O principal espaço de consumo de drogas a céu aberto do País, e um dos maiores do mundo, a Cracolândia, virou um dos assuntos mais complexos de São Paulo, por englobar não só o uso desenfreado de substâncias químicas, mas também pela alta vulnerabilidade social dos frequentadores. Sobra preconceito, falta entendimento. Cientes das distorções, pesquisadores da USP e da Fundação Getulio Vargas colheram a impressão dos usuários sobre a qualidade dos serviços públicos oferecidos na região.

A maior parte dos usuários, captou a pesquisa, está no Centro não só pelo fácil acesso às drogas, mas também pelas oportunidades oferecidas. “Aqueles com trabalhos informais, desempregados, vêm parar na região porque aqui tem uma gama imensa de possibilidades. Muitos usuários partem desse mesmo princípio, aqui eles conseguem sobreviver fazendo trabalhos e bicos distintos. É um mito que eles não trabalham”, diz a pesquisadora.

A Operação Caronte alcançou a meta de “limpar” a praça, na área do futuro complexo que sediará o governo estadual. Não resolveu nem minimizou, porém, o problema. Ao contrário. “A política de circulação forçada dos usuários deu origem a outros 16 pontos de consumo de drogas em várias partes do Centro expandido”, descreve Giordano Magri, do Centro de Estudos da Metrópole, da USP e do Núcleo de Estudos da Burocracia da FGV.

Os autores iniciaram a pesquisa a fim de identificar para onde o contingente removido da praça havia se deslocado. Além de obter a percepção dos usurários sobre “os dois braços do Estado” mais presentes no território, “o que cuida e o que oprime”, diz Magri. “O processo de coleta foi muito complexo, porque várias entrevistas foram interrompidas por operações violentas. Isso nos permitiu observar de perto como é a atuação das forças policiais”, conta Amparo.

Um dos entrevistados, Vanilson Santos Conceição, de 38 anos, lembra traumatizado a abordagem de policiais da Rota na Praça Princesa Isabel. “Diziam que eu tinha ligação com ‘Os Irmãos’ (como é chamada a facção criminosa PCC), me levaram para um hotel, me espancaram muito, meteram um prego no meu ouvido, e ainda tomei dez tiros”, conta, antes de levantar a camiseta e mostrar as cicatrizes.

Cozinheiro desde os 12 anos, quando a mãe delegava a ele a tarefa de cuidar dos irmãos mais novos, em Salvador, na Bahia, Vanilson Conceição fez da obrigação uma profissão. Gosta de cozinhar para “o pessoal do projeto” e nos dias livres tem conseguido bicos em restaurantes da região. “O trabalho pode ser pequeno, mas torna a gente grande. Agora eu acredito que posso reconstruir minha família e ser alguém novamente.”

Dois anos depois, as circulações forçadas ainda acontecem duas ou três vezes por dia. A maior aglomeração concentra-se na Rua dos Protestantes. De lá, os usuários são empurrados para a Avenida Duque de Caxias, em frente à Sala São Paulo, a seis quadras de distância. Depois da limpeza, são obrigados a voltar. “Percebemos que ao longo desse período as operações policiais estão mais silenciosas”, avalia Magri. “Mas a presença ostensiva e violenta da polícia na região aumentou muito.”

Ao mesmo tempo, sugere o especialista, as ofertas de cuidado tiveram seu caráter profundamente alterado nos últimos dois anos, e o foco passou a ser as internações terapêuticas, em geral forçadas, do que na redução de danos e acolhimento.

Quase 70% dos usuários, diz a pesquisa, estiveram internados em clínicas de reabilitação ao menos uma vez. Do total, houve quem passou por tratamentos mais de 20 vezes. Os principais motivos para o fim da internação identificados foram os seguintes: fim do prazo de internação sem uma porta de saída, abstinência, falta de uma vida social ou saudade da família ou da vida na rua e as más condições da internação, especialmente diante da falta de liberdade, da medicalização e da similaridade com a prisão.

A oferta de cuidados foi reduzida, alertam os pesquisadores. Um dos principais serviços de referência dos usuários, o Cratod, foi fechado, e no lugar foi instalado o HUB de Cuidados em Crack e outras Drogas. Um ex-funcionário da unidade, o psicólogo Diego Rennó, denuncia que, desde então, o clima de trabalho tornou-se hostil e servidores que não concordam com a nova política de tratamento, focada em internações, têm sido alvo de perseguições, o que resultou em mais de 35 demissões “de profissionais comprometidos” só neste ano.

De acordo com o estudo, 80% dos usuários são homens, 80% são negros, a maioria está na região pelo uso de crack, mas há outras informações: 38% deles dizem viver no território por vontade própria, independentemente do uso, 22% afirmam que o Centro “é sua casa”, e outros 16% “se sentem bem” ali.

A Cracolândia, acredita Magri, apesar de sua complexidade, “é um espaço de acolhimento dos excluídos de seus núcleos”. O fechamento de hotéis, nos quais são oferecidas diárias em conta, e dos centros de reciclagem, fontes de renda, configura uma política de “sufocamento”. As medidas acabam “com todas as estratégias de sobrevivência”.

Em nota, a Secretaria Municipal de Segurança Urbana informa que a formação e atuação da Guarda Civil Metropolitana são pautadas pela Lei 13.022 e princípios que garantem um atendimento digno e humanitário. A reportagem não obteve resposta dos demais órgãos públicos responsáveis por essas políticas.

Publicado na edição n° 1339 de CartaCapital, em 04 de dezembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O que pensa o fluxo’

Categorized in:

Governo Lula,

Last Update: 28/11/2024