A poesia é, por excelência, o gênero literário das imagens, da síntese de ideias e da sonoridade das palavras. Acessível a leitores menos experientes, mas não menos profundo por sua clareza, o poeta Pablo Neruda (1904–1973) é um clássico cheio de vitalidade.
Versos vigorosos do chileno estão agora reunidos na antologia Bestiário (L&PM). Até então inédita no Brasil, a edição póstuma foi um projeto idealizado por Neruda ainda em vida. Em carta ao amigo Giuseppe Bellini, em 1964, ele contou sobre o desejo de publicar uma coletânea sobre animais. É do italiano Bellini, portanto, a organização da edição, que seguiu a vontade de Neruda.
Honrando a tradição dos bestiários – nome dado às compilações medievais que reuniam textos e imagens sobre animais –, a edição é ilustrada. A acompanhar as poesias estão as belas pinturas do ilustrador argentino Luis Scafati, que fez uso de técnicas mistas, incluindo a aquarela.
A ideia da integração do homem com a natureza – ambos, como dizia papa Francisco, compartilhando a “casa comum” sobre a Terra – permeia todas as odes. Outra concepção de Francisco, a dos animais como irmãos, aparece no livro. São dois latino-americanos, um chileno e outro argentino, com olhares generosos sobre a vida selvagem.

Bestiário. Pablo Neruda. Tradução: José Eduardo Degrazia. L&PM Editores (136 págs., 72,90 reais) – Compre na Amazon
Uma das odes mais interessantes, e que exemplifica bem a ideia de irmandade, é aquela dedicada ao cavalo. Nela, o eu-lírico chama o cavalo de “pobre irmão”. É como se o animal, comumente usado para trabalho, fosse comparado a um operário pobre: Trotou por todos os caminhos duros,/ comeu mal com seus dentes amarelos, /bebeu pouco – seu dono/ usava mais pau que poço.
Cabe destacar a tradução competente de José Eduardo Degrazia, que manteve o ritmo e o sentido dos versos livres do compilado. A experiência de ler Neruda no idioma original é, porém, possível graças à publicação em edição bilíngue, em espanhol e português.
Em Bestiário, Neruda é capaz de criar imagens mentais nítidas dos animais. O elefante, por exemplo, passa tranquilo/e bamboleante/ com sua velha vestimenta,/ com sua roupagem/ de árvore enrugada. É notável a ideia do poeta de comparar a pele cinza e enrugada de um elefante com a casca de uma árvore.
O eu-lírico usa palavras exatas para despertar os sentidos de quem lê, seja o tato, como no caso da sensação de tocar uma árvore enrugada, seja a visão, que predomina em toda obra. O mesmo elefante é, ainda, enorme, triste e terno.
Eis uma construção poética simples, mas que explora com sagacidade a aliteração da letra “r” e, assim, promove o som no ouvido e emula o ritmo do caminhar do paquiderme.
Esse livro póstumo de Neruda deve não apenas agradar aos admiradores do ganhador do Nobel de Literatura de 1971 como tem o potencial de conquistar novos leitores de poesia. •
Publicado na edição n° 1362 de CartaCapital, em 21 de maio de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A voz lírica dos animais’