“Hoje é dia de dizermos em alto e bom som: ainda estamos aqui. Estamos vivos e a democracia está viva”, declarou o presidente Lula em 8 de janeiro. Três dias antes, Fernanda Torres havia ganhado um inédito prêmio internacional para uma brasileira, o Globo de Ouro de melhor atriz, por sua atuação no filme Ainda Estou Aqui, sobre a captura e o sumiço de Rubens Paiva na ditadura. Eis a explicação para as palavras de Lula em um evento realizado no Palácio do Planalto, destinado a lembrar os dois anos do quebra-quebra bolsonarista em Brasília. Ao agradecer o prêmio, Fernanda comentou que a história de Eunice Paiva, a viúva interpretada por ela, permite pensar em como sobreviver em tempos difíceis, os quais se repetem “agora no mundo, com tanto medo”.
O “medo” tem um rosto-síntese: Donald Trump. O retorno do republicano à Casa Branca em 20 de janeiro, confirmada pelo Congresso norte-americano um dia após a consagração de Fernanda, tem anistia à vista para os invasores do Capitólio em 6 de janeiro de 2021. É uma promessa de campanha. As denúncias contra Trump pela invasão do Congresso foram retiradas pelo procurador especial Jack Smith assim que o acusado venceu a eleição. A cabeça de Smith era outra promessa do ídolo de Bolsonaro. Trump voltará ao poder aliado aos chefões das big techs, um dos quais, Mark Zuckerberg (do WhatsApp, Facebook e Instagram), avisou na terça-feira 7: vai apoiar o futuro líder dos Estados Unidos no combate a qualquer governo que tente botar as redes sociais na linha. Cruzada que contava desde o início com Elon Musk, dono do ex-Twitter e futuro secretário do governo dos EUA.
Ao anunciar sua decisão, Zuckerberg fez um comentário dirigido elipticamente ao Brasil: “Países latino-americanos têm tribunais secretos que podem ordenar empresas para silenciosamente derrubar as coisas”. A, digamos, “ideia” assemelha-se a algo que o jornalista Glenn Greenwald tem difundido nos EUA sobre o STF, com base em material repassado por advogados do ex-Twitter. Prenúncio de guerra do bloco Trump–big techs contra o tribunal e o governo Lula não apenas no capítulo “regulação das redes sociais”, mas no julgamento de Bolsonaro por tentativa de golpe. O capitão é um fanático do vale-tudo nas redes e as usa para iludir a opinião pública de que é perseguido pela Corte Suprema. A propósito, ele teve o passaporte apreendido pela Polícia Federal em fevereiro de 2024, não pode ir à posse do ídolo. Quer a liberação do documento, pedido negado pelo STF quando pretendia viajar a Israel, a convite do governo Netanyahu, em maio de 2024.
Edson Fachin: “O Supremo teve, e tem, papel decisivo na defesa da ordem democrática”
A solenidade de Lula na quarta-feira 8 foi concebida para reavivar as razões pelas quais haverá um acerto de contas de Bolsonaro e seus militares golpistas com a lei. O Supremo responsabilizou até agora 898 acusados pelo quebra-quebra de dois anos atrás em Brasília (o Ministério Público denunciou 1.682 até o fim de 2024), dos quais 371 foram condenados à prisão, com penas de 3 a 17 anos. Dentre os sentenciados, 122 estão foragidos, metade no exterior. “Todos pagarão pelos crimes que cometeram, inclusive os que planejaram o assassinato do presidente (eleito), do vice-presidente (eleito) e do presidente (na eleição de 2022) do TSE”, afirmou Lula na cerimônia. Os derrotados nas urnas, conforme descobertas da PF, tinham um plano, batizado com dois nomes distintos, Copa 2022 e Punhal Verde Amarelo, de captura de Lula, seu vice, Geraldo Alckmin, e do juiz Alexandre de Moraes, ex-comandante do TSE.
Moraes foi o mais aplaudido ao ter o nome anunciado para o palco de autoridades no Planalto. Lula brincou ao chamá-lo de Xandão, apelido inventado pelos bolsonaristas para irritar o togado, mas que caiu no gosto da trincheira política oposta. O ódio maior do capitão e seus partidários não é contra Lula, mas contra o magistrado e o Supremo. Eis a razão da campana perto da casa de Moraes por militares em dezembro de 2022, segundo a PF, e de o tribunal ter sido mais destruído do que o Congresso e o Planalto em 8 de janeiro de 2023. Os danos à Corte somaram 12 milhões de reais (8 milhões em perdas não recuperadas e 4 milhões com reformas). Ao Congresso, 5 milhões. Ao Planalto, 4,3 milhões (2,5 milhões foram gastos em recuperação até o momento, aí incluída a restauração de 221 obras de arte). O evento com Lula marcou a conclusão da restauração de um relógio do século XVIII e de um quadro (As Mulatas) do pintor Di Cavalcanti, morto em 1976.
Elisabeth Cavalcanti, filha do pintor, estava na plateia. Idem dois netos de Rubens Paiva (Chico e Juca Avelino Paiva), anunciados quando Lula assinou um decreto para instituir um prêmio anual para quem se destacar no plano social, intelectual e político na defesa da democracia. Nome da condecoração: Eunice Paiva. No discurso em seguida, Lula falou da responsabilização dos golpistas. Possui visão privilegiada dos acontecimentos, mas não cabe a ele puni-los. Essa é tarefa do Supremo. E do tribunal emanam pistas de que o acerto de contas virá.
A violência de 8 de janeiro de 2023, disse o presidente do STF, Luís Roberto Barroso, em um texto lido em seu nome no Planalto, foi “a face visível de um movimento subterrâneo que articulava um golpe de Estado”. “A maturidade institucional”, prosseguiu Barroso, “exige responsabilização por desvios dessa natureza.” Ele deixa o comando da Corte em setembro, no lugar entra Edson Fachin. “O Supremo teve, e tem, papel decisivo na defesa da lei e da ordem democrática”, afirmou Fachin, após ler o discurso de Barroso. “O juiz não pode deixar de responsabilizar quem violou as regras do jogo.”
Na avaliação de um ministro de Lula, Bolsonaro e seus fardados serão julgados no segundo semestre. O banco dos réus não deve ser o plenário da Corte de 11, mas uma de suas duas turmas de 5. Desde 2024, o julgamento de ações penais nascidas no próprio Supremo, como os processos contra detentores de foro privilegiado, não ocorre no plenário, mas nas turmas. Aquela encarregada de cuidar dos casos sobre a tentativa de golpe é a que tem Moraes. Os outros quatro integrantes dessa turma, a Primeira, são Cármen Lúcia, Cristiano Zanin, Flávio Dino e Luiz Fux. Não há indicados de Bolsonaro (André Mendonça e Nunes Marques), ou seja, diminuem as chances de as ações andarem à velocidade de tartaruga.
A Primeira Turma prepara-se para julgar, logo ao voltar das férias em fevereiro, uma trupe bolsonarista essencial no quebra-quebra, a cúpula da Polícia Militar do Distrito Federal. Oito PMs são réus desde fevereiro de 2024, entre eles o comandante e o subcomandante da corporação na época do levante, os coronéis Fábio Augusto Vieira e Klepter Rosa Gonçalves. Na acusação da Procuradoria-Geral da República, há provas e pistas de que a turma fez corpo mole, para facilitar a tentativa de golpe. Esta consistia em causar caos, levar militares às ruas e, por tabela, devolver Bolsonaro ao poder. A atual chefe da PM de Brasília, coronel Ana Paula Barros Habka, e o corregedor da instituição, coronel Leonardo Siqueira dos Santos, também têm credenciais bolsonaristas.
Paulo Gonet: “Atos de violência contra a democracia hão de ter consequências”
Para que os processos contra o ex-presidente e seus fardados comecem, é preciso que a Procuradoria-Geral da República tome a mesma providência do caso dos PMs, apresentar ao Supremo uma denúncia criminal. Não há dúvida nos bastidores de Brasília de que Paulo Gonet agirá, incerta é a hora. Antes de chegar ao cargo, em dezembro de 2023, Gonet havia deixado claro a visão que tem de um enredo que vai da pré-campanha de Bolsonaro ao quebra-quebra de 8 de janeiro de 2023. Segundo ele, foi uma mesma novela em vários capítulos: fake news contra as urnas e a lisura do TSE, reunião de Bolsonaro com embaixadores estrangeiros para “anunciar” que o pleito seria roubado, acampamentos na porta de quartéis e bloqueios de estradas a pedir golpe após a derrota do capitão, vandalismo em Brasília no dia da diplomação de Lula pela Justiça Eleitoral e o 8 de Janeiro de 2023. Esse olhar foi exposto no julgamento do TSE que em 2023 tirou por oito anos o direito de Bolsonaro disputar eleições. Gonet representou a PGR no processo.
No fim de 2024, o procurador-geral recebeu da PF o relatório final do inquérito sobre a tentativa de golpe, a esmiuçar intestinos e personagens da conspiração. E logo receberá um complemento. “Atos de violência contra a democracia hão de ter consequências penais”, disse Gonet em 8 de janeiro de 2024. Da cerimônia de agora, não participou. O presidente da Câmara, Arthur Lira, também não, por alegadas razões familiares, a exemplo do ano passado. O do Senado, Rodrigo Pacheco, tinha estado em 2024, agora se ausentou (está fora do Brasil). Enviou no lugar o vice, Veneziano Vital do Rêgo, do MDB da Paraíba. “Entre membros das Forças (Armadas) houve aqueles que não se predispuseram a subjugar-se à infâmia (…) É necessário que façamos justiça, porque não podemos tratar igual os que são desiguais”, disse o emedebista. Somente ele e Lula falaram dos militares. Os chefes das três forças foram à solenidade, como em 2024. “É possível a gente construir Forças Armadas com o propósito de defender a soberania nacional”, declarou o presidente.
Nas três investigações a envolver Bolsonaro já concluídas (comércio de joias, cartão fajuto de vacina e tentativa de golpe), a PF incriminou 62 nomes diferentes, dos quais 35 são militares. Um deles é um general quatro estrelas, Walter Braga Netto, preso preventivamente desde 14 de dezembro, algo inédito na história brasileira. Em um evento organizado pelo Supremo para lembrar os dois anos do 8 de Janeiro de 2023, o juiz Gilmar Mendes defendeu mudar a Constituição para que um militar interessado em entrar na política não possa mais voltar à tropa após disputar uma eleição. Há no Congresso uma proposta com esse objetivo, falta tirá-la do papel.
No mesmo evento, Moraes declarou: “Aqui é uma terra que tem lei. As redes sociais não são terra sem lei. No Brasil, só continuarão a operar se respeitarem a legislação brasileira, independentemente de bravatas de dirigentes das big techs”. Foi um comentário a propósito da decisão de Zuckerberg de não apenas apoiar Trump contra regulações pelo mundo como de relaxar regras de autocontrole de suas redes sociais, algo que tem tudo para levar à disseminação de mentiras, discursos de ódio e pregações criminosas. O ex-Twitter ficou fora do ar no Brasil por mais de um mês em 2024, por ordem do Supremo, depois de Musk ter dito que não cumpriria mais decisões da Corte brasileira. Ocorrerá o mesmo com as plataformas de Zuckerberg?
A regulação das redes sociais no Brasil é uma espécie de etapa prévia do julgamento de Bolsonaro. Por dois motivos. Uma é a certeza no Supremo de que o capitão e seus partidários as usarão para pressionar e atacar a Corte, a fim de tentar salvar a pele dos acusados. Recorde-se que, em 2019, o tribunal instaurou por conta própria um inquérito sobre milícias digitais, justamente quando ficou claro que o então presidente via o STF como um freio a seus propósitos. O outro motivo é que as redes sociais foram fundamentais no quebra-quebra bolsonarista em Brasília dois anos atrás. “É faticamente impossível defender, após o dia 8 de janeiro, que o sistema de autorregulação funciona. Falência total e absoluta, instrumentalização e, lamentavelmente, parte de conivência”, disse Moraes em 28 de novembro. “Por que digo falência? Porque tudo foi organizado pelas redes, ou parte das redes.”
No dia do comentário de Moraes, o STF começou um julgamento capaz de abrir caminho para punir plataformas digitais sempre que um usuário disseminar mentira ou discurso de ódio. Em pauta, duas ações. Uma do Facebook, outra do Google. Em ambas, as empresas querem isenção de responsabilidade, baseadas no artigo 19 do Marco Civil da Internet, lei de 2014. O tribunal preferia que o Congresso tivesse aprovado uma legislação reguladora das plataformas. O Senado fez a parte dele em 2020. Já os deputados… Tremeram, em maio de 2023, diante do lobby das big techs e da grita bolsonarista. E ficaram de mãos atadas em abril de 2024, logo após Musk e seu ex-Twitter detonarem uma campanha contra Moraes e o STF.
Naquela época, Lira, presidente da Câmara até fevereiro, havia rasgado o texto então existente e criado um grupo de trabalho para fazer tudo do zero. O autor da proposta jogada no lixo, Orlando Silva, do PCdoB, dizia a portas fechadas que Lira tinha empurrado para o Supremo o ônus da regulação, o que era bom para o bolsonarismo, pois ajudava a turma a alegar um suposto “ativismo judicial” da Corte. Com Trump em cena de novo e unido às big techs, dá para imaginar o tamanho do lobby, caso a Câmara volte ao tema a partir de agora. Daí que uma decisão pela via judicial parece mais simples, embora essa decisão não esgote tudo o que uma lei eventualmente aprovada poderia abarcar.
A propósito, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tem quase pronta para enviar ao Congresso uma lei de tributação das plataformas, em linha com uma posição da OCDE, clube de países ricos e aspirantes, de que toda multinacional deveria pagar, no mínimo, 15% de imposto, não importa onde atue ou tenha sede. Mais encrenca à vista para o Brasil na era Donald Trump II. •
Publicado na edição n° 1344 de CartaCapital, em 15 de janeiro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Abraço partido’