Perdemos “Pepe” Mujica, mas isso não significa ausência, porque homens como ele se tornam sementes. Sua partida é a lembrança de que otros mundos son posibles, mesmo quando o presente insiste em nos dizer o contrário.
José Mujica, nascido em Montevidéu em 1935, filho de uma família modesta com raízes rurais e imigrantes, cresceu entre o campo e a cidade, entre a humildade e o desejo de justiça. Seu mergulho na política não veio do cálculo, mas da indignação.
Inspirado pelas ideias do socialismo latino-americano (principalmente pela Revolução Cubana) e pelas injustiças que testemunhava, tornou-se militante do Movimento de Libertação Nacional. Ao contrário das caricaturas simplistas, os tupamaros não eram só guerrilheiros: eram, sobretudo, jovens intelectuais e trabalhadores que buscavam uma via revolucionária para combater a concentração de terra, riqueza e poder. Sua biografia é, como dizia, a prova de que “triunfar na vida não é ganhar, mas levantar e recomeçar cada vez que se cai”.
Foi baleado seis vezes e passou quase 14 anos atrás das grades, grande parte deles em condições sub-humanas. Esteve em solitárias, em calabouços e sob tortura psicológica. Em vez de sair dali com ódio, o fez com uma filosofia, e é isso que distingue Mujica.
“Aqueles anos de solidão foram provavelmente os que mais me ensinaram […]. Tive de repensar tudo e aprender a me aprofundar em mim mesmo, às vezes, para não enlouquecer”, afirmou certa vez. Sua libertação, com o fim da ditadura, foi o começo de uma nova etapa, não mais como combatente armado, mas como semeador de um projeto ético e coletivo de sociedade.
Como um dos fundadores do Movimento de Participação Popular (MPP), ajudou a construir a Frente Ampla como força política plural, democrática e enraizada nos movimentos sociais. Por meio dela, chegou à Câmara e ao Senado, depois ao Ministério da Agricultura, e, finalmente, à Presidência. Seu governo (2010-2015) não foi perfeito, mas foi profundamente transformador.
Sob sua liderança, o Uruguai se tornou referência em políticas progressistas: legalizou o aborto e o casamento entre pessoas do mesmo sexo e, de modo inédito, regulamentou o mercado da maconha, enfrentando abertamente o tráfico. E não o fez em nome de modismos, mas de princípios: “Não é bonito legalizar a maconha, mas pior é dar pessoas ao narcotráfico”.
Internacionalmente, Mujica não buscou holofotes, mas protagonizou os gestos mais simbólicos da ética política deste século. Em seu discurso na Rio+20, em 2012, proferiu uma das mais radicais críticas ao modelo de civilização baseado no consumo: “O desenvolvimento não pode ser contra a felicidade. Tem de ser a favor da felicidade humana: do amor pela vida, das relações humanas, do cuidado com os filhos, de ter amigos, de ter o essencial. Justamente porque esse é o maior tesouro que temos: a felicidade”.
Sua filosofia é uma síntese de existencialismo simples e radicalismo ético. Mujica nos desafiava a abandonar a idolatria do mercado e da acumulação, e nos convocava a pensar a política como serviço, como solidariedade. Acreditava, como poucos, que as instituições não bastam se não forem habitadas por valores. Por isso, sempre recusou os luxos do cargo: abriu mão de 90% de seu salário presidencial e continuou a morar em sua chácara em Rincón del Cerro, a dirigir seu Fusca azul, a receber seus companheiros de luta e a adotar cães abandonados.
Em um tempo em que a política virou espetáculo, Mujica permaneceu homem. Humano e falível, mas profundamente coerente. Suas declarações desconcertavam os tecnocratas porque traziam à tona o que a lógica capitalista busca esconder: o essencial.
Acreditava em um socialismo ético e defendia que o grande dilema de nosso tempo não era apenas a pobreza material, mas a colonização dos desejos. “Pobre não é quem tem pouco, mas aquele que necessita infinitamente de muito e deseja cada vez mais”, dizia. Sua filosofia política era, ao mesmo tempo, simplicidade camponesa e sofisticação moral.
Ao lado de figuras como Salvador Allende, Paulo Freire e Che Guevara, Mujica integra a constelação dos latino-americanos que não se deixaram corromper pela dor ou pelo poder. Sua utopia não era uma abstração romântica, mas uma postura diante da vida. Provava ser possível fazer política sem mentir, sem enriquecer, sem se afastar do povo. Isso, por si só, já é revolucionário.
Seu discurso na Assembleia-Geral das Nações Unidas em 2013 permanece como um dos manifestos mais impactantes da história contemporânea: “Parece que nascemos apenas para consumir e consumir e, quando não podemos, nos enchemos de frustração, pobreza e até autoexclusão”.
Na ocasião, levou chefes de Estado a refletir diante da simplicidade de um camponês que enunciava verdades milenares. “Nossa civilização montou um desafio mentiroso e, assim como vamos, não é possível satisfazer esse sentido de esbanjamento que se deu à vida. Isso se massifica como uma cultura de nossa época, sempre dirigida pela acumulação e pelo mercado.”
Anos depois, refletindo sobre sua trajetória, Mujica resumiria esse pensamento com a lucidez de quem conheceu a escassez e recusou os excessos: “Aprendi que, se você não pode ser feliz com poucas coisas, não vai ser feliz com muitas”.
Ao nos despedirmos de Pepe Mujica, não enterramos um político, mas celebramos um símbolo. Um raro exemplo de coerência entre vida e palavra. De humildade como forma de poder. De radicalidade como expressão do amor ao povo. Foi, como diria Eduardo Galeano, um daqueles seres que ardem a vida com tanta paixão que transformam tudo ao redor. Como escreveu Galeano em El libro de los abrazos:
“Não há dois fogos iguais. Há fogos grandes e fogos pequenos, fogos de todas as cores. Há gente de fogo sereno, que nem percebe o vento, e gente de fogo louco que enche o ar de faíscas. Alguns fogos, fogos bobos, não iluminam nem aquecem. Mas outros ardem a vida com tanta paixão que não se pode olhá-los sem piscar, e quem se aproxima se incendeia”.
O escritor uruguaio dizia que a utopia serve para que a gente continue a caminhar. Mujica foi esse andarilho da utopia, semeando caminhos por onde passava. Sua morte não deve ser lida como fim, mas como testemunho: de que a vida pode ser digna e de que o mundo, mesmo esmagado pelo cinismo e pelas mercadorias, pode ser outro.
Hoje, perdemos Pepe Mujica. E ao mesmo tempo, ganhamos a obrigação de manter sua chama acesa — nos movimentos populares, nas universidades, nas assembleias, nas ocupações, nas palavras que ainda ousam sonhar.
Porque sim, Pepe, otros mundos son posibles.
E a tua vida foi a maior prova disso. Hasta siempre!