A Sociologia da Dependência na Era dos algoritmos

Por Reynaldo Aragon

A dependência deixou de ser um vínculo econômico para se tornar uma condição técnica da existência. No lugar dos antigos centros industriais, ergue-se uma infraestrutura algorítmica global que transforma linguagem em dado, desejo em predição e soberania em subordinação automatizada. Este ensaio investiga como a racionalidade técnica reorganiza a dependência estrutural no Sul Global, substituindo a força pela fluidez e o comando pela personalização. Uma análise crítica sobre a arquitetura invisível que redefine o poder, a política e a possibilidade de futuro.

O Futuro da Dependência Já Chegou

Talvez Florestan Fernandes jamais digitou uma linha de código, mas seu pensamento segue programando perguntas que ainda não conseguimos encerrar. Numa época em que os centros imperiais exportavam máquinas e importavam excedente primário das colônias, Florestan alertava: a dependência não é uma fase transitória, mas uma estrutura funcional do capitalismo periférico. Uma engrenagem de subordinação persistente, disfarçada de modernização. A tecnologia, em sua época, já era um problema de classe e de projeto nacional. Hoje, ela é mais do que isso — é uma ontologia política global, escrita em linguagem de máquina.

Na virada do século XXI, o nome dessa nova dominação atende por outro vocabulário: dados, modelos preditivos, IA generativa, metaintermediários, fricção zero. Mas seu efeito é familiar a qualquer leitor atento de Florestan: submissão espontânea, alienação consentida, modernidade sem emancipação.

Na superfície, tudo parece mais leve. Interfaces suaves, assistentes personalizados, respostas instantâneas. Mas por trás da fluidez operada pelas plataformas, esconde-se um processo de reorganização silenciosa da vida social — onde o Sul Global volta a ocupar o papel de zona extrativista, não de recursos tangíveis, mas de subjetividade, atenção, linguagem e previsibilidade comportamental. Exportamos dados brutos e importamos decisões treinadas por epistemologias alheias. Produzimos presença, mas não comando. Mais do que consumidores de tecnologia, tornamo-nos funcionários informais da inteligência artificial alheia.

É nesse cenário que a Sociologia da Dependência, proposta por Florestan Fernandes, retorna como uma teoria viva. Não para ser homenageada como relíquia, mas para ser reprogramada como ferramenta de leitura do presente. Porque a dependência não acabou: ela apenas se digitalizou.

A Sociologia da Dependência como Ontologia da Subordinação

Quando Florestan Fernandes desenvolveu a ideia de Sociologia da Dependência, ele não descrevia apenas um conjunto de relações econômicas desiguais. Falava de algo mais profundo, estrutural, ontológico: uma forma histórica de ser e de estar no mundo a partir da impossibilidade do autogoverno pleno. A dependência era, para ele, mais do que um vínculo externo — era um modo interno de funcionamento das sociedades periféricas, cujas elites, longe de constituírem um projeto nacional, atuavam como agentes locais do capital transnacional.

A originalidade da crítica florestaniana reside no fato de que ela não tomava a dependência como uma anomalia, mas como fundamento constitutivo da modernização subordinada do Brasil. “A revolução burguesa não se completou no Brasil”, escreveu, “porque foi dirigida por uma burguesia antinacional, associada aos interesses externos e inimiga da democratização profunda”. Nas periferias do capitalismo, dizia ele, o desenvolvimento se faz por negação da autonomia, e a modernidade se organiza como farsa tecnocrática.

Esse diagnóstico ecoa de forma inquietante no presente. A revolução burguesa continua incompleta. Mas seu novo rosto já não é apenas o da indústria ou do capital financeiro: é o da automação invisível, do machine learning, da linguagem parametrizada e da intermediação algorítmica. A nova dependência não é somente econômica — é informacional, cognitiva, epistêmica. E opera, como no passado, sob a aparência de progresso.

A teoria da dependência paralisa a formação de sujeitos coletivos com capacidade de autodeterminação histórica. Ora, o que são as plataformas digitais senão mecanismos de modulação subjetiva que naturalizam a delegação da agência, da linguagem e da decisão a sistemas opacos? Onde antes a subordinação se dava via endividamento externo ou via tutela militar, agora ela se realiza através de interfaces amigáveis que otimizam a vida enquanto minam, silenciosamente, a práxis.

A dependência se atualiza como automação cultural, como racionalidade técnica que organiza os afetos, os desejos e as rotinas de maneira imperceptível — mas implacável. A colonização, antes operada pelo capital e pela metrópole, agora se dá pela ontotecnologia que substitui o tempo da decisão pelo tempo da resposta. E como Florestan já sabia, onde não há tempo para a dúvida, não há espaço para a política.

A Era Algorítmica e a Nova Infraestrutura da Dominação

O que chamamos hoje de inteligência artificial não é uma entidade pensante, mas uma infraestrutura de antecipação, sustentada por dados extraídos em escala industrial e processados para mapear, prever e modular o comportamento humano. Sua inteligência não reside na cognição, mas no cálculo. E sua função política é clara: reduzir o mundo à lógica da previsão operável.

Nas sociedades periféricas, essa arquitetura não emerge como produto do desenvolvimento autônomo — ela é importada, imposta, ou absorvida sob dependência técnica, epistemológica e regulatória. Os países do Sul Global não escrevem os protocolos, não definem os datasets, não modelam os sistemas. Seus territórios funcionam como zonas de coleta, de treinamento, de teste. E seus cidadãos são transformados em usuários-modelo: sujeitos automatizados cuja experiência é retroalimentada em tempo real por dispositivos que aprendem a controlar sem serem vistos.

É nesse contexto que a ideologia da fricção zero, como descrevemos em outros trabalhos, torna-se o imperativo técnico do nosso tempo. Apresentada como inovação e conforto, ela consiste na eliminação progressiva de todos os atritos — técnicos, subjetivos, cognitivos, políticos. Cada hesitação é convertida em falha; cada demora, em disfuncionalidade; cada dúvida, em ruído. O conflito, que Florestan via como motor da democratização profunda, é agora tratado como falha de interface.

O que se instala, então, é um novo regime de dominação: o da ontotecnologia do capital. Um sistema em que os próprios modos de ser, pensar e decidir são organizados tecnicamente de acordo com a lógica da performance algorítmica. A subjetividade é reconfigurada como perfil preditivo, a linguagem é reduzida a comando, e a experiência é filtrada por metaintermediários que agem antes da consciência, acima da deliberação.

Como já apontavam MARCUSE (1964) e LUKÁCS (1971), a técnica sob o domínio do capital tende a se tornar norma cultural, absorvendo a negatividade e apagando o dissenso. No capitalismo digital, essa racionalidade se radicaliza. A dominação não exige mais repressão: ela se realiza por meio da adesão espontânea à conveniência. A alienação se apresenta como assistência. A obediência, como personalização. O esvaziamento da práxis, como eficiência otimizada.

O Brasil — e, com ele, grande parte do Sul Global — está sendo inserido nesse novo ciclo de dominação não por meio de tanques, mas por sistemas de recomendação; não por tratados de Bretton Woods, mas por protocolos de API, contratos de nuvem e políticas de interoperabilidade assinadas com multinacionais. Trata-se de uma nova forma de subordinação estrutural: não apenas econômica ou institucional, mas epistemológica, linguística e afetiva. O algoritmo, afinal, não apenas prediz: ele molda aquilo que se torna possível desejar.

O Sul Global como Laboratório da Subordinação Digital

Durante o século XX, a dependência do Sul Global se dava pela via da dívida, da chantagem financeira, das intervenções militares e dos pactos assimétricos de comércio. No século XXI, essa dependência muda de textura, mas não de essência. Hoje, ela opera através da codificação do mundo — por meio da linguagem técnica, das arquiteturas invisíveis e da normatividade algorítmica das grandes plataformas.

O que as big techs operam não é apenas um modelo de negócios. É um projeto de governança global assimétrica, que esvazia a soberania dos Estados periféricos não pelo uso da força, mas pela instalação de infraestruturas irrenunciáveis: sistemas de nuvem, educação plataformizada, segurança mediada por IA, serviços públicos entregues à lógica de extração de dados. É a cristalização daquilo que Florestan denunciava: a ausência de um projeto nacional soberano diante da internalização de um poder externo mascarado de técnica.

No Brasil, essa realidade é particularmente nítida. Ministérios inteiros operam sob o domínio de suites tecnológicas estrangeiras. Dados educacionais, financeiros, sanitários e eleitorais circulam em servidores fora do país, sem garantias de auditoria nem governança autônoma. Enquanto isso, a regulação da IA caminha a passos lentos, enquanto a lógica do capital informacional avança por dentro das instituições, muitas vezes com a anuência ativa das elites locais — herdeiras da mesma lógica colonial-colaboracionista que Florestan mapeou com precisão.

Mas essa dinâmica não é apenas brasileira. Em países como Nigéria, Quênia, Filipinas e Indonésia, trabalhadores invisíveis anotam dados, corrigem textos, rotulam imagens para treinar modelos de IA que jamais servirão a seus povos. Suas línguas, afetos, hábitos e contradições são transformados em datasets — matéria-prima cognitiva para sistemas que alimentam a hegemonia digital do Norte.

Trata-se de uma nova forma de epistemicídio: o conhecimento produzido nas margens é absorvido sem reconhecimento, sem redistribuição, sem reciprocidade. Nossos modos de viver, falar e imaginar o mundo são traduzidos em métricas operacionais. O resultado é um tipo de colonialismo que não precisa mais de espadas ou cruzes, apenas de dashboards e pipelines.

A subordinação se torna total porque ela não é mais percebida como tal. O código é naturalizado. A plataforma é desejada. A interface se torna o mundo. E o dissenso, quando emerge, é imediatamente recapturado como “ruído de usuário”. A dependência deixa de ser vista como condição política — e passa a ser tratada como obsolescência cultural.

A tarefa histórica, portanto, é reverter essa anestesia. Recuperar, como queria Florestan, a capacidade de nomear o mundo a partir de nossos próprios códigos — não os da conveniência técnica, mas os da emancipação coletiva. Porque aquilo que hoje se apresenta como inevitável é, na verdade, apenas um projeto — e todo projeto pode ser contestado.

O Desafio da Soberania Cognitiva: Para Além da Fricção Zero

Florestan Fernandes sabia que não basta descrever a dominação — é preciso enfrentá-la. Sua teoria da dependência não se limitava à crítica estrutural: ela era também convocação política, projeto de ruptura e reorganização histórica. Se o capitalismo periférico bloqueava a democratização profunda, era preciso reconstruí-la a partir da base: educação pública, pensamento crítico, mobilização popular e soberania intelectual.

Hoje, diante de um cenário em que a dominação se expressa pela automatização da escolha, pela antecipação do desejo e pela colonização do tempo vivido, essa tarefa se torna ainda mais complexa — e mais urgente. Porque a dependência algorítmica atua sobre as formas de pensar antes mesmo que o pensamento seja formulado. Porque o algoritmo não apenas representa a realidade, mas decide o que pode ser realidade.

É nesse ponto que emerge a necessidade de formular um novo vocabulário estratégico: soberania cognitiva. Um conceito que não se reduz à autonomia técnica ou ao controle sobre dados, mas que envolve a capacidade de uma coletividade construir suas próprias condições de linguagem, mediação, deliberação e imaginação. Em outras palavras, trata-se de defender o direito de pensar — e de pensar diferente.

Pesquisadores como Sérgio Amadeu, Roseli Fígaro e Rafael Grohmann, entre outros, vêm denunciando os riscos de uma plataformização acrítica da vida, que subordina o pensamento público aos interesses privados de corporações sem pátria. Mas essa crítica só ganha força transformadora quando se encontra com a prática — com uma educação politicamente enraizada, contra-hegemônica, radicalmente formadora.

Por isso, parte dessa resistência precisa ser pedagógica, no sentido mais freireano do termo: ensinar a hesitar. Ensinar a nomear o mundo novamente, a recuperar o tempo do conflito, da dúvida, da negatividade. Porque sem fricção, não há política. Sem mediação, não há consciência. Sem resistência, não há sujeito.

Isso implica apostar em letramentos múltiplos como tecnologias sociais de emancipação: não apenas saber operar plataformas, mas saber desmontá-las conceitualmente. Identificar vieses, resistir à automação do pensamento, romper com o design da obediência. Como já escrevemos em outros trabalhos, é preciso reconstruir a mediação como campo político, reocupar a linguagem como território de disputa, devolver à subjetividade sua densidade histórica.

Do ponto de vista regulatório, é necessário abandonar o receituário liberal das “boas práticas” e enfrentar a infraestrutura das plataformas como problema de soberania nacional e epistêmica. Isso significa: dados públicos em nuvens públicas, IA auditável e controlável socialmente, plataformas obrigadas à transparência de critérios e lógica algorítmica. Tecnologia não pode ser exceção ao princípio democrático.

Mas, sobretudo, é necessário reconhecer que a luta pela soberania cognitiva no Sul Global não é apenas técnica — é ontológica. Trata-se de resistir à redução do ser à função, da linguagem ao comando, da vida ao clique. E nesse ponto, a teoria da dependência volta com força total: porque agora a subordinação se dá no plano mais íntimo — no espaço onde o pensamento nasce.

Florestan e o Algoritmo

Se há algo que Florestan Fernandes jamais aceitou, foi a naturalização da subordinação. Sua vida e obra foram movidas pela recusa radical da desigualdade como destino. Para ele, pensar o Brasil era uma forma de lutar por ele. E lutar por ele significava romper com as estruturas históricas que nos condenavam à obediência e à imitação.

Hoje, essa obediência se reapresenta sob uma nova gramática. Ela não fala mais a linguagem do chicote nem do empréstimo. Fala em termos como personalização, engajamento, eficiência, conveniência. Os novos senhores do mundo não usam farda: usam modelos preditivos. E as novas formas de servidão não são impostas à força — são desejadas.

Mas a dependência, por mais camuflada que esteja, ainda é dependência. E, como Florestan insistia, ela só se mantém onde a crítica é desativada, onde a linguagem é empobrecida, onde a consciência é interrompida. A era dos algoritmos não anulou a história — apenas a tornou mais difícil de ver. Nosso desafio, agora, é reensinar a vê-la.

A tecnologia que nos cerca não é neutra. Ela carrega valores, interesses, paradigmas. Ela traduz e opera uma ontologia — e, como tal, pode ser questionada, recusada, reinventada. Recusar a automatização da vida não significa nostalgia pré-digital, mas o oposto: é recusar que a técnica substitua a política, que a fluidez anule o dissenso, que a personalização silencie o comum.

Florestan não escreveu sobre inteligência artificial. Mas ele nos legou algo mais importante: uma bússola para reconhecer a dominação sob qualquer disfarce, e a coragem intelectual de nomeá-la com precisão. Onde ele via modernização subordinada, hoje vemos plataformização acrítica. Onde ele via elites colaboracionistas, hoje vemos Estados capturados por dashboards e contratos de nuvem. Onde ele via o bloqueio da práxis, hoje vemos a colonização da hesitação — o apagamento da dúvida como campo político.

E é por isso que Florestan permanece. Porque sua crítica não se esgota nos termos de sua época. Ela pulsa como advertência e como promessa. Como lembrança de que a dependência é um projeto — e pode ser desfeito. O que está em jogo não é apenas o direito de acessar tecnologia. É o direito de decidir, de hesitar, de construir futuro. Não há soberania sem linguagem. Não há liberdade sem fricção. E não haverá democracia sem a coragem de, como Florestan, pensar o impossível — contra tudo que hoje nos diz que já está decidido.

Reynaldo Aragon Gonçalves é jornalista especializado em geopolítica da informação e da tecnologia. É membro pesquisador do Núcleo de Estudos Estratégicos em Comunicação, Cognição e Computação (NEECCC – INCT DSI) e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Disputas e Soberania Informacional (INCT DSI).

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Last Update: 08/06/2025