A Travessia Sino-Brasileira e a Arquitetura de uma Confiança Estratégica Duradoura
por Samuel Spellmann
A intensificação das relações entre China e Brasil nos últimos vinte anos não se limita à ampliação do intercâmbio comercial ou ao incremento de investimentos bilaterais. Trata-se de uma reconfiguração qualitativa do engajamento estratégico, inserida no contexto mais amplo da transição sistêmica em curso na ordem mundial. A ascensão chinesa à condição de polo estabilizador no sistema interestatal contemporâneo redefine as possibilidades de articulação das periferias e semiperiferias globais. Isto é verdade tanto para o seu entorno estratégico como para a América Latina.
A metáfora do provérbio chinês — “atravessar o rio sentindo as pedras” — não é mero recurso retórico. Ela exprime a gramática pragmática da diplomacia chinesa, voltada à construção paciente e incremental de vínculos interestatais ancorados na confiança estratégica. Ao mesmo tempo, sinaliza a necessidade de navegar os fluxos mutantes do sistema internacional com uma bússola teórico-prática própria, que preserve a autonomia decisória diante das pressões das grandes potências e das dinâmicas centrífugas da financeirização global. Nesse processo, o Brasil desponta como parceiro central na América do Sul. Entender suas contradições e projetar o direcionamento do seu movimento são centrais para a evolução programática do relacionamento à nível regional.
Do Encontro entre Civilizações à Cooperação Estruturante
A interlocução sino-latino-americana inaugura um momento inédito: é a primeira vez, desde a constituição moderna do continente americano, que suas sociedades se orientam de modo estruturado em direção ao Pacífico. Tradicionalmente vinculadas à lógica atlântica, as economias latino-americanas foram moldadas por uma matriz extrativista e por uma dependência estrutural das metrópoles euro-atlânticas. O estreitamento das relações com a China rompe essa lógica, permitindo o esboço de uma alternativa geoeconômica de longo alcance.
Nesse novo horizonte, o projeto de uma Comunidade de Destino Compartilhado entre China e América Latina e Caribe, proposto por Xi Jinping em 2014 e reafirmado na IV Reunião Ministerial do Fórum China-CELAC (maio de 2025), adquire densidade institucional. Já não se trata de uma diretriz simbólica, mas de uma matriz operativa para o reordenamento das prioridades do desenvolvimento regional. A inserção sino-brasileira nessa equação reveste-se de caráter estratégico, pois congrega os dois principais polos econômicos do Sul Global.
Nova Industrialização e Infraestrutura Integradora
A parceria sino-brasileira apresenta-se como elemento-chave para a superação do impasse estrutural da economia brasileira, marcada pela desindustrialização precoce e pela reprimarização das exportações. O programa Nova Indústria Brasil (NIB), articulado em 2024, constitui tentativa explícita de reverter essa trajetória, com foco em neoindustrialização verde, tecnologias avançadas e integração regional. O êxito do NIB pressupõe a constituição de arranjos produtivos articulados com fluxos internacionais de capital produtivo, tecnologia e financiamento — áreas em que a China tem se posicionado como fornecedora de alternativas ao modelo neoliberal ocidental.
A mudança no perfil dos investimentos chineses no Brasil — anteriormente centrados em commodities e infraestrutura logística — já aponta para uma inflexão qualitativa. O financiamento de hubs industriais, a cooperação em semicondutores e energia renovável, bem como a participação em projetos de mobilidade urbana e conectividade digital, denotam uma progressiva aproximação entre a pauta chinesa e os interesses estruturantes do desenvolvimento brasileiro.
Geopolítica da Integração Sul-Americana e Arquitetura de Conectividade
A emergência de uma agenda comum sino-sul-americana inscreve-se também no campo da infraestrutura física e geoeconômica. O Plano de Integração das Rotas da América do Sul, concebido a partir do Consenso de Brasília em 2023, propõe cinco eixos transoceânicos conectando o território brasileiro aos seus países vizinhos e ao Pacífico. A proposta representa uma inflexão na lógica fragmentária que historicamente caracterizou os projetos de integração regional. Trata-se de uma arquitetura colaborativa que visa à redução das assimetrias logísticas, à ampliação das redes de circulação de valor e à consolidação da América do Sul como plataforma produtiva de escala continental.
Essa agenda não se restringe a uma racionalidade infraestrutural. Ela comporta implicações geopolíticas de grande envergadura. A integração territorial sul-americana constitui antídoto contra os vetores desestabilizadores que fomentam a fragmentação política da região e seu enquadramento em esferas de influência externas. A aliança com a China fornece lastro material e institucional para a consolidação de um bloco regional com margem de manobra autônoma.
Multipolaridade, Planejamento e Soberania Produtiva
A intensificação da presença chinesa na América Latina tem sido acompanhada por interpretações dicotômicas: ora como neocolonialismo disfarçado, ora como solução redentora. Ambas as leituras incorrem em reducionismos. O avanço da parceria sino-brasileira deve ser interpretado à luz de uma estratégia de reposicionamento produtivo e soberano, dependente de decisões políticas internas. A soberania produtiva do Brasil — entendida como capacidade de decidir sobre os rumos de sua própria estrutura econômica — é indissociável da reorientação de sua inserção internacional.
Nesse sentido, a construção de uma confiança estratégica com a China não deve ser vista como adesão acrítica, mas como formulação ativa de uma agenda nacional ancorada em planejamento de longo prazo. Trata-se de articular uma via de desenvolvimento que ultrapasse a lógica da dependência e redefina o papel do Estado como indutor de transformações estruturais.
Desafios Políticos e Tarefas Intelectuais
No plano interno, o principal desafio à consolidação dessa estratégia é a instabilidade política e a ausência de consenso entre as elites econômicas quanto ao projeto nacional de desenvolvimento. A burguesia interna permanece fraturada entre frações associadas ao capital transnacional e setores comprometidos com a reindustrialização e a ampliação do mercado interno. A construção de uma coalizão nacional capaz de sustentar políticas de Estado — e não apenas de governo — é pré-condição para o aprofundamento do vínculo sino-brasileiro.
No campo intelectual, impõe-se a tarefa de formar uma nova geração de quadros — técnicos, acadêmicos e diplomatas — capazes de compreender a complexidade da articulação entre interesses nacionais, regionalismo sul-americano e redes globais de poder. A formação de especialistas em China, em integração regional e em economia política internacional será decisiva para que o Brasil transite de uma posição reativa para uma postura propositiva na arena internacional.
Conclusão: Da Travessia à Construção Conjunta
A travessia sino-brasileira não é linear nem isenta de tensões. No entanto, as bases estão lançadas para um aprofundamento estratégico da cooperação. A construção de uma sociedade de destino compartilhado não é um imperativo ideológico, mas uma escolha racional diante da configuração multipolar emergente. O fortalecimento da confiança mútua, o enraizamento de projetos de infraestrutura conectiva e a busca por uma inserção global soberana delineiam os contornos de uma nova etapa do desenvolvimento brasileiro.
É precisamente no terreno incerto das transformações estruturais que se forjam os caminhos de longo prazo. A capacidade do Brasil de “atravessar o oceano sentindo as pedras” será medida por sua disposição em planejar estrategicamente, integrar-se regionalmente e projetar-se globalmente — com a China, mas sobretudo com um projeto próprio.
Samuel Spellmann – Doutorando em Relações Internacionais pela PUC Minas, professor e Coordenador do Curso de Especialização em China Contemporânea, na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). É pesquisador do China Working Group – International Initiative for Promoting Political Economy (IIPPE), School of African and Oriental Studies, University of London (IIPPE, SOAS).
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