2011 o Brasil está no topo do ranking de países que mais usam agrotóxicos. Só em 2022, foram aplicados mais agrotóxicos no país do que a quantia somada dos Estados Unidos e China – ao todo, 800 mil toneladas, segundo a FAO/ONU.
Entre 2010 e 2019, o Ministério da Saúde registrou a intoxicação de 56.870 pessoas por agrotóxicos no país. “Considerando a expressiva subnotificação nesses casos da ordem de 1 para 50, o número é potencialmente bem maior, podendo chegar a 2.843 milhões de pessoas intoxicadas por agrotóxicos no país”, aponta a ação. O tratamento por intoxicação onera o Sistema de Saúde (SUS), apontam ainda. Cada dólar gasto em agrotóxicos no Brasil custa $1,08 para o SUS, no tratamento de intoxicações causadas por estas substâncias.
Os autores ainda destacam o alto risco de registros e uso de agrotóxicos com potencial cancerígeno.
Na ADI ainda se destaca o uso intenso de agrotóxicos voltado para a produção de commodities, como soja e milho, e não de alimentos como é presente no discurso do agronegócio. Outro destaque é o impacto ambiental. “Já é fartamente documentado que esse tipo de produção agropecuária gera desmatamento e, consequentemente, contribui para as emissões de GEE [gases de efeito-estufa]”, enfatizam.
Na ação destacam ainda que a “ausência de ação eficaz e preventiva do Poder Público para evitar a catástrofe humanitária e ambiental que assola diversas regiões e povos do país, viola frontalmente os princípios como os da legalidade e moralidade”, princípios da administração pública. Os autores sublinham que a decisão da ministra Carmen Lúcia no âmbito da ADPF 760, de retomada do Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia, enfatiza o dever do Poder Público observar os princípios de prevenção e precaução em normas, como as leis, que tratam de questões ambientais.
*Editado por Solange Engelmann