Os professores da Rede Estadual de Educação do Pará entraram em greve no dia 23 de janeiro. Centenas de indígenas de dezenas de etnias e quilombolas ocupam a Secretaria de Educação do Estado do Pará (SEDUC-PA) desde o dia 14. Os dois movimentos têm um ponto de partida em comum.
A reforma neoliberal na educação paraense
No dia 18 de dezembro de 2024, a Assembleia Legislativa do Estado do Pará (ALEPA) votou em caráter de urgência o Projeto de Lei (PL) 729/2024, o “PL do Magistério”, que após aprovação se tornou a Lei 10.820/2024, a qual retira direitos e concentra poderes nas mãos do secretário de educação, Rossieli Soares.
Entre as diversas alterações, a reforma neoliberal do governo paraense revogou leis — nº 5.351 de 1986, nº 7.442 de 1992, nºs 7.806 (Lei do SOME) e 8.030 de 2014, nº 9.322 de 2021 e incisos das leis 5.810 de 1994 e 9.830 de 2023 —, aumentou a carga-horária mais frequente entre os professores para 160 horas mensais, forçando-os a permanecer na escola durante os dois turnos diários, e diminuiu significativamente as gratificações de diversas modalidades docentes em atendimento especial — são os casos do Sistema de organização Modular de Ensino (SOME) em todas suas modalidades, inclusive a indígena (SOMEI), da educação especial, da educação do sistema prisional e socioeducativo.
Muitas alterações ainda precisariam ser regulamentadas em documentos posteriores. Nas palavras do Secretário da pasta, as medidas também previam a profissionalização da gestão que passaria a ter maiores possibilidades de atuação, o que indicava concentração de poderes, controle sobre os profissionais e ameaça aos processos democráticos de consulta à comunidade escolar quanto a mudanças nos programas de ensino e direcionamentos gerais de organização da Secretaria e das escolas.
Um exemplo da concentração de poder se referia às progressões dos professores, que deixariam de ser automáticas e passariam a depender da avaliação dos gestores e de recursos financeiros da pasta.
Para dar continuidade à reforma neoliberal da SEDUC-PA, estava prevista a criação da Fundação de Apoio para o Desenvolvimento da Educação Paraense (Fadep) pelo Projeto de Lei nº 124/2023. A instituição facilitaria uma série de operações que estão previstas pela gestão Rossieli, como parcerias público-privadas com empresas de tecnologias, de formação continuada e de avaliação que têm crescentemente atendido as secretarias de educação ao longo do país, evidenciando o caráter de mercantilização endógena da educação pública na reforma em curso.
Resistência dos professores
A resistência docente foi deflagrada antes mesmo do pacote de reformas do fim do ano. O movimento “fora CEMEP” eclodiu em novembro, depois da orientação do governo para que as escolas no campo não realizassem matrículas dos primeiros anos do ensino médio no SOME (único programa que oferta educação presencial de ensino médio nas áreas rurais), transferindo toda esta demanda para o Centro de Mídias da Educação Paraense (CEMEP), programa que transmitirá aulas via televisão de Belém para 314 comunidades, na diversidade de modos de vida da Amazônia paraense.
Constatou-se, portanto, que estava em curso uma gradual substituição do SOME pelo CEMEP. Apesar de já existirem investimentos de grande porte no CEMEP e rumores de uma possível substituição, foi nesse momento que ela se tornou uma realidade e os professores somistas (em defesa do SOME) iniciaram um importante movimento junto a estudantes e suas famílias contra o avanço da precarização da educação no campo.
O SOME, que leva aulas presenciais modulares no campo, foi criado há mais de 40 anos devido a um histórico de ausência de escolas e de pessoal nas áreas rurais. Essa condição persiste até hoje, pois não existe escola estadual de ensino médio em 93 (65%) dos 144 municípios do estado (INEP, 2023) (ver mapa abaixo).
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Contudo, a nova gestão da SEDUC-PA não apenas não planeja a construção de escolas para atender a população dos campos, das águas e das florestas, — o que demandaria investimentos subsequentes como a abertura de concurso público e a contratação de diretores, de coordenadores e de pessoal em geral para as unidades escolares —, mas pretende estender a todos os modos de vida da Amazônia paraense — ribeirinhos, agricultores, extrativistas, quilombolas e indígenas — a mesma aula de geografia e história, por exemplo, dada em português e transmitida de um estúdio em Belém.
Agentes da reforma: expertise do secretário de educação, financiamento internacional e elite empresária brasileira
A convite de Hélder, Rossieli Soares vem do centro-sul do país reconhecido pelas ideias que o acompanham, as quais têm sido implementadas com pioneirismo nas reformulações neoliberais na educação do Paraná e de São Paulo, como o são a privatização da construção e da gestão de escolas públicas, o uso intensivo de mediação tecnológica para atividades pedagógicas que subvalorizam e substituem o professor e a modificação estrutural das carreiras.
Em geral, essas ações são tomadas por meio de recomendações de corte de gastos na educação e de estabelecimento de parcerias público-privadas entre as secretarias de educação e as empresas do setor. Essas orientações chegam de fora do Brasil por meio de documentos de órgãos multilaterais como o Banco Mundial (BM), o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), mas recebem o apoio e são adaptadas pelas elites empresariais do Brasil que estão disfarçadas de organizações aparentemente inofensivas — o Todos pela Educação, a Fundação Roberto Marinho (FRM), o instituto Ayrton Senna, a Fundação Unibanco, entre muitos outros.
Um caso claro dessa articulação pode ser exemplificado na origem do modelo de teleaula no Pará. O programa Mundiar (1) foi implementado com consultoria da FRM a partir do Regulamento Operativo elaborado com base no Contrato de Empréstimo 2933/OC-BR, firmado em 2013 entre a SEDUC-PA e o BID. Esse mesmo Regulamento deu origem ao que hoje se chama CEMEP, a partir da instalação da mediação tecnológica na educação básica, permitida pela Reforma do Ensino Médio (Lei 13.415/17).
É valioso perceber como as ações estão todas coordenadas: empréstimo internacional, flexibilização das leis e atuação das consultorias. Os empresários recebem o dinheiro do empréstimo via Estado, o Estado se endivida e fica refém de influências e a população do campo paraense recebe a pior educação de ensino médio do país — sem escola e sem professores próprios. Para a expansão do CEMEP, a SEDUC-PA gastou mais de 340 milhões de reais desse empréstimo para acessar 1.650 antenas da Starlink em pregão vencido pela mesma empresa investigada no Amazonas (2).
Rossieli e Hélder atuam, portanto, com o apoio tanto desses organismos internacionais quanto de grandes grupos empresariais representados pelas fundações e institutos da educação, que enxergam as dificuldades da educação pública como uma grande oportunidade de negócio.
Disputa: territórios e suas culturas versus o avanço do capital neoextrativista
As comunidades indígenas não aceitam que a única alternativa de educação de nível médio para o seus seja um ensino à distância cujo diálogo, literalmente, não existe, uma vez que professores de Belém falam apenas em português. Como podem educar um povo indígena sem conhecer sua cultura e território?
Após semanas de ocupação da Secretaria por lideranças indígenas e de greve dos professores, ambos apoiados por uma forte articulação de mídia alternativa feita pelos próprios movimentos, a pauta de revogação da Lei 10.820/2024 logrou êxito ainda a ser confirmado. O governador assinou termo de compromisso pela revogação mesmo após, dias antes, fazer red face em reunião com centenas de outros indígenas arregimentados e trazidos de suas aldeias, com uso de recursos do estado, para Belém. A pauta central ainda pede a exoneração de Rossieli Soares. A revogação na Assembleia legislativa do Pará está prevista para os próximos dias. O compromisso com o governador ainda prevê que as antigas leis voltem a valer.
Contudo, o processo que levou a esta vitória parcial indica o prognóstico sobre a verdadeira disputa intensificada pela COP30 na Amazônia. O balcão de negócios aberto a empresas e nações estrangeiras deverá oferecer terras, florestas, rios e saberes tradicionais e populares em troca de investimentos e acordos de cooperação entre agentes locais e externos, como vimos ao longo da história do Brasil.
O fato de a extinção do SOMEI não respeitar a determinação de consulta aos povos, resguardada pela Convenção nº 169 sobre Povos indígenas e Tribais, demonstra bem qual será o lugar dos povos tradicionais nessa negociação, que terá os seus territórios como principal alvo. Este modelo de tratamento que se apresentou na Lei 10.820, foi repetido há poucos meses quando o governador vendeu um bilhão de reais em créditos de carbono sem consultar as populações dos territórios (3).
O ajuste espacial pela expansão territorial dos negócios é mais uma vez uma solução para a crise do capital e a Amazônia é um grande rincão para tanto. Uma educação desterritorializada se encaixa como uma dupla tacada nesse contexto: serve como fonte de renda ela mesma, como vimos acima, mas também contribui para a desvalorização dos modos de vida locais e para a intensificação das promessas, sempre mais falsas no terceiro mundo (quanto mais na Amazônia!), de lógicas globalizantes características do mundo urbano — a racionalidade para o emprego e para o consumo.
As ações da avenida Faria Lima em São Paulo certamente subiram com a extinção do SOME, do SOMEI e com a aprovação da reforma neoliberal da educação paraense, pois o mais poderoso pacto econômico-político atual das elites do país, a favor de uma economia baseada nas commodities de exportação, tem ali uma de suas forças principais. Segundo o Ministério da Agricultura, o valor aplicado no setor por meio de instrumentos financeiros privados quase triplicou entre 2021 e 2023, passando de 383 para 953 bilhões de reais (4). É contra essas forças que os líderes indígenas ocuparam a SEDUC-PA hoje. É contra essas forças que teremos que lutar em cada ação da SEDUC de Rossieli e da COP de Helder.
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Felipe Garcia Passos é professor do Instituto Federal do Pará (IFPa) e doutorando no Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo. Desenvolve pesquisa e extensão em políticas educacionais, ensino de geografia e linguagem cartográfica no IFPa e no Laboratório de Ensino de Geografia e Material Didático (LEMADI/DG/USP)
Publicado originalmente em Amazônia Latitude, esta versão contém atualizações.
Notas
1 Nesse programa já extinto, as aulas gravadas eram passadas via televisor e seu objetivo era reduzir a distorção idade-série a estudantes acima dos 13 anos.
2 Para mais detalhes: https://www.estadao.com.br/politica/contrato-de-r-59-milhoes-para-internet-da-starlink-de-musk-vira-alvo-de-investigacoes-no-amazonas/
3 Para detalhes: https://www.agenciapara.com.br/noticia/59887/para-assina-acordo-inedito-e-vende-quase-r-1-bilhao-de-creditos-de-carbono.
4 Alguns instrumentos são: Letra de Crédito do Agronegócio (LCA), Certificado de Direitos Creditórios do Agronegócio (CDCA), Certificado de Recebíveis do Agronegócio (CRA), Fundo de Investimento em Cadeias Agroindustriais (Fiagro).