A Uber Nunca deu Lucro, será?

por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

Dia 10 de maio, ouvi uma daquelas máximas que, quando não ofendem, irritam. Trata-se da afirmação de que a Uber nunca deu lucro. Indo atrás da informação na biblioteca de relatórios financeiros da SEC (Securities  Exchange Commission, equivalente à nossa CVM), constatei que ela começou a dar lucro a partir do terceiro trimestre de 2023. O que causou tamanha paciência por parte dos acionistas? Afinal, foram doze anos entre o lançamento do serviço no mercado americano e a primeira demonstração com resultados positivos. Confesso que não me aprofundei na análise de balanço para estimar quanto dos prejuízos acumulados foram amortizados pelos saldos positivos apresentados. Também não fiz uma análise mais detalhada do EBITDA (earnings before interest, taxes, depreciation and amortization, ou ganhos antes das despesas com juros, impostos, depreciação e amortização), que se pode ter tornado positivo muito antes de os primeiros trimestres com lucro terem sido declarados. Esse, aliado a um estudo aprofundado do fluxo de caixa, seria um exercício interessante para uma dissertação de mestrado em controladoria, coisa que não é a pretensão deste colunista. A intenção aqui é mostrar a possibilidade real de a história de a Uber não dar lucro seja mais uma lenda urbana, o que pode ter sido lançado a fim de evitar a concorrência, o que já ocorreu inúmeras vezes na História.

Se pensarmos em Brasil, a coisa fica ainda mais nebulosa porque, aqui, ela é uma sociedade limitada, portanto, isenta da publicação de balanços. Aqui, só dá para inferir. Digamos que o que diz a voz corrente de que um Uber ganha, em média, R$6 mil ao mês seja verdade. Assumindo um aluguel de R$2.400,00 para o veículo, ao que somem R$1.500,00 em combustível, o rendimento bruto por motorista tem de ser R$10 mil. Digamos que a Uber fique com 25% do rendimento bruto de cada trabalhador. Totais, teríamos R$13,33 mil, com um rendimento de R$3,33 mil por motorista.  Sendo, como se comemorou, um milhão de motoristas aderidos ao sistema, chegamos a R$3,33 bilhões mês, ou R$40 bilhões/ano. Fica muito difícil crer que não seja um negócio lucrativo, especialmente por compartilhar grande parte da infraestrutura com o restante do negócio no mundo. A hospedagem do banco de dados é um exemplo disso. Em termos técnicos, as rotas são calculadas conforme o plugin da Waze que, por sua vez, usa um plugin dos correios para os mapas urbanos, haja vista que o CEP é determinado por eles.

Segundo Schumpeter, a inovação é a terceira etapa na criação. Ela é precedida por uma ideia inédita, a prova de conceito  e pelo desenvolvimento do produto até que se torne funcional. A inovação só se considera depois de o produto tornar-se popular e entrar no regime da concorrência, que provoca a melhoria contínua. Pensando bem, a Uber ter sido inovadora é bastante discutível, pois ela não faz nada essencialmente diferente do que fazem as empresas de agenciamento de carga, exceto por ter o ser humano como bem a transportar. Aplicativos semelhantes sempre houve, porém, atendo-se aos táxis, como era a brasileira 99 que, por sua vez, era somente um passo na automação do que as cooperativas já faziam. Quando a 99 começou, nem acesso ao GPS se tinha popularizado e ela usava o GPRS, que usa somente a triangulação em relação às antenas de celular para localizar os veículos.

O pulo do gato da Uber foi agregar motoristas de fora dos sistemas de concessão e permissão que restringiam esse mercado nas principais cidades do mundo. A partir do momento em que a institucionalização do serviço de transporte público individual foi desafiado e o mundo não caiu, as empresas pré-existentes aderiram e a concorrência chegou muito antes do que a Uber imaginava. Em alguns casos, como a 99, o esforço para isso foi pífio, bastando aumentar o escopo, antes restrito aos taxistas, a qualquer um que se disponha a dirigir sob suas regras. Como sistema, uma alteração aceitável na regra de negócio. Outra informação que deixa a afirmação de que Uber não dá lucro é o fato de que a Didi Chuxing, que adquiriu a 99 e Ifood, atingiu US$100 bilhões cotados a mercado na bolsa de New York. Por certo que não teria tamanho good will (boa vontade em português, corresponde à diferença entre cotação a mercado e valor do patrimônio liquido), se o negócio não fosse lucrativo.

Para não deixar passar a oportunidade, a imposição do Uber Eats, em vez de adquirir o IFood, mostra que a ideia da Uber como negócio não é uma inovação estrito senso. A evidência está em que o IFood, originariamente brasileiro, mantém 80% do mercado.

Finalmente, dois aspectos que não se podem estimar, sequer inferir, são os ganhos financeiros advindos do relacionamento com as operadoras de cartão de crédito e a venda de informações preciosas para marketing, mesmo sem que dados pessoais sejam transacionados. Um bom serviço de data mining (mineração de dados, que corresponde à transformação de grande volume de dados em informação útil) pode, por exemplo, detectar a falta de um dado serviço numa região previamente delimitada, bastando cruzar as informações de origem-destino.

Por todas as razões aqui expostas, fica bastante difícil crer que Uber não dar lucro seja uma lenda urbana.

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou o mestrado na PUC, pós graduou-se em Economia Internacional na International Afairs da Columbia University e é doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo. Depois de aposentado como professor universitário, atua como coordenador do NAPP Economia da Fundação Perseu Abramo, como colaborador em diversas publicações, além de manter-se como consultor em agronegócios. Foi reconhecido como ativista pelos direitos da pessoa com deficiência ao participar do GT de Direitos Humanos no governo de transição.

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Last Update: 14/01/2025