No último domingo (7), o Fantástico, da TV Globo, exibiu o segundo episódio da série “Diabetes”, focado em alertar para o crescimento da doença entre jovens. Além de ter generalizado os dois tipos – Diabetes Mellitus tipo 1 (DM1) e Diabetes Mellitus tipo 2 (DM2) –, como se fossem iguais, a matéria simplificou muito o que significa viver com a doença.
Uma confusão catastrófica
A reportagem se inicia com o relato de Bruna, jovem com DM1. Em seguida, há os relatos de dois outros jovens, Eduardo e Rhaiani, ambos com DM2. No caso de Eduardo, o Fantástico dá destaque para os depoimentos do jovem, que relatam maus hábitos alimentares, como o exagero nos fastfoods, e sedentarismo, já que passa boa parte do dia sentado.
A abordagem com Rhaiani vai pelo mesmo caminho, uma entrevista com a mãe da jovem revela uma postura arrependida: “O que eu fiz de errado?”, e a conclusão é que os sorvetes e os biscoitos recheados cumpriram o papel de vilões.
A reportagem, então, dá a entender, pela nebulosidade, que basta “se cuidar bem” para que a doença não acometa as pessoas, mas não explicou que a DM1 não é causada por estilo de vida. É por isso que relatos como o de Eduardo e de Rhaiani não aparecem quando a entrevistada é Bruna.
O Fantástico não explicou, mas, enquanto a causa da DM2 está diretamente relacionada a sobrepeso, sedentarismo, triglicerídeos elevados, hipertensão e hábitos alimentares inadequados, a DM1 é uma doença autoimune, em que o sistema imunológico destrói definitivamente as células do pâncreas que produzem insulina, ou seja, a pessoa pode ter o estilo de vida mais saudável do mundo, mas nunca mais vai produzir insulina sozinha e vai para sempre depender de insulina injetável.
Não existe pausa, não existe cura e não existe descanso, pois a pessoa com DM1 vai precisar fazer, todos os dias, o trabalho que o pâncreas faria automaticamente. Vai precisar fazer contagem de carboidratos, monitoramento dos níveis de glicose, aplicar insulina várias vezes ao dia ou depender de bomba/CGM, calcular doses, evitar hipo e hiperglicemias, isso em todos os ambientes que ela frequentar, como escola, trabalho e em momentos de lazer.
Uma simplificação terrível
O Fantástico também procurou mostrar como esses três jovens passaram a fazer exercícios físicos e a mudar os hábitos alimentares, dois movimentos indispensáveis para pessoas com Diabetes. O que o programa não explicou é que, mesmo com todos os cuidados, a glicemia pode oscilar por inúmeros fatores: estresse, hormônios, temperatura, sono, ciclo menstrual, atividade física, doenças, emoções, alimentação, tudo pode influenciar.
E essas oscilações constantes podem gerar situações perigosas, como hipoglicemias graves, risco de perda de consciência, hospitalizações e complicações de longo prazo. Ou seja, não é “falta de cuidado”, não é “simples”, não é “controlável o tempo todo”.
Então, a reportagem não apenas trouxe informações incompletas, ela reforçou mitos antigos, equívocos médicos e uma visão simplificada de uma condição extremamente complexa. Isso tem impacto real na vida das pessoas com DM1, porque forma opinião pública, influencia decisões políticas e molda o que a sociedade acredita ser verdade.
Uma coincidência significativa
Há uma luta em curso, travada por pais, pacientes, médicos, associações, influenciadores e pessoas comuns que vivem no corpo a realidade que a reportagem tentou resumir em alguns minutos, para que pessoas com DM1 sejam reconhecidas como Pessoa com Deficiência (PcD). Há, inclusive, um veto presidencial, de janeiro deste ano, a um projeto que visava tal enquadramento.
É nesse contexto que se insere a matéria do Fantástico, que afirma, de forma indireta, que pessoas com DM1 não têm limitações suficientes para serem consideradas PcD. Esse é um dos equívocos mais graves, pois as pessoas que convivem com DM1 ficam em vigilância 24h, e isso provoca cansaço crônico, estresse mental e desgaste emocional, impede atividades comuns quando a glicemia se descontrola, exige interrupções constantes no trabalho, nos estudo e nas mais variadas tarefas, além de poder gerar episódios de hipoglicemia severa, que causam confusão mental, desorientação, perda de consciência e risco de morte.
Cabe, aqui, um relato pessoal: foram inúmeras as vezes em que precisei, enquanto estudante, sair da sala de aula por causa da confusão mental causada por hipoglicemias e sempre vivi esses momentos sozinha, sem apoio ou adaptações, porque pessoas com DM1 não são reconhecidas como PcD. Se esse reconhecimento existisse, eu teria acesso a direitos que fariam toda a diferença, como flexibilidade para tratar crises, proteção contra discriminação, possibilidade de pausas sem medo, adaptações no ambiente e acesso facilitado a tecnologias que evitariam muitas dessas situações, como, por exemplo, um sensor contínuo de glicose de fácil acesso. A falta desse amparo me deixou vulnerável em momentos que colocavam minha saúde e minha vida em risco.
O reconhecimento como PcD não transforma a DM1 em algo “pior”; ele apenas reconhece o que já é: uma condição crônica, limitante, cheia de riscos e que exige um nível de autocuidado que nenhum órgão do corpo humano deveria exigir de alguém.
Uma questão de para onde vai o dinheiro
De acordo com a Agência Senado, um dos argumentos para o veto presidencial é que “[…] o projeto cria uma despesa obrigatória sem apresentar uma fonte financeira para ela […]”, e essa discussão financeira explica muita coisa. O ajuste fiscal do governo Lula, apoiado pelo Congresso Nacional de Alcolumbre e Hugo Motta, tem um único e certeiro alvo: os trabalhadores e os mais pobres.
Todos estão unidos para cortar gastos sociais, acelerar uma nova reforma da Previdência e medidas como a desvinculação dos pisos constitucionais da Saúde e da Educação, para manter o arcabouço fiscal. Em outras palavras, mais dinheiro para banqueiro através da dívida pública.
Enquanto vigorar o arcabouço fiscal, a pressão será por cortar mais e mais. Por mais reformas da Previdência, o fim do BPC e demais benefícios sociais. O fim do arcabouço fiscal é, desta forma, pressuposto para enfrentar os ataques do governo e do Congresso Nacional. É impossível que, com um volume de recursos tão escassos e, por consequência, com políticas públicas tão deficitárias, garantir todos os direitos da comunidade PCD e suas famílias.
A luta pelos direitos de pessoas com DM1/PCDs só pode ser consequente com seus objetivos se colocar no seu horizonte a luta contra o arcabouço fiscal neoliberal de Lula e do Congresso Nacional. É essa política fiscal que leva o governo Lula e o Congresso Nacional a lançar mão de uma série de medidas que atacam a população e os trabalhadores do país.
Em última instância, os direitos de PCDs só serão plenamente possíveis com o fim do capitalismo e da construção de uma outra sociedade, socialista, em que nenhum ser humano vai ser tratado como mercadoria.