A trama golpista e o dever democrático de não esquecer e punir

por Fernando Castilho

O Brasil assiste, mais uma vez, ao embate decisivo entre a memória e o esquecimento. No centro do palco, o Supremo Tribunal Federal conduz acareações entre figuras-chave da tentativa de golpe que buscou impedir a posse legítima do presidente eleito em 2023. Braga Netto, Anderson Torres, Mauro Cid, entre outros, encaram-se agora em sessões que mais parecem espelhos estilhaçados de uma história recente — onde cada um tenta proteger sua imagem, mesmo à custa da verdade.

Todos os depoentes, quase sem exceção, negaram qualquer participação na trama. Alguns chegaram a contradizer provas documentais, gravações e delações homologadas. Mentiram com convicção, como se a negação fosse suficiente para apagar os rastros do que foi planejado. O objetivo é claro: escapar da condenação, reescrevendo os fatos com a tinta da conveniência. A única exceção foi Jair Bolsonaro, que, ainda que negando formalmente o golpe, acabou admitindo em depoimento que discutiu com militares “alternativas” para reverter o resultado das eleições — uma confissão involuntária que escancarou o que muitos já sabiam.

Mas o que está em jogo vai muito além de versões contraditórias. O que se desenha é uma oportunidade histórica — rara e urgente — de romper com o ciclo recorrente de conciliação e impunidade que marcou os capítulos mais obscuros da política brasileira. Desde o Estado Novo até a ditadura militar, passando pela anistia de 1979, o país tem preferido o silêncio à responsabilização, a complacência à justiça, a estabilidade aparente à verdade incômoda. Foi justamente essa lógica que permitiu que os fantasmas autoritários retornassem, sempre disfarçados de exceção.

A tentativa de golpe não foi um desvario solitário. Foi planejada, custeada e encorajada por setores que se recusam a aceitar a soberania das urnas. Agora, com provas, delações, áudios e documentos em mãos, cabe ao STF mostrar que a democracia brasileira já não aceita mais ser cúmplice da covardia institucional.

A visão progressista não clama por vingança — clama por memória, por justiça e por um compromisso radical com o futuro. Exige que os responsáveis sejam julgados à luz da lei e da história, não apenas para que sejam punidos, mas para que se eduque uma nação inteira sobre os riscos da permissividade. Para que nunca mais se naturalize a ideia de que tanques, minutas e conspirações possam substituir a soberania popular.

O Brasil de 2025 já não tem o direito de repetir os erros de 1964, nem de se calar como em 1979. Democracia não se defende com retórica branda ou gestos vazios — ela exige instituições firmes, jornalismo vigilante e uma sociedade que não aceite o inaceitável. Que as acareações sirvam, não apenas para esclarecer os fatos, mas como afirmação definitiva de que, desta vez, a impunidade não vencerá.

Fernando Castilho é arquiteto, professor e escritor. Autor de Depois que Descemos das Árvores, Um Humano Num Pálido Ponto Azul e Dilma, a Sangria Estancada.

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Last Update: 24/06/2025