Abolição inacabada: a falsa liberdade do Brasil pós-escravidão
por André Augusto Araújo Oliveira
A assinatura da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888, é frequentemente celebrada como o marco da liberdade no Brasil. Mas o que se vende como libertação foi, na prática, um redesenho sutil de um projeto secular de opressão. Como adverte Munanga (2004, p. 45), tratou-se de um “ato sem projeto”: não houve reparação, não houve reintegração, não houve política pública. Houve, sim, um despejo silencioso de corpos negros à própria sorte, abandonados em um país que nunca os reconheceu como sujeitos plenos.
Dessa forma, a abolição foi incompleta porque nunca se propôs a ser justa. O racismo, longe de ter sido abolido com a escravidão, tornou-se estrutural. Da senzala ao cortiço, do tronco ao camburão, a violência apenas se metamorfoseou. Santos (2006, p. 14) nos convida a enxergar a “geografia das ausências” — lugares onde o Estado se ausenta, mas o controle permanece, onde a cidade é planejada para uns e negada para outros. A urbanização excludente é também uma forma de cativeiro.
É preciso compreender que ser negro no Brasil é habitar uma prisão sem grades, é viver sob suspeita. A cada 23 minutos, um jovem negro é assassinado no país, segundo o Mapa da Violência. É o genocídio da juventude negra — silencioso, sistemático, estatístico. Souza (1983, p. 57) já nos alertava para o efeito psíquico dessa necropolítica: “a dor de não ser branco”, o sentimento de inadequação permanente que acompanha quem nunca foi reconhecido como parte da nação.
Gonzalez (1988, p. 223), por sua vez, nomeou com precisão o que vivemos: racismo à brasileira, “mascarado, dissimulado, cordial”. Um racismo que samba, mas não repara. Que celebra a “miscigenação”, mas mantém a hierarquia. A democracia racial sempre foi um mito útil para silenciar denúncias. O Brasil prefere o espetáculo da integração ao enfrentamento da desigualdade.
Como nos lembra Hooks (1995, p. 38), “o amor é um ato de vontade — a intenção de nutrir o próprio crescimento e o de outrem”. Mas o Estado brasileiro nunca amou sua população negra. Ao contrário: a política sempre foi de contenção, controle e abandono. A ausência de políticas de ação afirmativa por mais de um século é prova disso. A cada gesto de resistência, o Estado responde com repressão ou folclorização.
Neste sentido, a invisibilidade também é um projeto. Nascimento (1980, p. 117) já denunciava o epistemicídio, a negação das contribuições africanas na formação do Brasil. Para ele, o país sofre de um “branqueamento simbólico” que elimina a memória negra dos livros, dos monumentos, da política. Adichie (2009, p. 5) chama isso de “o perigo de uma história única” — a narrativa branca que silencia as vozes negras, como se elas nunca tivessem existido.
É preciso recontar a história. É fundamental nos lembrarmos de Luiz Gama, abolicionista negro, que foi apagado da memória nacional, cuja luta visceral denunciava nos tribunais e na imprensa, os horrores da escravidão e defendia a liberdade como direito inalienável. Foi ele quem abriu caminhos para a abolição — e, ainda assim, segue ausente dos livros escolares. A memória negra no Brasil é tratada como exceção, nunca como fundação.
Gonçalves, em Um defeito de cor (2006, p. 476), recupera brilhantemente a voz de uma mulher negra escravizada que ousa narrar sua própria história. É um grito contra o silenciamento. Como o personagem do escritor e poeta Couto (2000, p. 21) que diz: “O que escrevo é para não esquecer quem sou”. A escrita negra é uma forma de existir, de resistir ao apagamento.
Para Ribeiro (2017, p. 18) não basta estar presente, é preciso ser visto. A representatividade sem poder é apenas vitrine. Enquanto os corpos negros estiverem nas favelas, mas não nos gabinetes; nos palcos, mas não nas bancadas; nas estatísticas, mas não nas decisões — a abolição seguirá inacabada. A visibilidade precisa ser acompanhada de redistribuição e reconhecimento.
É o que propõe Bispo (2021, p. 93) quando instiga a desobediência epistemológica como caminho: romper com as categorias do opressor, construir outra lógica. A liberdade não virá da mão que oprime. Precisamos descolonizar o olhar, a linguagem, a própria ideia de cidade. Como ele mesmo afirma, “o território é o corpo vivo da memória coletiva”. E esse corpo tem cor.
Então, devemos questionar sempre: que liberdade é essa que nos dá a palavra, mas não a escuta? O Brasil gosta de dizer que todos têm voz, mas nega o microfone. Quer que os negros falem, desde que não incomodem. Desde que não digam que estão morrendo, ou que exigem reparação. Desde que não revelem a farsa da democracia racial.
A escritora Angelou (1986, p. 23) assim cravou em páginas livres: “Ainda assim, me levanto”. Esse é o gesto político da população negra brasileira. Mesmo diante do abandono, ela se levanta: nas escolas de samba, nos terreiros, nas universidades, nas ruas. A abolição ainda não chegou, mas a resistência nunca partiu. É na margem que o centro treme.
Vê-se, portanto, que o Brasil que se diz ser um país de futuro, talvez nos deixe claro que, para o povo negro, esse futuro nunca chegará sem luta. Chega de adiamentos. A abolição real exige reparação histórica, justiça social, redistribuição territorial e enfrentamento do racismo como estrutura. Do contrário, seguiremos comemorando uma liberdade que nunca se realizou.
A pergunta que resta é incômoda e necessária: quanto tempo mais o Brasil vai celebrar uma mentira como se fosse conquista?
Referências
Adichie, C. N. (2009). O perigo de uma história única. Companhia das Letras.
Angelou, M. (1986). Still I Rise. Random House.
Bispo, N. (2021). Colonialismo e resistência. UBU.
Couto, M. (2000). O último voo do flamingo. Companhia das Letras.
Gonçalves, A. M. (2006). Um defeito de cor. Record.
Gonzalez, L. (1988). Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: Léila Gonzalez – Primavera para as rosas negras. Zahar.
Gama, L. (s.d.). Cartas e escritos políticos. Diversas edições.
Hooks, B. (1995). Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. WMF Martins Fontes.
Munanga, K. (2004). Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Vozes.
Nascimento, A. (1980). O genocídio do negro brasileiro. Paz e Terra.
Ribeiro, D. (2017). Quem tem medo do feminismo negro? Companhia das Letras.
Santos, M. (2006). A natureza do espaço. EDUSP.
Santos Souza, N. (1983). Tornar-se negro: Ou As vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Zahar.
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