Jair Bolsonaro não será o único a prestar contas com a lei em 2025 por causa da tentativa de golpe, enredo cujo capítulo mais violento foi o levante de seus partidários em 8 de janeiro de 2023 em Brasília. A Polícia Militar da capital brasileira está no banco dos réus e logo sua cúpula no dia do quebra-quebra será julgada pelo Supremo Tribunal Federal.

A corporação é protagonista de um lado obscuro da novela. Foi capturada pelo bolsonarismo nos últimos anos, daí, tudo indica, ter facilitado as coisas para aqueles que tomaram e destruíram a sede dos Três Poderes. A apuração interna de responsabilidades esbarrou em paixão política e compadrio, explicações para a PM ter escondido do STF alguns documentos. Por trás de tudo, uma rede de conexões políticas entre Bolsonaro e o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha.

Cinco integrantes da cúpula da PM em 8 de janeiro e dois policiais que chefiaram tropas na hora da arruaça são réus na Ação Penal 2.417: os coronéis Fábio Augusto Vieira, comandante da polícia na época, Klepter Rosa Gonçalves, subcomandante, Jorge Eduardo Naime, chefe do Departamento de Operações, Paulo José Ferreira Bezerra, vice-chefe, e Marcelo Casimiro Rodrigues, então à frente do Comando de Policiamento Regional. Os dois líderes das tropas são o major Flávio Silvestre de Alencar e o tenente Pereira Martins.

A corporação escondeu documentos que reforçam a omissão e leniência dos responsáveis por defender a Praça dos Três Poderes

Em dezembro, o relator da ação, Alexandre de Moraes, deu 15 dias para os advogados entregarem as alegações finais dos clientes, presos preventivamente na ocasião da denúncia da Procuradoria-Geral da República, em agosto de 2023, e soltos entre março e maio de 2024. A Procuradoria pede a condenação por omissão diante de quatro crimes no 8 de Janeiro: tentativa de golpe e de abolir com violência o Estado Democrático de Direito, dano ao patrimônio cultural e deterioração de patrimônio tombado. As penas máximas somam 23 anos. “Contaminada ideologicamente, a cúpula da PMDF, especialmente pelos ora denunciados, esperava uma insurgência popular que poderia assegurar a permanência de Jair Bolsonaro na Presidência”, descreve a acusação. “Havia, portanto, um alinhamento ideológico e de propósitos entre os denunciados e aqueles que pleiteavam uma intervenção militar.”

O “alinhamento ideológico” é visível em mensagens de celular trocadas pelos acusados e obtidas pela Procuradoria. Muitas fake news sobre fraude nas urnas e pregação golpista. Em 28 de outubro de 2022, antevéspera do segundo turno da eleição, Gonçalves enviou a Vieira um áudio em que um terceiro dizia: “Na hora que der o resultado das eleições que o Lula ganhou, vai ser colocado em prática o artigo 142, viu?” O artigo 142 da Constituição define o papel das Forças Armadas, e entre eles está a garantia da lei e da ordem a pedido de algum dos Poderes. Bolsonaro precisava do caos nas ruas para convocar os militares e baixar um decreto para anular a eleição. Em 1° de novembro de 2022, Casimiro enviou uma imagem na qual o capitão ria com a seguinte inscrição: “A cara de quem tem cartas na manga”. Reação de Vieira: “Será que o brasileiro tem jeito?”

O “alinhamento ideológico” explica o fato de a cúpula da PM não ter agido como deveria ante as pistas sobre o que estava por vir. Em 7 de janeiro de 2023, circulou em um grupo de WhatsApp de PMs a seguinte mensagem: “Atenção para possíveis deslocamentos e tentativas de invasão. Há muita gente instigando este ato e temos alta possibilidade de ‘lobos solitários’ ou pequenos grupos de ‘heróis’”. Seu autor era o capitão Wesley Eufrásio, da área de inteligência do Departamento de Operações. Estava infiltrado no acampamento na porta do QG do Exército. O grupo de WhatsApp chamava-se ADI/DOP, siglas para Agência de Inteligência e Departamento de Operações. O chefe do DOP era Naime, formalmente de férias, mas na rua na hora do levante. Bezerra, o sub, tinha um espião civil no acampamento. Contou em 7 de janeiro a Gonçalves, ao reproduzir certo relato recebido dele: “Vieram preparados para a guerra mesmo”.

Vieira, Gonçalves, Naime, Bezerra e Rodrigues serão julgados em breve pelo Supremo – Imagem: Carlos Gandra/CLDF, Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil, Waldemir Barreto/Agência Senado, Joel Rodrigues/Agência Brasília e Marcos Oliveira/Agência Senado

Além das descobertas sobre o estado de ânimo e os propósitos dos manifestantes, dois episódios deveriam ter servido para a PM esperar o pior. Daquele acampamento na porta do Exército saíram bolsonaristas que depredaram Brasília em 12 de dezembro de 2022, dia da diplomação de Lula na Justiça Eleitoral, e a bomba colocada num caminhão-tanque perto do aeroporto da cidade na véspera do Natal. A PM não prendeu ninguém no dia 12. E quem desarmou a bomba foi a Polícia Civil.

Apesar dos alertas de inteligência e dos episódios de dezembro de 2022, a cúpula da PM preparou mal a atuação da polícia no 8 de Janeiro. Poucos homens e inexperientes, inclusive recém-formados. Decisão, diz a Procuradoria, tomada por Gonçalves em conjunto com Vieira, Naime e Bezerra. Espantoso também que o coronel à frente da área responsável pelo trânsito, Edvã Souza, no cargo atualmente, tenha dito do alto de um carro de som em 8 de janeiro de 2023, a manifestantes, que os escoltaria do QG do Exército à Esplanada dos Ministérios. “A manifestação é democrática, é correta, e nós estamos aqui para fazer a segurança dos senhores na via”, declarou.

A coronel Habka não esconde suas preferências – Imagem: Redes sociais

Relatório do major Silvestre expõe o despreparo da PM de Brasília no 8 de Janeiro. O major comandou tropas na Esplanada dos Ministérios naquele dia. Botou no papel o que fez e viu de 5 a 8 de janeiro. A reportagem obteve o documento. Ele escreveu, entre outras, ter pedido no dia 5 comida para a tropa e que, no dia 8, não havia. Obra de outro réu, Casimiro, seu chefe no Comando de Policiamento Regional, o CPR. Silvestre anotou que nenhum policial de batalhão especial se apresentou a ele. E que, para “futuras manifestações com possibilidade de confronto”, era preciso destacar mais gente.

Esse relatório abre outro capítulo. Se houve “alinhamento ideológico” da ­cúpula da PM com a turma do 8 de Janeiro, existiu em seguida na polícia uma tentativa de salvar a pele de alguns. Tentativa movida a compadrio e laços políticos. O relato de Silvestre foi esquecido internamente e ocultado do Supremo. Em maio de 2023, Moraes havia requisitado à PM tudo o que houvesse sobre a preparação para o 8 de Janeiro e a atuação em si. O chefe da corporação na época era Gonçalves. O juiz foi avisado 16 meses depois pela juíza-ouvidora da Corte, Flávia Martins de Carvalho, de que o coronel não tinha mandado tudo. Em 8 de outubro do ano passado, deu 24 horas para o comando da PM remeter o que faltava, “sob pena de desobediência”. Recebeu a resposta em 11 de outubro. O relatório do major estaria no pacote.

A PM atuou mais como escolta do que como contenção dos golpistas do 8 de Janeiro

Era do interesse da defesa de Silvestre que a papelada constasse dos autos. Mostraria que o PM teria feito a parte dele no dia do quebra-quebra. E que ele e sua tropa teriam abandonado a posição inicial da manifestação em razão de um pedido de socorro de Vieira. O chefe da PM estava, em tese, de férias, mas compareceu à Esplanada dos Ministérios e acabou cercado por manifestantes no Congresso, há quem diga que aos prantos. A Procuradoria acusa Silvestre de, com o deslocamento, ter facilitado a invasão do Supremo. O relatório do major havia sido deixado de lado também em um documento de 13 de janeiro de 2023 escrito pelo coronel Adriano André dos Santos Henrique, substituto de Casimiro no CPR. O documento, obtido pela reportagem, tirava do CPR e jogava para o Departamento de Operações as responsabilidades por falhas na manifestação. O CPR é hierarquicamente subordinado ao departamento. Henrique havia sido nomeado para o CPR em 11 de janeiro de 2023 por Gonçalves, designado comandante-geral da PM no dia seguinte à insurreição pelo interventor federal, Ricardo Cappelli. Desde junho de 2024, o policial é chefe de gabinete da atual comandante-geral, a coronel Ana Paula Barros Habka. A ela Moraes determinou que remetesse ao STF documentos em 24 horas, “sob pena de desobediência”. Habka, Henrique, Casimiro e o atual corregedor da PM, o coronel Leonardo Siqueira Santos, são colegas da 5ª turma do curso de formação de oficiais.

Habka e Siqueira têm preferências políticas claras. Ela segue no Instagram os perfis Bolsonaro Esporte Clube, Central Bolsonarista e Mulheres Com Bolsonaro. Na mesma rede, a página da corregedoria de Siqueira segue Jair Bolsonaro, o senador Sergio Moro e o deputado Sargento Fahur, PM reformado do Paraná que é um radical apoiador do capitão. A chefe de gabinete de Siqueira é a major Cristiane Caldeira, que participou, de farda, de uma vaquinha online para arrecadar fundos para os colegas réus no Supremo. Pediu o dinheiro após a prisão preventiva dos parceiros, em agosto de 2023. Ter usado farda no apelo por doações foi irregular. Pressionada, a corregedoria abriu uma investigação sobre o caso. Até dezembro de 2024, mais de um ano depois, nada de conclusão.

A PM não enviou a Alexandre de Moraes o relatório do major Silvestre, essencial para entender as decisões no fatídico 8 de Janeiro – Imagem: Redes sociais

A major é esposa de um advogado, Edson da Silva Marques, defensor de Sebastião Coelho da Silva, desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de Brasília e uma cabeça jurídica a serviço do bolsonarismo. Em junho de 2024, o Conselho Nacional de Justiça instaurou um processo contra Silva por incitar o golpismo. O então magistrado atacara Alexandre de Moraes em 2022 e frequentara o acampamento bolsonarista no QG do Exército naquele ano. Seu advogado no processo no CNJ é Marques. Silva defendeu no Supremo o primeiro réu julgado pelo 8 de Janeiro, Aécio Lúcio Costa Pereira, condenado a 17 anos de cadeia.

Na ação penal contra os sete PMs, Siqueira foi testemunha de defesa, arrolado por um dos réus, Gonçalves, aquele que o nomeara para o posto. Depôs em maio de 2024. “No caso do coronel Fábio Augusto”, comentou no interrogatório, “guardo uma relação mais próxima. Ele foi meu padrinho de casamento, ele foi instrutor no curso de cavalaria… Conheço a família, frequento a sua residência.” Há quem veja no compadrio a explicação para Vieira ter sido poupado em um Inquérito Policial Militar aberto em 10 de janeiro de 2023. O IPM fora requerido pelo corregedor de então, Valtênio Antônio de Oliveira. Siqueira era corregedor-adjunto. Figurava como “testemunha” no inquérito. A investigação foi relâmpago, dois meses. Foi conduzida por um coronel, Wilson Sarmento dos Santos, “irmão” de Siqueira na maçonaria. Concluiu que Vieira não tinha culpa. Jogou a conta no colo de Naime, Casimiro e Bezerra.

A relação de Hermeto e Vieira é mais do que profissional – Imagem: Redes sociais

Em nome de Siqueira, a assessoria de comunicação da PM diz que não couberam a ele nem a autoria do IPM nem a homologação das conclusões. A homologação e a determinação para abrir processos administrativos contra Naime, Casimiro e Bezerra couberam ao coronel Adão Teixeira de Melo, antecessor de Habka na chefia da tropa. Um PM experiente, conhecedor dos personagens e da corregedoria, sustenta que todo IPM é revisado pelo corregedor. E que Siqueira é um cérebro por trás do plano de salvar a pele de alguns personagens. Seria esse o motivo para o corregedor ter pedido a Moraes acesso aos autos do processo contra os sete PMs. O juiz negou a solicitação.

A tentativa de proteger certos pescoços e a própria omissão da cúpula da PM no 8 de Janeiro não existiriam caso não houvesse respaldo político. Quase todos os personagens do enredo pertencem a uma mesma conexão política, ligada tanto ao governo local quanto ao bolsonarismo. Guarde esses nomes, leitor: Jorge Oliveira, ministro do Tribunal de Contas da União, João Hermeto, deputado local em Brasília pelo MDB, Márcio Cavalcante de Vasconcelos, candidato a deputado federal pelo MDB de Brasília em 2022, e Anderson Torres, ministro da Justiça com Bolsonaro. Os três primeiros são PMs e Torres, delegado da PF. Oliveira foi assessor de Bolsonaro na Câmara dos Deputados e secretário-geral da Presidência do capitão em 2019 e 2020. Vasconcelos trabalhou com ele na Presidência. Hermeto foi líder do governo Ibaneis Rocha, do MDB, no Legislativo brasiliense em 2021 e 2022, e acaba de voltar ao cargo. Foi ainda o relator da CPI local sobre o 8 de Janeiro. Torres foi secretário de Segurança Pública duas vezes com Rocha. Em sua casa, a PF achou a minuta de um decreto golpista para ser assinado pelo então presidente.

Os acusados mantêm relações pessoais e partidárias. E usam a estrutura da PM para se promover politicamente

Quando Oliveira estava para deixar a Presidência e ir para o TCU, Vasconcelos foi trabalhar com Torres na Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal. Em abril de 2021, tornou-se comandante-geral da PM, por articulação de Oliveira. Habka, a atual comandante, subiu na gestão dele: era chefe da área de pessoal. Vieira assumiu a chefia da PM em abril de 2022, após Vasconcelos se desligar para disputar a Câmara. Havia sido indicado por Hermeto. Em 2023, a PF encontrou na casa de Rocha uma planilha com os padrinhos políticos de vários cargos. Hermeto era quem escolhia o chefe da PM. Eis a razão para ter protegido Vieira no relatório final da CPI. O texto diz ainda não haver prova de golpismo de Bolsonaro. A propósito, o presidente da CPI, Chico Vigilante, do PT, despontava na planilha do governador como padrinho de dois cargos.

Na primeira vez em que foi líder legislativo de Rocha, Hermeto empregou, de fevereiro de 2021 a janeiro de 2023, Flávia Sampaio, mulher de Torres. E este contratou para o Ministério da Justiça a esposa de Naime, Marina Fiuza, de junho de 2021 a março de 2022. Hermeto é deputado distrital que tem na PM sua base eleitoral. Vasconcelos concorreu a federal em 2022 colado nele, na esperança de cativar o eleitor do colega de farda. O coordenador da campanha foi Naime, em 2022 à frente da Associação dos Oficiais da PM de Brasília, a Asof. Na última eleição, houve uso da PM e da Asof em favor das campanhas de Rocha, Hermeto e Vasconcelos. É o que diz uma ação levada, em setembro de 2022, ao Tribunal Regional Eleitoral local por abuso de poder político e econômico contra o trio. É de autoria de um PM que concorreu a deputado federal pelo PSD, Charles Magalhães. “Os representados de forma ostensiva vêm usando as instalações, equipamentos, recursos e todos os meios da Polícia Militar e dos Bombeiros para realizar campanha”, diz o documento.

Oliveira e Vasconcelos eram próximos de Bolsonaro e trabalharam no governo – Imagem: Marcos Corrêa/PR

O texto descreve atos realizados em dependências da polícia nos quais houve promoção de Rocha, Hermeto e Vasconcelos. Cita em particular um evento marcado para 17 de setembro de 2022, batizado de “grande encontro de policiais e bombeiros militares” com Rocha e Hermeto. O evento foi convocado, segundo a denúncia, com celulares oficiais da PM. A Asof o apoiou e divulgou entre seus associados. Colocou-se na posição de organizadora, distribuiu panfleto com a imagem do governador e trombeteou o ato em seu site. A lei proíbe entidade classista de doar a campanhas. A propaganda foi tão escancarada que integrantes da Asof chiaram e Naime viu-se obrigado a voltar atrás.

A ação denuncia ainda que cursos de formação de praças da PM foram usados de forma eleitoreira. Cita um episódio específico, o de um professor-major chamado Fernando Siqueira Guimarães. A reportagem obteve um áudio com uma aula de 2022 do major. Foi gravado por um aluno escandalizado. Na “aula”, Guimarães diz que os PMs “necessitamos de representação política”, até para conseguir “valorização pecuniária e financeira”. Induz a turma a votar em Rocha, Hermeto e Bolsonaro. “Nós temos poder informal com o presidente da República. Temos pelo menos cinco PMs que falam semanalmente com ele”, diz. Oliveira foi mencionado como um dos que falavam com Bolsonaro. Guimarães foi recompensado por Rocha e Hermeto. Em janeiro de 2023, ganhou a chefia de uma unidade administrativa (espécie de prefeitura) do Distrito Federal. Salário: 18 mil reais, fora os 22 mil da PM. Ficou no posto até maio de 2024.

A PM do Distrito Federal está “apodrecida”, diz um militar, que defende a condenação e expulsão dos acusados

A PM de Brasília, diz um policial experiente, está apodrecida. Para ele, é preciso que todos os responsáveis pela situação e pelo 8 de Janeiro sejam punidos no Supremo e internamente, com demissões e processos administrativos. Segundo ele, a corporação rachou. A base, soldados e cabos, está inconformada com a cúpula. É o caso do cabo Carlos Vitório, expulso da corporação, em março de 2024, por ter defendido vacinar colegas na pandemia de Coronavírus. Agora utiliza o Instagram como “voz dos praças” para denunciar policiais e a corporação. Alguns dos documentos desta reportagem foram divulgados por ele. Vitório costuma dizer que é comum ouvir na PM, diante de um malfeito: “Não vai dar nada. Por quê? Porque nunca deu. E se der? Dá pouca coisa, quase nada, vale o risco”. A máxima valerá agora? •


Golpistas “radicais”

Eduardo e Michelle Bolsonaro queriam sangue nas ruas

Golpistas radicais, segundo Mauro Cid – Imagem: Redes sociais

O terreno para o acerto de contas de Jair Bolsonaro com a Justiça tem sido preparado neste início de ano. Vieram a público novas revelações a respeito de falcatruas do ex-presidente. Soube-se que ele assinou uma procuração para o ex-ministro Fábio Wajngarten recuperar escondido umas joias. Que a Polícia Federal vê as blitzes da Polícia Rodoviária Federal em estradas do Nordeste na eleição como parte de um plano golpista. E que Michelle e Eduardo, esposa e filho do capitão, eram do time do golpe.

Michelle e Eduardo foram alcaguetados pelo tenente-coronel do Exército Mauro Cesar Barbosa Cid, ex-chefe dos ajudantes de ordem de Bolsonaro na Presidência. Cid selou uma delação em 2023 e a transcrição do primeiro depoimento nesse acordo foi divulgada pelo jornalista Elio Gaspari. Um relato que tira um pouco do, digamos, “brilho” com que muitos embalaram o general Marco Antônio Freire Gomes, último chefe do Exército sob o governo Bolsonaro.

Segundo a delação de Cid, Bolsonaro ouviu três tipos de vozes após a derrota na eleição. As mais radicais queriam virar a mesa. Uns pela via de suposta fraude nas urnas, encontrar “prova” (delírio…) de “roubo” e, assim, anular a vitória de Lula. Eram dessa ala o general Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde, e o presidente do PL, Valdemar Costa Neto. O PL, recorde-se, recorreu ao Tribunal Superior Eleitoral logo após o pleito com uma ação a alegar fraude.

Outras vozes “radicais” defendiam uma ação armada, caso do general Mário Fernandes, aquele do plano “Punhal Verde e Amarelo”, de captura do juiz Alexandre de Moraes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral no período da eleição. Essa ala contava ainda com o ex-ministro do Turismo Gilson Machado, que esteve na casa de Donald Trump no dia da vitória do norte-americano, em companhia de Eduardo Bolsonaro, mais um a defender um golpe armado e elo com os CACs, atiradores registrados. “Compunha também o referido grupo a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro; que tais pessoas conversavam constantemente com o ex-presidente, instigando-o para dar um golpe de Estado”, diz Cid no depoimento.

O delator colocou-se como integrante do segundo tipo voz ouvida por Bolsonaro. Os “moderados” achavam que estava tudo errado no País e na eleição, mas que qualquer coisa feita contra o resultado seria vista como golpe. O pelotão tinha generais, entre eles Freire Gomes, Estevam ­Theophilo, chefe de Operações Terrestres do Exército, e Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, ministro da Defesa.

Entre os “moderados”, alguns pensavam que o capitão deveria deixar o País. Por que, a delação não diz. Fugir da tentação golpista? Esperar uma confusão, com militares nas ruas, que levasse Bolsonaro de volta ao poder? Em 26 de dezembro de 2022, Cid escreveu numa mensagem de celular: “Vai sim! Ponto de honra! Nada está acabado ainda da nossa parte!” Respondia a um ruralista que queria saber se ainda haveria “churrasco”, palavra que parece ter sido a senha para uns planos bolsonaristas. “O pessoal q colaborou c a carne, estão me cobrando se vai ser feito mesmo o churrasco. Pois estão colocando em dúvida, a minha solicitação”, indagava o ruralista.

Mais dois empresários do agro, Nabhan Garcia e Paulo Junqueira, também seriam a favor de o capitão deixar o Brasil. Junqueira teria sido o financiador da viagem de Bolsonaro para a Flórida em 30 de dezembro de 2022. Um dia depois da viagem, um genro de Junqueira, o advogado Samuel Sollito, entregou um envelope com dinheiro a Bolsonaro.

O terceiro tipo de voz ouvida pelo então presidente foi descrita como “conservadora”. Acreditavam que ele deveria aceitar a derrota eleitoral e se tornar líder da oposição a Lula. Esse escrete teria Flávio Bolsonaro, outro filho de Jair, e o comandante da FAB à época, Carlos Alberto Baptista Jr. O chefe da Marinha na ocasião, Almir Garnier, estava no polo oposto àquele de Baptista Jr. O almirante, segundo Cid, não aderiria ao golpe sem que o Exército pulasse na canoa. Freire Gomes, líder verde-oliva, era, no relato do delator, um “meio-termo” entre Garnier e ­Baptista Jr. O que significa que tinha um pé na canoa golpista, não foi um herói democrata.

Publicado na edição n° 1347 de CartaCapital, em 05 de fevereiro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Ação entre amigos’

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Last Update: 30/01/2025