“E que a hora esperada não seja vil, manchada de medo,
submissão ou cálculo. Bem sei, um elemento de dor
rói sua base. Será rígida, sinistra, deserta,
mas não a quero negando as outras horas nem as palavras
ditas antes com voz firme, os pensamentos
maduramente pensados, os atos
que atrás de si deixaram situações.
Que o riso sem boca não a aterrorize,
E a sombra da cama calcária não a encha de súplicas,
Dedos torcidos, lívido
suor de remorso.
E a matéria se veja acabar: adeus composição
Que um dia se chamou Carlos Drummond de Andrade
(…)”
(“Os Últimos Dias” – Rosa do Povo – Carlos Drummond)
Quando Carlos Drummond de Andrade publicou o poema parcialmente reproduzido acima no ano de 1945, o poeta tinha 43 anos e apenas estava começando a se projetar no mundo literário do país.
Em 1942 assina contrato com a José Olympio, editora que publicaria os trabalhos do escritor por 41 anos. O seus primeiros livros, “Alguma Poesia” (1930), “Beijo das Almas” (1934) e “Sentimento do Mundo” (1940) tiveram respectivamente 500, 200 e 150 exemplares, tiragens promovidas e parcialmente pagas do bolso do próprio poeta. Foram apenas distribuídas aos seus amigos.
Aos poucos o reconhecimento artísticos viria, em resposta a um labor que já vinha de muitos anos. No caso do poema supracitado, o tema, como se nota, é a morte e o receio do instante final. No caso do nosso poeta, a morte só viria em 1987, quando Carlos Drummond tinha 84 anos e um reconhecimento nacional e internacional de sua obra. O escritor morreu doze dias após a morte de sua filha, a também escritora Maria Julieta, vítima de um câncer. CDA escreveu em um diário após o falecimento da filha “Assim terminou a vida da pessoa que mais amei neste mundo”.
Os poemas de “A Rosa do Povo” foram escritos entre 1943/1945. O livro foi publicado em 1945: em que pese ter recebido boa acolhida do público e da crítica, não teve edições autônomas posteriores pela José Olympio.
Nas palavras do escritor na introdução escrita 40 anos depois da primeira edição:
“Quis a Record (editora) fazê-lo voltar à situação primitiva, como obra que, de certa maneira, reflete um ‘tempo’, não só individual, mas coletivo no país e no mundo. Escrito durante os anos cruciais da Segunda Guerra Mundial, as preocupações então reinantes são identificadas em muitos de seus poemas, através da consciência e do modo pessoal de ser de quem os escreveu. Algumas ilusões feneceram mas o sentimento moral é o mesmo – e está dito o necessário”.
É certo que a situação política do Brasil e do Mundo envolvia o prestígio da democracia, o rechaço ao nazi-faciscmo, e, em especial, o fortalecimento das simpatias dos povos pela URSS que, no contexto imediato do pós II Guerra, saiu-se inequivocamente como a maior responsável pela vitória militar sobre o nazi-facismo, com todas as consequências que esta vitória teve para os rumos da humanidade.
Hoje em dia, o senso comum decorrente de um discurso ideológico da guerra fria, certamente terá dificuldade de compreender o respeito que a URSS presidida por Stálin despertou pelos povos mundo afora, inclusive no Brasil. Em 1939 e em 1942 a revista norte-americana Times elegeu Stálin como homem do ano. Depois de estar praticamente sempre na ilegalidade desde 1922, o PCB não só conquistou a legalidade em 1945, como elegeu uma ampla bancada comunista na assembleia constituinte de Dutra, da qual foram parte Luís Carlos Prestes, Carlos Marighella, Jorge Amado e Maurício Grabois.
No ano de 1942 houve a batalha de Stalingrado (1942/1943). A batalha é conhecida como um ponto de virada dos limites da expansão nazista no território soviético, a partir de onde o exército vermelho empurraria as tropas nazistas até Berlin. Nada menos do que três poemas deste “Rosa Do Povo” fazem menção à Stalingrado, à vitória militar dos comunistas sobre os nazistas e ao socialismo: “Cidade Prevista”, “Carta a Stalingrado” e “Telegramas de Moscou”. O primeiro destes três poemas canta e anuncia um novo mundo, antevisto pelos poetas, um futuro que supera o atual “mundo irreal dos cartórios onde a propriedade é bolo com flores”:
“Um mundo, enfim ordenado,
Uma pátria, sem fronteiras,
Sem leis e regulamentos,
Uma terra sem bandeiras,
Sem igrejas nem quartéis,
Sem dor, sem febre, sem ouro,
Um jeito só de viver,
Mas nesse jeito a variedade,
A multiplicidade toda
Que há dentro de cada um.
Uma cidade sem portas,
De casas sem armadilha,
Um país de riso e glória
Como nunca houve nenhum.
Este país não é meu
Nem vosso, ainda, poetas.
Mas ele será um dia
O país de todo homem”.
Não seria nada exato, contudo, caracterizar a poesia e prosa de CDA como um trabalho militante e, muito menos, como ideologicamente comprometidas com o socialismo. Mesmo neste “Rosa do Povo”, que é provavelmente o mais politizado dos livros do escritor mineiro, os temas especificamente políticos não são maioria.
Pelo contrário, as temáticas variam da forma de fazer poemas, da rotina e do trabalho burocrático dos funcionários públicos, do amor e até do contar histórias em poesia. O que é interessante de se notar é que os temas dos poemas parecer terem sido agrupados de tal forma que é recomendável a leitura na ordem proposta pelo escritor – o livro parece uma espécie de ópera ou grande musical em que se intercalam momentos de maior e menor tensão.
O poeta começa nos poemas “A consideração do Poema” e “Procura da Poesia” apresentando sua proposta literárias: versos livres, sentimentos que variam da tristeza ao humor e à ironia, a total oposição à poesia parnasiana como todo bom poeta modernista.
Logo no início do livro o escritor afirma que não rimará a palavra sono com a incorrespondente palavra outono, mas rimará com a palavra carne ou outra que lhe convém. Mais do que poemas ideologicamente de esquerda, o crítico Affonso Romano de Sant’Anna vê uma relação entre este trabalho e o existencialismo, corrente filosófica que suscita uma tentativa e impossibilidade de inserção plena do indivíduo no mundo. Um mal estar que se expressa talvez no mais auto ponto poético de “A Rosa do Povo”, o poema “A Flor e Náusea”.
Certamente, não se trata de um desespero ante uma realidade sem saída, como vimos. Stalingrado, na distante Rússia, ainda remete a um ponto de esperança. E talvez seja mesmo imprescindível salientar que a última palavra redigida no último poema da coletânea seja justamente a palavra esperança:
“Poder de voz humana inventando novos vocábulos e dando sopro aos exaustos.
Dignidade da boca, aberta em ira justa e amor profundo,
Crispação do ser humano, árvore irritada, contra a miséria e a fúria dos ditadores,
Ó Carlito, meu e nosso amigo, teus sapatos e teu bigode caminham numa estrada de pó e esperança”.