A sociedade tecnológica e seus novos conflitos

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Dois assuntos importantes no momento demandam atenção dos brasileiros.

Um é a tentativa dos EUA de bloquear o desenvolvimento tecnológico da China. Isso parece ser uma consequência da competição entre as Big Techs norte-americanas e suas concorrentes chinesas.

O valor de mercado das empresas de tecnologia é muito maior do que o das empresas chinesas, mas isso não expressa toda a realidade.

Rank U.S. Big Tech Market Cap Chinese Big Tech Market Cap  
1 Microsoft (MSFT) $3.2T Tencent (0700.HK) $420B  
2 Apple (AAPL) $3.0T ByteDance (Private) $225B  
3 Nvidia (NVDA) $2.8T Alibaba (BABA) $200B  
4 Alphabet (Google, GOOGL) $2.2T PDD Holdings (Temu) $190B  
5 Amazon (AMZN) $1.9T Meituan (3690.HK) $90B  
6 Meta (META) $1.3T JD.com (JD) $50B  
7 Tesla (TSLA) $600B Xiaomi (1810.HK) $50B  
8 Broadcom (AVGO) $600B Baidu (BIDU) $40B  

As diferenças apontadas na planilha anterior não refletem a realidade porque se tornou uma prática comum utilizada pelos CEOs de Big Techs norte-americanas utilizar boa parte da liquidez da empresa para comprar as ações dela de maneira a elevar seu valor de mercado (algo que permite maior distribuição de lucros aos acionistas, e de bônus aos próprios CEOs).

Metric U.S. Big Tech (2023-24) Chinese Big Tech (2023-24)
Stock Buybacks Massive ($100B+ annually) Minimal (focus on reinvestment)
Dividend Payouts High (Apple, Microsoft) Low (Tencent, Alibaba pay small/no dividends)
R&D Spending High but slower growth Very high, accelerating in AI, EVs, semiconductors
CEO Compensation Tied to stock performance More tied to long-term growth

Example:

  • Apple spent $90B+ in buybacks (2023)—more than Alibaba’s entire market cap.
  • Tencent & ByteDance instead invest heavily in AI, cloud, and global expansion (TikTok, Temu, WeChat Pay).

As empresas chinesas são mais enxutas e não utilizam esse artifício financeiro/contábil e investem somas imensas em desenvolvimento de novas tecnologias. Além disso, a universalização da tecnologia na China avança com mais rapidez do que nos EUA.

Technology U.S. Adoption China’s Adoption
Mobile Payments ~45% (Apple Pay, Venmo) ~90% (WeChat Pay, Alipay)
EV Penetration ~7% (Tesla dominant) ~35% (BYD, NIO, XPeng lead)
5G Infrastructure Patchy (limited coverage) World’s largest 5G network
AI Implementation R&D-focused (OpenAI, Nvidia) Mass integration (facial recognition, smart cities, AI factories)

As diferenças entre a China e os EUA também merecem ser levadas em conta aqui. A China é altamente industrializada e mantém a financeirização sob vigilância. Os EUA se desindustrializou e tem uma economia financeirizada altamente desregulada. Os efeitos das bolhas financeiras sempre produzem mais estragos na economia norte-americana do que na chinesa. Tanto isso é verdade, que os EUA foi em parte salvo da ruína porque os chineses compraram mais títulos da dívida norte-americana. E enquanto a economia dos EUA declinou a da China cresceu na década seguinte.

Decade U.S. Economic Growth China’s Economic Growth
2000s Dot-com bust, 2008 crash WTO entry, manufacturing boom
2010s Tech rebound, but wage stagnation Infrastructure/tech surge (BATX rise)
2020s Inflation, debt crisis risks EV/5G/AI dominance, Belt & Road

Key Trend:

  • Since 2008, China’s GDP grew 3.5x (from $4.6T to ~$18T), while the U.S. grew 2x ($14.7T to ~$27T).
  • China’s industrial output now exceeds the U.S. + EU + Japan combined.

Tudo indica que o desenvolvimento tecnológico chinês não poderá ser interrompido. Quando as novas fábricas de microchips norte-americanas que estão sendo construídas começarem a funcionar os produtos que elas fabricarão não encontrarão um ecossistema local de indústrias eletroeletrônicas. O imenso ecossistema industrial eletroeletrônico que existe na China, por outro lado, pode impulsionar o desenvolvimento de microchips chineses mais modernos num período de tempo menor.

Em sua festejada obra The Technological Society, Jacques Ellul afirma que:

“Tecnique, as I belive I have shown, is totally irrelevante to this notion [of morality] and pursues no end, professed ou unprofessed. It evolves in a purely causal way: the combination of proceding elements furnishes the new tecnical elements. There is no purpose or plan that is being progressively realized. There is not even a tendency toward human ends. We are dealing whit a phenomenon blind to the future, in a domain of integral causality. Hence, to pose arbitrarily some goal or other, to propose a Direction for tecnique, is to deny technique and divest it of its Character and its strength.” (The Technological Society, Jacques Ellul, Vintage Books – Random House, New York, p. 97)

Tradução: “A técnica, como creio ter demonstrado, é totalmente irrelevante para esta noção [de moralidade] e não persegue nenhum fim, declarado ou não. Ela evolui de forma puramente causal: a combinação de elementos processuais fornece os novos elementos técnicos. Não há propósito ou plano que esteja sendo progressivamente realizado. Não há sequer uma tendência para fins humanos. Estamos lidando com um fenômeno cego ao futuro, em um domínio de causalidade integral. Portanto, propor arbitrariamente um objetivo ou outro, propor uma direção para a técnica, é negar a técnica e destituí-la de seu caráter e de sua força.”

Numa sociedade tecnológica a melhor técnica tende sempre a se impor de maneira automática porque:

“ ‘The best way’: so runs the formula to which our tecnique corresponds. When everything has been measured and calculated mathematically so that the method which has been decide upon is satisfatory from the rational point of view, and When, from the practical point of view, the method is manifestly the most eficiente of all those hitherto employed or those in competition with it, then the technical movement becomes sel-directing. It call the process automatism.” (The Technological Society, Jacques Ellul, Vintage Books – Random House, New York, p. 79/80)

Tradução: “O melhor caminho”: assim reza a fórmula à qual corresponde a nossa técnica. Quando tudo tiver sido medido e calculado matematicamente, de modo que o método escolhido seja satisfatório do ponto de vista racional, e quando, do ponto de vista prático, o método for manifestamente o mais eficiente entre todos os até então empregados ou em competição com ele, então o movimento técnico torna-se auto-direcionado. Chama-se automatismo ao processo.”

Nos domínios da sociedade tecnológica:

“The exclusive character os technique gives us one of the reasons for its lightning progress. There is no place for na individual today unless he is a technician. No social grou pis able to resist the pressures of the enviroment unless it utilizes tecnique. To be in position of the lightning thrust of techique is a matter os life or death for individuals and groups alike; no power on Earth can withstand is pressures.” (The Technological Society, Jacques Ellul, Vintage Books – Random House, New York, p. 84/85)

Tradução: “O caráter exclusivo da técnica nos dá uma das razões para seu progresso relâmpago. Não há lugar para um indivíduo hoje, a menos que ele seja um técnico. Nenhum grupo social é capaz de resistir às pressões do ambiente a menos que utilize a técnica. Estar em posição de receber o impulso relâmpago da técnica é uma questão de vida ou morte para indivíduos e grupos; nenhum poder na Terra pode suportar tais pressões.”

Aplica-se ao conflito EUA x China um princípio que pode ser derivado da obra de Jacques Ellul (The Technological Society). A adoção ou criação de uma tecnologia engendra um desenvolvimento tecnológico que não pode ser interrompido e que tenderá à universalização caso dê origem a técnicas mais eficientes. Decisões políticas tomadas num país são incapazes de produzir involução tecnológica em outro. Assim como a Inglaterra não conseguiu monopolizar a tecnologia têxtil no início da Revolução Industrial (ela se propagou para a Alemanha e para os EUA), os EUA não conseguiu manter o monopólio de bombas nucleares durante a Guerra Fria (a URSS desenvolveu armas semelhantes e, depois, mais poderosas e transportadas por mísseis balísticos), a tentativa dos norte-americanos de interromper o progresso tecnológico chinês está fadado ao fracasso. No máximo, as decisões tomadas por Joe Biden e Donald Trump provocarão atrasos e acomodações na China.

Na outra ponta, está a tentativa dos EUA de julgar a conduta do Ministro Alexandre de Moraes no caso envolvendo Jair Bolsonaro com base numa Lei norte-americana. Luis Nassif acertou na mosca ao dizer que isso pode ser apenas uma cortina de fumaça. A verdadeira disputa entre Brasil e EUA não se refere aos Bolsonaro e sim à adoção de medidas restritivas à propagação de Fake News que podem afetar os negócios como de costume das Big Techs norte-americanas no território brasileiro.

Após fazer uma descrição de como a adoção de uma técnica leva ao desenvolvimento de outras até que, em decorrência da propagação para outros ramos de atividades, a tecnologia se infiltra em todas atividades humanas passando a condicionar as relações sociais, Jacques Ellul afirma que:

“It is impossible to amputate a part of the system or to modify it in any way without modifying the whole. The system was not built through whim or personal ambition. Its factors were all reciprocally engendered.

In this description we have constantly encontered the term necessity; it is necessaty which characterizes the technical universe. Everething must accommodate itself to it with methematical certainty. Every successive technique has appeared because the ones which preceded it redered necessary the ones which fallowed. Otherwise they would have been inefficacious and would not have been able ti deliver their maximum yield.

It is useless to hope for modification of a system like this – so complex and precisely adjusted that no single part can be modified by itself. Moreover, the system perfects and completes itself unremittingly. And except in print, I see no sign of any modification of the technical edifice, no principle of a different social organization that would not be founded on technical necessity.” (The Technological Society, Jacques Ellul, Vintage Books – Random House, New York,p.116)

Tradução: “É impossível amputar uma parte do sistema ou modificá-lo de qualquer forma sem modificar o todo. O sistema não foi construído por capricho ou ambição pessoal. Seus fatores foram todos reciprocamente engendrados.

Nesta descrição, encontramos constantemente o termo necessidade; é a necessidade que caracteriza o universo técnico. Tudo deve se acomodar a ela com certeza matemática. Cada técnica sucessiva surgiu porque as que a precederam tornaram necessárias as que a sucederam. Caso contrário, teriam sido ineficazes e não teriam sido capazes de produzir seu máximo rendimento.

É inútil esperar a modificação de um sistema como este – tão complexo e precisamente ajustado que nenhuma parte pode ser modificada por si só. Além disso, o sistema se aperfeiçoa e se completa incessantemente. E, exceto na imprensa, não vejo nenhum sinal de qualquer modificação do edifício técnico, nenhum princípio de uma organização social diferente que não se baseie na necessidade técnica.”

A crise nas relações entre o Brasil e os EUA não é um conflito entre tecnologia e sociedade. Trata-se de um conflito entre dois tipos de tecnologias: de um lado as tecnologias de informação desenvolvias e exploradas com lucro pelas Big Techs norte-americanas, de outro a tecnologia jurídica e institucional de gestão e administração dos conflitos numa sociedade nacional multiétnica complexa e relativamente desenvolvida do ponto de vista econômico e tecnológico.

Em razão de suas características, os produtos das Big Techs norte-americanas conspiram contra a paz social. Esse é o bem maior a ser protegido pelo Estado brasileiro. E ele está obviamente acima dos interesses mesquinhos de quaisquer empresários, sejam eles norte-americanos, brasileiros, chineses ou europeus. O que aconteceu em 08 de janeiro de 2023 é inadmissível. Algo que em hipótese alguma pode se repetir. Mas a dramática destruição de prédios públicos em Brasília se repetirá se as Big Techs puderem continuar a obter lucro impulsionando Fake News e campanhas de ódio.

A criação, propagação e hegemonia de uma determinada tecnologia sempre produz efeitos políticos, jurídicos e institucionais. Exemplo: assim que os castelos protegidos por muralhas altas de pedra cercadas por fossos começaram a ser construídos e a se popularizar um tipo específico de sociedade surgiu por toda Europa. O feudalismo, com sua estrutura social hierárquica rígida e instituições jurídicas locais separando os feudos uns dos outros, os nobres dos servos e população laica dos clérigos foi uma consequência e não a causa da construção dos castelos.

O sistema feudal substituiu a sociedade que existia no período anterior, com regras jurídicas unificadas e comércio de longa distância que resultou das estradas construídas pelos romanos para consolidar suas conquistas e romanizar regiões conquistadas na Gália, Germânia, Hispânia, Lusitânia etc. Não foi por acaso, portanto, que a tecnologia de construção de estradas declinou na Europa durante o período feudal.

A tecnologia dominante então privilegiava o poder local e a desintegração geográfica da economia. Todas as tecnologias que foram desenvolvidas após o fim do feudalismo (fenômeno causado pelo retorno e crescimento do comércio de longa distância e da concentração de riqueza nas mãos de uma classe social distinta da dos senhores dos castelos) deram forma a uma nova estrutura política e institucional: o Estado moderno. Mas agora essa estrutura está sendo desintegrada por uma nova tecnologia que tende a concentrar poder econômico e político nas mãos de uma nova classe de pessoas: os donos de Big Techs.

O poder local (feudalismo) e o poder centralizado em imensas extensões de terra ou em territórios menores (Império romano, Estado nacional) dependem fundamentalmente do predomínio de instituições políticas e jurídicas num determinado espaço geográfico. Mas o poder tecnológico, político e econômico exercido pelos donos de Big Techs é transnacional, desterritorializado e capaz de se projetar em qualquer território o tempo todo sem respeitar fronteiras, barreiras, distâncias e autoridades locais ou nacionais.

O Estado nacional é uma tecnologia indispensável à perpetuação da paz social. Ele pode e deve resistir às monstruosidades que as Big Techs norte-americanas estão espalhando, porque os seres humanos não existem na nuvem, mas a história recente do Brasil prova satisfatoriamente que milhões deles podem ser “programados” por Fake News absurdas impulsionadas com lucro que corroem a estabilidade política, prejudicam a economia e deformam o sistema jurídico. A predominância de um poder privado como o que é exercido pelos donos de Big Techs não é incompatível apenas com a democracia. Ele é prejudicial à qualquer tipo de racionalidade política e institucional.

Assim como perderá a corrida tecnológica com a China, os EUA estão fadados a não conseguir dobrar o Brasil. A própria existência da democracia e da unidade territorial do país estão em risco e devem ser defendidas, nem que isso cause prejuízo às Big Techs norte-americanas. Se não gostarem do ambiente que está sendo criado no Brasil elas podem se retirar do nosso território. O vácuo que elas deixarem será útil porque permitirá o surgimento de Big Techs brasileiras com ou sem participação de empresas europeias e chinesas.

PS: As planilhas mencionadas nesse texto foram fornecidas pelo DeepSeek, algumas informações utilizadas por mim também.

Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.

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Last Update: 28/05/2025