Várias trabalhadoras domésticas resgatadas, independentemente de idade, brincam com bonecas. Isso significa que elas nunca superaram a infância interrompida pelo trabalho escravo”, revela Tatiana Leal Bivar Simonetti, procuradora do Ministério Público do Trabalho. Passados 136 anos da promulgação da Lei Áurea, o Brasil ainda não conseguiu se livrar dessa chaga. Somente no ano passado, 3.240 trabalhadores foram resgatados de condições análogas à escravidão no País, número 57% superior ao de 2022. Grande parte das vítimas foi encontrada em grandes fazendas, trabalhando em atividades ligadas à agricultura e à pecuária. Nas cidades, o famigerado “quartinho de empregada” representa uma atualização da senzala colonial.
Em processo de atualização pelo Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania (MDHC) após 16 anos, o Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo vai incluir o trabalho doméstico aviltado entre as práticas de escravidão contemporâneas a serem combatidas com prioridade pelas autoridades. Muitas das vítimas dessa forma de exploração nem sequer são capazes de identificar o regime de servidão a que estão submetidas. Afinal, “são quase da família”, como costumam repetir os empregadores. “Como podem ser consideradas membros da família se são mantidas naquele quartinho escuro nos fundos da casa, sem acesso a escola, sem plano de saúde? Muitas vezes, elas não recebem nem sequer salários. Imagine os outros direitos que lhes são negados”, lamenta Simonetti, vice-coordenadora do grupo de combate ao trabalho escravo e ao tráfico de pessoas do MPT.
A nova versão do documento está sendo elaborada em parceria com a OIT
Normalmente oriundas de regiões interioranas de alta vulnerabilidade social, as domésticas resgatadas por vezes são entregues aos patrões pela própria família, na expectativa de que a então menina tenha acesso à educação formal e melhores oportunidades no futuro. “O que a gente identifica é que elas não têm vida social própria, não têm autonomia. Não sabem ler nem escrever. Algumas são portadoras de deficiências físicas não tratadas, costumam ter uma dependência emocional gigantesca, porque elas não saem, não têm amigos, não têm namorado”, observa a procuradora. “Não é só uma dependência financeira, é uma situação de completa submissão.”
A nova versão do plano nacional está sendo construída em parceria com a Organização Internacional do Trabalho, afirma Bruno Renato Teixeira, secretário nacional de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos. “Com essa cooperação, temos acesso às melhores experiências do mundo no combate às formas contemporâneas de escravidão, ao que há de mais moderno hoje na relação entre capital e trabalho”, diz. A missão de atualizar o documento de 2008 foi confiada a um grupo interministerial, com a participação de servidores das pastas da Justiça e do Trabalho, além de representantes de organizações da sociedade civil e do empresariado.
O aumento do número de trabalhadores resgatados é atribuído pelo governo Lula ao fortalecimento da estrutura de fiscalização, que havia sido sucateada nas gestões de Michel Temer e Jair Bolsonaro. A procuradora Simonetti aponta, ainda, um amadurecimento do trabalho desenvolvido pela Polícia Federal, pelo Ministério do Trabalho e pelo próprio MPT. “Antes, nosso desafio era fazer um trabalho razoavelmente coordenado, distribuir as atribuições a cada núcleo competente. Avançamos muito nessa articulação e, hoje, conseguimos desenvolver grandes forças-tarefas.”
Para Teixeira, o maior desafio é a prevenção. Isto é, evitar que pessoas em situação de vulnerabilidade social fiquem expostas ao assédio dos aliciadores de mão de obra escravizada, conhecidos como “gatos”. Para isso, ressalta o secretário, é necessário fortalecer as políticas públicas nos territórios onde ocorre esse tipo de aliciamento: cidades muito pequenas do interior e municípios com os menores Índices de Desenvolvimento Humano do País. “Na medida em que desenvolvemos um trabalho de educação sobre os direitos humanos nesses territórios, temos condições de instruir a população para que ela tenha condições de reagir a esse tipo de assédio, que ainda ocorre de forma tão sistemática em algumas regiões do Brasil.”
O pós-resgate ainda é bastante desafiador, pois demanda um trabalho de muitas frentes para amparar a pessoa resgatada e garantir a ressocialização dela em seu lugar de origem. “O desafio é levar a pessoa de volta para casa em segurança, assegurando direitos e meios de sobrevivência que as protejam desse aliciamento brutal”, diz Teixeira. Cabe à Defensoria Pública da União acionar uma ampla rede de proteção social, além de garantir reparações materiais e financeiras às vítimas. Um dos primeiros passos é incluí-las no Cadastro Único do governo federal, para que elas tenham acesso a programas sociais como o Bolsa Família e o Minha Casa, Minha Vida.
O plano incluirá a servidão doméstica entre as formas de escravidão a serem combatidas com prioridade no País
Apesar de todo o esforço para a reconstrução da vida de quem foi resgatado, o Estado ainda patina na punição aos escravocratas. É comum que os valores de multas e ressarcimentos sejam baixos e que ninguém seja responsabilizado no âmbito penal. Embora o artigo 149 do Código Penal preveja até oito anos de reclusão a quem reduzir uma pessoa à “condição análoga à de escravo”, um terço dos indiciados nem sequer vai a julgamento e somente 6,3% dos réus são condenados definitivamente, atesta uma pesquisa da Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da Faculdade de Direito da UFMG. Pior, apenas 1% dos acusados acaba sentenciado a mais de quatro anos de prisão e cumpre pena em regime fechado. Quando a pena é inferior a esse período, o condenado migra para o regime semiaberto e pode pleitear a prestação de serviços comunitários.
A advogada Amarílis Costa, coordenadora-executiva da Rede Liberdade, instituição que apoia trabalhadores resgatados, defende que a legislação precisa ser aperfeiçoada, para que seja possível punir os aliciadores. “Precisamos delimitar o tipo penal de forma clara, para que seja possível pegar esses caras, porque hoje isso não acontece. Os casos são tratados muito mais no âmbito administrativo do que na esfera criminal.”
Costa relembra um caso descoberto em junho do ano passado. Sônia Maria de Jesus, hoje com 51 anos, é uma mulher negra, com restrições cognitivas, que foi resgatada em uma operação contra o trabalho escravo na casa do desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, Jorge Luiz de Borba, em Florianópolis. Não se sabe ao certo com que idade ela começou a trabalhar para a família Borba, acredita-se que tenha sido ainda na adolescência. Sônia foi retirada de sua família biológica com 9 anos de idade, em Osasco, Região Metropolitana de São Paulo. A mãe dela, Deolina Ana de Jesus, passou a vida em busca da filha, e morreu em 2016 sem resposta.
Sônia é surda e nunca recebeu atendimento médico adequado, tampouco frequentou a escola. Com extrema dependência emocional e financeira dos patrões, ela não conseguiu se desvencilhar dos grilhões depois de ter sido resgatada, e foi devolvida pela própria Justiça à família Borba. O desembargador alega que a doméstica “faz parte da família” e que ele se considera seu “pai socioafetivo”. Após o flagrante de trabalho escravo, decidiu adotá-la. “Que pai é esse que não manda o filho à escola? Todos os outros três filhos dele tiveram educação formal e são muito bem-sucedidos. A Sônia foram negados esses direitos. Quando essas famílias ricas dizem que a empregada é membro da família, na verdade, ela é parte da mobília. Trata-se de uma coisificação que acaba naturalizando que essa pessoa possa ser apartada de todos os seus direitos”, explica Costa. Atualmente, os irmãos biológicos de Sônia tentam recuperar a guarda dela na Justiça. •
Publicado na edição n° 1317 de CartaCapital, em 03 de julho de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Abolição inconclusa’