A última mensagem de Pierre Nora (1931-2025)
Era fins de junho na Europa. O ano era 2015. Fazia calor na França. A primavera anunciava o verão em Paris. As férias estudantis sopravam contornos. O período acadêmico abraçava seu fim. Ao passo que habitués do país – locais e passantes – remoíam anestesiados as imagens do massacre do Charlie Hebdo, que custavam a dissipar.
Sabia-se estar-se longe de ser o primeiro atentado terrorista em solo europeu, francês e parisiense. Mas aquele – contra o jornal satírico em inícios de janeiro próximo passado – calara fundo na alma parisiense, francesa e europeia. Anotando marcações de péssimos agouros. Indicando sensações insondáveis de mal-estar.
O presidente da República era François Hollande (2012-2017). Que, por sua vez, sucedera ao presidente Nicolas Sarkozy (2007-2012) e aos presidentes Jacques Chirac (1995-2007) e François Mitterrand (1981-1995). A sua popularidade era a mais baixa entre os locatários do Élysée desde 1958. Levando os franceses a sentir-se desamparados. Órfãos. Sem guia, horizonte nem “chefe”.
Os mais antigos ainda lamentavam a ingratidão projetada no velho general, Charles de Gaulle, que, após as “arruaças” de maio de 1968, perdera o ânimo para lhes presidir. Os menos longevos sentiam-se nostálgicos da “geração Mitterrand”, inaugurada justamente nos movimentos de maio de 1968 e movida em bloco ao Élysée no momentum presidencial de 1981 a 1995. Os muito moços elogiavam o estilo plebeian e despachado do presidente Jacques Chirac. Sendo quase todos, em uníssono, levados a rechaçar a presidência Sarkozy e a presidência Hollande. Aquela pela “agitação”; esta pela “impotência”.
Dias franceses. Tristes feito arrebol. Que rememoravam momentos cruciais de sua história do país. Como aqueles da presidência Mitterrand que levaram a França aos pés do Muro, em Berlim, para reafirmar a interação franco-alemã. Ou aqueles onde o presidente Jacques Chirac fora o responsável pelo “Non” da França no Conselho de Segurança das Nações Unidas em negação à intervenção norte-americana no Iraque e à famigerada guerra ao terror da presidência George W. Bush (2001-2009). Tendo por contraponto o presidente Sarkozy reintegrando a França ao comando geral da Otan, e o presidente Hollande, malgrado eleito, simplesmente, um completo e convicto “inadequado” para a função.
Respirava-se, porquanto, política. Mas, agora, com um pessimismo jamais auscultado. Indicando temores sobre o presente e o futuro do país. Aguçando desejos por um statu quo ante. Como que campeando algo capaz de reabilitar “le rêve français” (o sonho francês) e “le rêve européen” (o sonho europeu).
Falava-se pouco de outro assunto. Vivia-se o mais intenso sentimento de rebaixamento frente às demais nações. Fazendo a França sentir-se, efetivamente, “l’homme malade” (o homem doente) da Europa. Forjando um contexto adverso. Em que o jornalista – controverso na época e mais controverso depois, tornado político ultraconservador e candidato à presidência francesa – Éric Zemmour vinha de publicar um livro-choque, de título Le suicide français, argumentando que “les français ne reconnaissent plus la France” (os franceses não reconhecem mais a França). O que parecia uma verdade mental. Os franceses, de fato, não se reconheciam mais. Justificando a vendagem de centenas de milhares de exemplares do famigerado livro que ainda hoje causa sensação.
Era esse o ambiente, a estação e o clima na França. Campo adentro na agonia e braços dados à desilusão. Quando o proeminente Pierre Nora foi convocado para comentar aquele martírio.
Foi no auditório da Aliança Francesa em Paris. Naquele majestoso edifício do Boulevard Raspail. Era fins de junho na Europa. O ano era 2015. Fazia calor na França. A primavera anunciava o verão no país. Convidando todos ao lazer e à fruição bem longe de discussões intelectuais botadas e pesadas. E, mesmo assim, a sala ficou lotada. Com franceses, europeus e estrangeiros de todas as partes sedentos por algum alento. Que, em segredo, todos sabiam que não viria. E, de fato, não veio.
Pierre Nora – imortal da Academia Francesa, editor de sucesso da Gallimard, inventor de Michel Foucault (1926-1984), Georges Dumézil (1898-1986), Claude Lévi-Strauss (1908-2009), Jacques Le Goff (1924-2014), Emmanuel Le Roy Ladurie (1929-2023), Georges Duby (1919-1996), François Furet (1927-1997), Elias Canetti (1905-1994), lendário responsável (com Marcel Gauchet) pela revista Le Débat, organizador dos sete volumes de Lieux de Mémoire (1984-1992), legítimo historiador herdeiro da École des Annales, evidente sucessor de Fernand Braudel (1902-1985) e exímio conhecedor de história política contemporânea – tinha diante de si o desafio de analisar se aquele país, mental e moralmente, conflagrado possuía alguma saída. Dito de outro modo, se a política, a nação e a civilização dos franceses ainda atinham algum futuro.
Ao que ele respondeu, como de costume, de modo duro e frontal, dizendo que “claramente que a França, enquanto nação e civilização francesa, possui um futuro. Resta saber se possuirá um devir”.
Futuro e devir – “Futur” e “l’avenir”.
Que dizer?
Enigmático, aterrador, abrasante.
Lúcido. Terrivelmente lúcido.
Feito premonição. Quem sabe, maldição.
Cinco meses depois, Paris foi objeto de um dos mais ignóbeis atentados terroristas do século traduzidos nas ignomínias do Bataclan e do Stade de France, naquele 13 de novembro de 2015.
E não parou aí.
Marine Le Pen, filha de Jean-Marie Le Pen (1928-2025) e herdeira da pura e verdadeira extrema direita francesa, chegou duas vezes, em 2017 e 2022, ao segundo turno das presidenciais e entropias plasmadas em pressão migratória, xenofobia desavergonhadamente crescente, regressões sociais denunciadas pelos Coletes Amarelos, mortandade inclemente sob a pandemia de covid-19, tragédias euroasiáticas, médio-orientais e africanas mal antecipadas pela França e crises políticas e institucionais sem precedentes sob a Quinta República Francesa tomaram conta do país. Confirmando a premonição de Pierre Nora. Feito maldição. Um futuro sem devir. Foi a sua última mensagem.
RIP, Pierre Nora, morto no último 2 de junho de 2025.
Daniel Afonso da Silva, pesquisador do Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais da USP
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