Escolhida pelo presidente para assumir o Ministério da Cultura (MinC) logo no início do governo, Margareth Menezes, cantora de sucesso e gestora cultural na Bahia, chegou à Esplanada dos Ministérios, em Brasília, para cuidar de uma pasta que havia sido extinta e reorganizar uma estrutura que havia sido extremamente fragilizada.
Na sexta-feira 14, passado um ano e meio de sua chegada ao MinC, Margareth conversou com CartaCapital, por Zoom, de seu gabinete. Dona de um sorriso gentil, ela manteve, durante a conversa, a postura da busca pelo entendimento e da escuta e desviou-se de qualquer polêmica ou embate.
CartaCapital: Como tem sido a experiência de ser ministra, ao longo deste ano e meio?
Margareth Menezes: Para mim, num primeiro momento, foi surpreendente, porque eu não estava esperando nem imaginando isso. Mas, ao mesmo tempo, me senti entusiasmada com o desafio de poder trazer, para um ministério em fase de reconstrução, minha experiência como um agente real do setor da música. São 40 anos de carreira, e eu tive, por exemplo, de criar meu próprio selo para poder gravar. Isso foi me dando alguma maturidade no entendimento do setor.
A vitória do presidente foi muito importante para nós, do setor cultural, que estávamos estrangulados por tantos ataques – ataques que partiam do lugar de onde deveria vir uma proteção. Quando cheguei, comecei a entender melhor o Ministério da Cultura e compreender do que é formado o sistema MinC. Nada nesse sistema foi criado aleatoriamente – as políticas de patrimônio, de museus, de direitos autorais, tudo isso foi criado por uma necessidade da sociedade. Mas o modus operandi anterior era o de ir, cada vez mais, destruindo as políticas culturais e o próprio ministério. Então, o momento em que cheguei foi um pouco assustador. Ao chegar ao prédio, encontrei um clima meio sorumbático, uma coisa meio entristecida.
“A falta de marcos regulatórios desequilibra a saúde do setor cultural”
Nosso primeiro movimento foi reconstruir esse sistema, trazendo pessoas, e eu, pessoalmente, me coloquei no lugar de aprendizado. Não se tratava de criar, mas de retomar. A desconstrução começou em 2016 e, quando chegamos, tudo estava praticamente parado – as próprias redes sociais do MinC mal existiam. Tivemos de reativar a Secretaria de Economia Criativa e Fomento Cultural; reconstruir o programa Cultura Viva, uma política exitosa que tem 20 anos; fortalecer a Secretaria do Audiovisual, que hoje é a bola da vez, dado o ambiente da indústria cinematográfica e dos streamings. Nossa força-tarefa, com todos os secretários, foi reinstalar esse ambiente com uma força de trabalho 20% menor que em 2016 e retomar o diálogo com o setor e com a sociedade.
CC: Por falar em marcos regulatórios e audiovisual, temos, no Congresso Nacional, dois Projetos de Lei que tratam da regulação do Vídeo sob Demanda. O governo posiciona-se a favor de algum dos PLs – o da Câmara, de autoria de um deputado do PT, ou o do Senado?
MM: Nossa posição é a de que a regulação é que tem de acolher o direito autoral e o direito patrimonial da produção independente nacional. Sem regulação, o setor não consegue criar relações equilibradas. Mas nós queremos acolher a todos, entendendo a dimensão das atividades dos streamings, dos radiodifusores e da produção independente. O amadurecimento do debate é importante porque as leis vão incidir na sociedade. Estamos falando de uma economia real. Queremos uma regulação que seja acolhedora, mas também garanta os direitos da produção nacional. Os streamings estão aqui disputando autorias e temas nacionais que hoje fazem sucesso lá fora – mas, por exemplo, fazem contratos em língua estrangeira.
CC: No caso de dois marcos do setor no século XXI, a MP 2228-1, de 2001, e Lei da TV Paga, de 2011, o governo encampou as leis, empenhando-se para aprová-las. Como o MinC pretende agir nessa discussão?
MM: Estamos agindo desde 2023. A secretária (do Audiovisual) Joelma Gonzaga tem feito um trabalho de escuta e de defesa da produção nacional. Não é fácil porque são vários interesses, e uma legislação não é uma imposição – ela envolve lobbies – e nós também convivemos com o fato de que o ambiente é diferente do de anos atrás. O estica e puxa faz parte da democracia.
CC: Você falou da economia criativa. Na primeira metade do século XX, a cultura aparecia muito ligada à educação e à ideia dos Estados nacionais. No começo do século XXI, Gilberto Gil falou em fazer um do-in antropológico, que tem a ver com o Cultura Viva, inclusive. Você citou a economia criativa, que virou uma secretaria durante o governo Dilma Rousseff. Neste momento, me parece que a política cultural está cada vez mais ligada às políticas afirmativas. Qual é, na sua visão, o principal papel de um ministério da Cultura em 2024? Ou o que você pretende deixar como legado ou marca?
MM: A gente ouve falar em economia criativa, mas nunca houve um ambiente para de fato orientar o setor nessa direção. E as duas coisas andam juntas: olhar para a economia e dar acesso a todos os cidadãos. As políticas afirmativas trazem acessibilidade, acolhimento às populações LGBTQIA+, aos povos indígenas, aos povos dos quilombos. Isso é necessário porque é o papel do governo ampliar e abraçar esses cidadãos que existem como públicos e como produtores de cultura. As políticas afirmativas têm o objetivo de fazer com que as políticas cheguem a todos. Minha marca? Acho que esta é a primeira vez que a política de nacionalização é feita nessa dimensão, com Rouanet Favelas, Rouanet Região Norte… Em cinco anos, houve estados da Região Norte sem um projeto sequer beneficiado pela Lei Rouanet. Estamos também em franco diálogo com as empresas, não só as estatais, para que elas possam usar a contrapartida da lei de fomento, que existe há 30 anos. A Lei Rouanet vem amadurecendo dentro do tempo. O dinheiro que ela mobiliza volta para a economia brasileira, e volta potencializado em vários aspectos.
CC: A busca pela mobilização das empresas está na própria origem da Lei Rouanet e foi tentada outras vezes. Por que agora isso daria certo?
MM: Temos tido respostas positivas. Está começando a haver uma consciência da potência que é a cultura brasileira. Não é o Ministério que tenta convencer, são as empresas que estão convencidas. Temos tido pedidos de reunião de empresas querendo vir ao MinC. Nossa busca é deixar um setor mais protegido em seus direitos e garantir que mais pessoas tenham acesso às políticas de cultura. A dimensão de São Paulo e Rio de Janeiro é enorme, mas isso não quer dizer que nas regiões Norte e Nordeste não haja um setor cultural com potencial econômico. Estamos também com uma política com o Ministério da Educação, para que volte a ter aula de Artes no ensino médio.
CC: No último ano, não ouvi quase ninguém falando mal da Lei Rouanet… O que aconteceu?
MM: Procuramos trabalhar sobre isso: fazer uma Instrução Normativa e um decreto e buscar dar mais transparência à execução da lei. Isso tudo traz mais segurança jurídica e administrativa, assim como o Marco Regulatório do Fomento (em trâmite no Congresso). Procuramos dar essa seriedade ao processo e defender os trabalhadores e trabalhadoras da cultura. Somos um país onde muita gente precisa de emprego, e o setor cultural é uma possibilidade de trabalho. Por menor que seja um show, tem gente trabalhando para que aquele artista esteja no palco.
CC: Para finalizar, queria tratar de uma certa percepção, do meio cultural, de que a pasta dá uma ênfase talvez excessiva às pautas afirmativas. Essa visão a respeito da sua gestão, e da secretária Joelma, pode ter a ver com o fato de vocês serem duas mulheres negras?
MM: O Ministério da Cultura tem entregado tantas coisas… As políticas afirmativas são um fio nisso tudo e elas têm o objetivo de acolher a todos. Sugiro que se observem as verdades a respeito disso.
Publicado na edição n° 1316 de CartaCapital, em 26 de junho de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A voz da cultura’