A vida e o capital: acesso a medicamentos, democracia e a disputa ética no Brasil

Minha trajetória, da farmácia à presidência do Conselho Nacional de Saúde, mapeia a luta permanente entre a saúde como direito constitucional e a lógica do capital que a transforma em mercadoria. Conquistas como a Lei 13.021/14 (farmácia como estabelecimento de saúde) são frágeis e sob cerco. Analiso esta disputa através da ética em pesquisa e do esvaziamento da democracia, sintomas da ofensiva que converte direitos em acumulação privada.

A Fragilização da Democracia: Ataques à Participação, Autoritarismo e Tentativa de Ruptura

O cerco à saúde ocorre num contexto de ataque ativo à democracia, materializado em três frentes:

1.⁠ ⁠Cerceamento da Participação Social: Estrangulamento orçamentário e esvaziamento político dos conselhos e conferências de saúde, como o CNS, para silenciar a voz organizada da sociedade e retirar da saúde seu caráter de direito.
2.⁠ ⁠Recrudescimento do Autoritarismo: Fomento de uma cultura de intolerância, violência política e criminalização de movimentos sociais, criando um ambiente hostil à participação e atacando a saúde pública como “assistencialista”.
3.⁠ ⁠Tentativa de Golpe (8/1/2023): Ápice violento do desmonte institucional, uma tentativa explícita de ruptura constitucional. Demonstrou a disposição de setores do capital e suas aliados em rasgar a Constituição para impor um projeto antagônico ao SUS e aos direitos sociais.

Uma democracia frágil, sem participação popular efetiva, é o terreno fértil para o desmonte das conquistas sociais. Defender a democracia radical é condição fundamental para garantir que a vida prevaleça sobre o capital.

O Campo de Batalha da Pesquisa Clínica: Entre Acesso e Exploração

A nova Lei da Pesquisa Clínica (14.874/2024) explicita a contradição. Embora apresentada como atração de investimentos e progresso, esconde tensões cruciais:

· Finalidade: O conhecimento gerado servirá à saúde pública ou à acumulação de capital? Há risco de comoditização dos corpos brasileiros.
· Controle Ético e Soberania: A indefinição na implantação do Sistema Nacional de Ética (SINEP) pode fragilizar a proteção dos participantes, enfraquecendo o papel orientador da Resolução CNS 510/2016. A Resolução CNS 588/2018 é instrumento vital de resistência.
· Acesso Pós-Pesquisa: Sem contrapesos como a priorização ética para produção local, repete-se o histórico de o país servir de campo de testes para produtos que depois permanecem inacessíveis.

Parcerias Estratégicas: A Indústria como Território de Disputa

A indústria farmacêutica, com seu poder de inovação e produção, é ator estruturante. O desafio é mediar sua potência, subordinando-a à saúde pública. Instrumentos como Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDP), a política de genéricos e a regulação de biossimilares mostram que é possível estabelecer uma relação de negociação com contrapartidas sociais rígidas. A pandemia provou que a dependência externa é uma falha estratégica. Ter uma indústria local forte é questão de soberania sanitária.

Portanto, o setor é um território de disputa política. O Estado deve atuar como indutor do desenvolvimento e como guardião inflexível do interesse público, exigindo acesso, preço justo e transferência de tecnologia.

A Luta Política como Ferramenta

As contradições na pesquisa e o retrocesso democrático são faces da mesma moeda. A fragilização da democracia retira do povo a condução política da saúde, enquanto a apropriação do conhecimento o converte em instrumento de lucro. O combate pela ética em pesquisa é o combate pelo controle social da ciência. O SUS, os genéricos e as resoluções do CNS são trincheiras históricas. Só através da organização popular, da reivindicação da democracia radical e da função social do Estado poderemos forjar, a partir das contradições do capital, um novo estado onde a vida prevaleça. A ferramenta para essa edificação segue sendo a luta política.

O farmacêutico Ronald Ferreira dos Santos é coordenador da Comissão Nacional de Saúde do PCdoB e ex-presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS).

Artigo Anterior

Sintaema repudia a perseguição política à deputada Mônica Seixas

Próximo Artigo

Senado aprova realocação de trabalhadores de elétricas privatizadas

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter por e-mail para receber as últimas publicações diretamente na sua caixa de entrada.
Não enviaremos spam!