A nova edição de Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte, de Paulo Emílio Sales Gomes (1916–1977), nos oferece a oportunidade de ler (ou reler) uma das obras seminais sobre o cinema brasileiro.
O autor foi articulista de cinema do jornal O Estado de S. Paulo, professor da Universidade de Brasília (UnB) e da Universidade de São Paulo (USP) e historiador – tendo publicado outros trabalhos relevantes, como o livro Jean Vigo (1957) e o ensaio Cinema: Trajetória no Subdesenvolvimento (1973), hoje disponível no volume Uma Situação Colonial? (Companhia das Letras). Paulo Emílio foi ainda fundador e dirigente da Cinemateca Brasileira.
Sob o selo Companhia das Letras e com o apoio da equipe da Cinemateca Brasileira, o texto de Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte foi minuciosamente revisto e corrigido. Cotejou-se o manuscrito, a versão datilografada, a tese e a primeira edição, publicada em 1974 por meio de uma parceria entre a Perspectiva e Editora da Universidade de São Paulo.
Organizada por Carlos Augusto Calil, que escreveu o posfácio, no qual comenta a recepção à edição de 1974, a nova edição apresenta imagens com excelente qualidade, fundamentais para a argumentação de Paulo Emílio, não se constituindo em meras ilustrações.
Completam o volume as arguições dos professores que integraram a banca na qual o trabalho, originalmente uma tese de doutorado defendida na USP, foi avaliado: Alfredo Bosi, Francisco Luís de Almeida Sales, Walnice Nogueira Galvão e Gilda de Melo e Sousa, sua orientadora.
O trabalho é o luminoso resultado da confluência de duas linhagens intelectuais integradas por Paulo Emílio Sales Gomes.

Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte. Paulo Emílio Sales Gomes. Org.: Carlos Augusto Calil. Companhia das Letras (640 págs., 199,90 reais) – Compre na Amazon
Uma delas é representada pelos jovens que, como ele, participaram da fundação da revista Clima, no início dos anos 1940, tais como Gilda, Antonio Candido, Décio de Almeida Prado e Lourival Gomes Machado. Esse grupo foi um dos principais responsáveis pela modernização da crítica brasileira nos diversos campos artísticos.
A outra linhagem liga-se àqueles nomes que, atuando na crítica, nos cineclubes e nas cinematecas, buscaram, a partir da década de 1950, constituir as bases para a pesquisa histórica acerca do cinema brasileiro: Alex Viany, B. J. Duarte, Jurandyr Noronha, Rudá de Andrade e Walter da Silveira, entre outros.
Ao leitor desavisado, a referência de que o texto provém de uma tese de doutorado pode dar a impressão de tratar-se de uma escrita difícil, chata ou incompreensível. Pois nem de longe é. Paulo Emílio distancia-se do jargão acadêmico tradicional e passa ao largo de qualquer hermetismo. Seu estilo é envolvente; sua narrativa é bem construída; e sua argumentação não precisa de arrazoados teóricos para ser coerente.
O livro concentra-se na formação do cineasta Humberto Mauro (1897–1983), discorrendo a respeito dos filmes realizados por ele em Cataguases, cidade da Zona da Mata mineira. Entretanto, como o próprio título indica, o historiador não se contentou em analisar as obras. No primeiro capítulo, ele reconta a história da Zona da Mata entre fins do século XIX e o início do XX. No segundo, enfoca Cataguases.
O livro descreve também, com riqueza de detalhes, a inserção da família Mauro, de origem italiana, e do jovem Humberto nesse ambiente social. É como se Paulo Emílio partisse de planos gerais e progressivamente se aproximasse do personagem central, até obter um close-up.
Após a robusta contextualização do meio onde Mauro foi criado, o autor parte para o objeto central da pesquisa. O capítulo “O Cinema em Cataguases” analisa Thesouro Perdido (1927), assim como sua exibição e recepção, e busca dar conta de outros filmes que, ao contrário deste, não possuem mais cópias ou nem chegaram a ser finalizados.

Farol. Paulo Emílio foi professor e historiador, além de fundador e dirigente da Cinemateca Brasileira – Imagem: Acervo Cinemateca Brasileira
Chama atenção seu esforço para comentar Na Primavera da Vida (1926), do qual sobraram apenas 30 fotogramas, alguns registros escritos esparsos e a longínqua memória dos que participaram da produção. Nesse mesmo capítulo, Paulo Emílio introduz uma das figuras centrais do livro, Adhemar Gonzaga, então crítico na revista Cinearte e, segundo o historiador, um dos mestres de Humberto Mauro.
Dois alentados capítulos descrevem a produção, a exibição e a recepção de Braza Dormida (1928) e Sangue Mineiro (1929), além de conterem minuciosas análises fílmicas, demonstrando o grau de excelência a que Paulo Emílio chegou na difícil arte de discutir em profundidade uma obra cinematográfica. Um exemplo disso é seu olhar sobre a cena do idílio amoroso do par central de Braza Dormida, enquanto uma cobra e o vilão os espreitam.
Como se tudo isso não fosse suficiente, Paulo Emílio apresenta um estudo das discussões sobre a produção brasileira levantadas por Cinearte, a principal publicação sobre cinema no Brasil dos anos 1920. Dois de seus redatores, Gonzaga e Pedro Lima, além de haver influenciado a formação de Mauro, articularam a primeira tentativa sistemática de compreensão dos problemas que entravavam o desenvolvimento do cinema nacional
Como todo livro canônico, o de Paulo Emílio Sales Gomes foi objeto de algumas ressalvas ao longo do tempo. Talvez a mais pertinente tenha sido feita já na defesa da tese, na arguição de Alfredo Bosi. Na visão do professor, os trabalhos da geração do grupo de Clima mesclam “o enlevo pelo antigo, enquanto este compensa a aridez do presente”, gerando alguma ambiguidade.
Certa tradição do pensamento nacionalista presente em Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte parece-me dar sustentação ao que foi identificado por Bosi.
Motor fundamental para a notável pesquisa em torno de um momento da produção cinematográfica brasileira desconhecido e desprezado pelas elites culturais, essa tradição fez, ao mesmo tempo, com que a análise desconsiderasse aspectos negativos da sociedade presentes nos filmes de Mauro. É o caso do racismo impregnado na cena de Thesouro Perdido, na qual uma criança negra é comparada a um sapo.
Este clássico de 50 anos atrás demonstra a profunda, e por vezes insuspeita, ligação entre a produção cinematográfica e a sociedade brasileira
Paulo Emílio morreu três anos após a publicação do livro e não pôde ampliar suas pesquisas sobre Humberto Mauro, cuja atuação no cinema se estendeu bastante no tempo – em um segundo momento, no Rio de Janeiro.
O diretor fez filmes de ficção fundamentais, como Ganga Bruta (1933) e O Descobrimento do Brasil (1937), além de ter se dedicado, por décadas, à produção de documentários de curta-metragem para o Instituto Nacional do Cinema Educativo (Ince).
Outros historiadores deram continuidade ao trabalho iniciado por Paulo Emílio, com destaque para Carlos Roberto de Souza, Eduardo Morettin e Sheila Schvarzman, permitindo assim que conhecêssemos, com elevado grau de profundidade, a contribuição artística daquele que pode ser considerado um dos mestres fundadores do cinema brasileiro.
Mas a importância de Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte não se esgota na sua influência sobre os estudos em torno do diretor. Outros importantes eixos de pesquisa sobre o cinema brasileiro derivaram do livro: a produção nas regiões fora do eixo Rio–São Paulo; as ideias expostas nas publicações cinematográficas; a análise fílmica como base para a compreensão da obra; e os percursos do filme nacional no mercado, entre eles.
Este clássico continua bastante vivo não só porque seguirá a ser fonte de inspiração para pesquisas futuras, mas porque demonstra, com um estilo único, a profunda, e por vezes insuspeita, ligação entre a produção cinematográfica e a sociedade brasileira. •
*Professor Titular no Departamento de Artes e Comunicação da Universidade Federal de São Carlos.
Publicado na edição n° 1367 de CartaCapital, em 25 de junho de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A volta de uma obra seminal’