Tem três livros sobre mim. Mas ler é uma coisa, e ver é outra. Quando vi o filme pela primeira vez, fiquei muito impactado. E eu não esperava isso, porque sou muito enrustido, sou duro na queda. Mas cambaleei e me descontrolei.”
Presente ao evento de lançamento de Homem com H, longa-metragem em cartaz nos cinemas brasileiros desde a quinta-feira 1º, Ney Matogrosso fez questão de deixar claro que esta é uma cinebiografia na qual se reconhece: “As pessoas falam e fazem muitas coisas sobre mim que trazem mentiras. No filme, só vi verdade, sem pudor nenhum”.
A presença do artista ao lado do diretor do longa-metragem, Esmir Filho, do ator que o interpreta, Jesuíta Barbosa, e da produtora Verônica Stumpf, da Paris Entretenimento, na coletiva de imprensa deixou claro aquilo que, ao fim da exibição, já se intuía: trata-se de um projeto que se assume como homenagem.
Verônica, inclusive, abriu a conversa, realizada no Cine Marquise, no Conjunto Nacional, em São Paulo, agradecendo a Ney por ter permitido que essa história fosse contada da maneira como foi.
Homem com H começou a ser gestado em 2018, ano em que teve início a fase de paralisia do fomento ao cinema brasileiro. É de se imaginar que, sob o governo Jair Bolsonaro, não seria nada simples tirá-lo do papel – seja pela liberdade sexual que jorra da tela, seja por seu antimilitarismo.
De acordo com Verônica, o filme custou 17,9 milhões de reais, sendo 60% disso financiado via apoios e 40% colocado pela própria Paris – valor bastante expressivo dentro do cinema brasileiro. “É uma aposta gigante”, diz ela.
Um dos grandes méritos de Homem com H é o de ser um filme comercial que busca a comunicação com um público mais amplo – por meio de uma narrativa com começo, meio e fim, alinhavada por músicas muito conhecidas – e, ao mesmo tempo, ter a marca autoral de Esmir Filho e as marcas pessoais de Ney e de Jesuíta Barbosa.
“As pessoas falam e fazem muitas coisas que trazem mentiras. O filme, só tem verdades”
As intimidades – do artista, do diretor e do ator – parecem, de alguma forma, se entrecruzar no personagem ficcional retratado num longo arco temporal, da infância aos dias de hoje.
Diferentemente da maioria das grandes produções – e, em especial, daquelas feitas para as plataformas de streaming –, a cinebiografia teve um único roteirista, que foi o próprio Esmir Filho, convidado pela Paris para fazer o projeto.
Esmir Filho, formado em Cinema pela Fundação Álvares Penteado (Faap), em São Paulo, despontou no mercado audiovisual com o curta-metragem Tapa na Pantera (2006), um dos primeiros hits do YouTube no Brasil. Ao estrear no longa-metragem, com Os Famosos e os Duendes da Morte (2009), chamou atenção com o retrato agridoce de um adolescente que contrapunha sua realidade opaca a uma vida intensa na internet.
Não é difícil capturar algo do olhar daquele então jovem diretor em Homem com H, seja pela presença da música como uma forma de existir, seja pela jornada de um protagonista movido pelo desejo de ser quem é.
“O Ney é um artista que, desde que eu era pequeno, me assombrava”, disse o diretor no encontro com jornalistas. Ao receber o convite da Paris, logo se empolgou porque, embora fosse um projeto sob encomenda, ele sabia que a vida de Ney, em algum lugar, conversava com seu cinema.
Em 2021, na fase do isolamento social provocado pela pandemia de Covid–19, Esmir ouviu toda a discografia do cantor, em ordem cronológica. Depois, leu a autobiografia Vira-Lata de Raça (Editora Tordesilhas), de 2018. No livro, encontrou a frase que acabaria por guiar a escrita do roteiro: “Eu sempre reagi ao autoritarismo”.
“A partir dali, consegui encontrar um recorte”, conta o cineasta. “O Ney sempre disse: ‘Eu sou assim, eu danço assim, eu amo assim’.” Munido de uma visão ampla sobre Ney, Esmir Filho foi, enfim, encontrá-lo. Ouviu então um único pedido: que tudo que estivesse na tela fosse verdade.
Das 17 versões do roteiro, Ney leu 12. Outra coisa que o artista fez foi receber, mais de uma vez, Jesuíta Barbosa em sua casa. “A gente tentou trabalhar o Ney a partir de um lugar de muita integridade”, diz o ator. “A vontade era produzir uma força e uma energia que partissem também de algo meu, que eu pudesse me colocar ali. Porque é a representação de uma força que existe, mas é uma ficção.”

Versões. O diretor Esmir Filho (à esq.),o ator Jesuíta Barbosa e Ney Matogrosso trabalharam juntos na construção do personagem cujo maior lema é a liberdade – Imagem: Redes Sociais
Jesuíta, durante três meses de ensaio, teve preparação de voz para falar e cantar e preparação de corpo: “Tenho uma movimentação mais stacata, e Ney, mais arredondada. Foram muitos os profissionais envolvidos nessa preparação. Eu ficava muito nervoso na hora de cantar. O contorno do Ney foi surgindo aos poucos”. Lá pelas tantas, no set, ele começou a ser chamado de Jesuney.
Em um dos três dias nos quais o cantor acompanhou as filmagens, foi rodada a cena na qual seu personagem chega em casa e, ao lado do companheiro, contaminado pelo vírus da Aids, abre o teste de HIV e vê o resultado negativo. “Eles eram tão convincentes que eu tive uma coisa”, diz o cantor que, ainda hoje, parece perplexo com o fato de ter escapado do vírus.
O retrato dos anos 1980 é um momento bastante vibrante e libertário do filme. É nessa fase que surgem na tela a figura de Cazuza (1958–1990) e os corpos masculinos com suas tanguinhas minúsculas na praia. É também nesse período que se concentram algumas passagens mais tocantes.
Numa delas, Ney canta Pro Dia Nascer Feliz, do Barão Vermelho, com Cazuza já doente: Todo dia é dia e tudo em nome do amor/ Ah, essa é a vida que eu quis/ Procurando vaga uma hora aqui, a outra ali/ No vai e vem dos teus quadris…
O corpo, como era de se esperar, é parte fundamental da construção desse personagem que, na infância, exasperava o pai militar com seu gosto por desenhos e arte.
O mesmo corpo vítima de opressão será, ao longo da história, o corpo que reage e, mais que isso, encanta e fascina. E esse corpo é muito mostrado numa série de shows muito bem reconstituídos, mas também na intimidade. A entrelaçar palco e vida privada estão 17 canções que são, nas palavras de Esmir, a “coluna narrativa” do filme.
A alinhavar o roteiro está uma frase escrita por Ney: “Sempre reagi ao autoritarismo”
Homem com H marca, na definição de Verônica, a conclusão de um projeto 360 graus, que incluiu, antes, o musical homônimo, que estreou em 2023, e a exposição Ney Matogrosso, no Museu da Imagem e do Som, em São Paulo, aberta este ano, com mais de 200 itens do artista.
A Paris Entretenimento, que estreou na produção de um longa-metragem com Carrossel (2014), fez os filmes da franquia Detetives do Prédio Azul e, no ano passado, coproduziu Chico Bento e a Goiabaeira Maraviosa (2025), entendeu que Ney Matogrosso era, sim, um produto vendável. E dele fez um filme memorável.
Neste ano em que o cinema brasileiro, graças a Ainda Estou Aqui (2024), O Auto da Compadecida 2 (2024), Chico Bento (2025) e Vitória (2025), responde, até aqui, por 23% de todos os ingressos vendidos no País, Homem com H chega ao circuito cercado por expectativas positivas. •
Publicado na edição n° 1360 de CartaCapital, em 07 de maio de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A vida que eu quis’