do Blog da Boitempo
A resistência das escolas frente ao projeto de intervenção da gestão Nunes e Padula
por Laura Cymbalista*
No dia 22 de maio, quinta-feira, uma notícia rapidamente passou a circular nas diversas regiões da cidade de São Paulo: 25 diretores e diretoras de escolas de Ensino Fundamental das Diretorias Regionais de Educação do Butantã, Capela do Socorro, Freguesia/Brasilândia, Guaianases, Ipiranga, Penha, Pirituba/Jaraguá, Santo Amaro, São Mateus e São Miguel foram convocados para uma reunião sem pauta e comunicados que seriam afastados de suas unidades escolares até dezembro para realização de um curso na Secretaria Municipal de Educação. Além do afastamento compulsório, seria encaminhado a cada escola um outro profissional para a gestão escolar, um novo assistente de direção, designado pelo governo.
Ricardo Nunes e o secretário de educação, Fernando Padula, justificaram essa ação arbitrária, ilegal e sem precedentes na história da rede municipal de São Paulo devido aos baixos índices do IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) e IDEP (Índice de Desenvolvimento da Educação Paulistana). Segundo alegavam, esses diretores e diretoras seriam responsáveis pelas escolas com os piores desempenhos na cidade, de modo que deveriam então passar por um curso de “reciclagem” e ser retirados dos seus locais de trabalho. Além da justificativa dos índices, também foram apresentados outros supostos critérios como, pasmem, o tempo de direção. Essas seriam, supostamente, escolas em que os diretores e diretoras estavam há mais tempo, pelo menos 4 anos à frente da mesma escola. No dia seguinte foram publicados no Diário Oficial os números dos RFs (registros funcionais) dos 25 diretores e diretoras convocados para o curso, que teria início já na segunda-feira subsequente. Foi divulgada também a nomeação de cada servidor/servidora que iria para as 25 unidades, caracterizando uma verdadeira intervenção do governo nessas unidades escolares.
Assim que a notícia começou a circular, as comunidades escolares dessas 25 unidades passaram a debater e organizar a enorme indignação frente a essa ação violenta e autoritária da prefeitura. Também o conjunto da rede municipal buscou expressar sua solidariedade e participar da luta que se articulava em toda a cidade. De sexta-feira até a última segunda-feira (2 de junho de 2025, segunda-feira) ocorreram e seguem ocorrendo reuniões de conselho de escola, dos grêmios estudantis, conversas com familiares, protestos e atos em defesa das escolas, debates e posicionamentos contrários a essa medida tanto nas escolas como nas universidades, nos movimentos sociais, nas diretorias de educação, na luta sindical, em ações judiciais e parlamentares em todas as instâncias, bem como uma investigação do Ministério Público. Uma enorme mobilização ocorreu em cada escola e território atacado, e ganhou a cidade. Escolas vizinhas demonstraram apoio; regiões que não sofreram a intervenção se mobilizaram também com ações fortes e contundentes frente a essa medida tão violenta. As falas de estudantes, as homenagens feitas às gestoras e gestores perseguidos, os depoimentos da equipe docente, do quadro de apoio, das equipes gestoras, da supervisão escolar, das famílias, de servidores públicos de outras secretarias, dos colegas dos territórios e os pronunciamento de intelectuais da educação… tudo isso nos emocionou e fortaleceu. Essa comoção nos levou à ação. O ataque à dignidade de educadores, educadoras e estudantes que vivem o dia a dia da escola pública em São Paulo transformou-se em força coletiva e luta com ações diversas em toda a cidade.
Qual qualidade? Qualidade para quem?
O primeiro passo dessa luta foi desmascarar a narrativa do governo, nomeando as ações como elas são: Não é “curso de formação”, é afastamento arbitrário e violento das funções e do local de trabalho ao arrepio da lei. Não é mais um “assistente de direção para ajudar a escola”, é intervenção externa do governo nas 25 unidades com a indicação de um interventor, processo absolutamente distante e desconectado das medidas legais previstas para designação de profissionais nas funções das escolas. Uma pessoa que desconhece a comunidade, o projeto da escola e os percursos educativos em curso. Um ataque direto à autonomia da escola e à gestão democrática, bem aos moldes do tempo da ditadura civil-militar, com prepostos biônicos do regime.
É fundamental reconhecer a amplitude dessa luta, pois não se trata somente de um ataque a 25 diretores e diretoras. Embora sejam estes que estejam na linha de frente, resistindo de forma corajosa, esse foi um ataque ao conjunto da rede municipal e a todos/as que trabalham e estudam diariamente na escola pública.
Esse ataque foi defendido pela gestão Nunes como uma suposta preocupação com a qualidade e o aprendizado. Importante lembrar que a defesa da qualidade da educação carrega muitos sentidos, expressando a disputa real existente em torno da destinação dos recursos públicos e, em última instância, um projeto de Estado e sociedade. Portanto, a chamada “qualidade na educação” é evocada da boca daqueles que planejam e executam a destruição da escola pública com pouco investimento, não contratação de profissionais, ataques à autonomia e à gestão democrática, abandono da rede de proteção social, burocratização excessiva do trabalho educativo e falta de políticas intersetoriais para enfrentar de fato os baixos indicadores sociais.
Ao utilizar os dados do IDEB/IDEP como justificativa, Nunes comete dois grandes erros: de análise estatística e de compreensão da complexidade dos processos educativos.
O primeiro erro a ser abordado aqui é bastante direto e simples: não há evidências científicas na justificativa apresentada por Nunes e Padula para essa intervenção. Além de não se tratar de um “problema de qualidade”, também não se trata da nota das avaliações externas. Não é verdadeira a acusação de que as 25 escolas apresentam os piores índices do IDEB/IDEP da cidade. Ainda que apresentassem, seria totalmente equivocada qualquer punição às escolas que tenham um índice baixo nas avaliações externas de larga escala desconsiderando suas realidades, seus reais desafios e suas necessidades. Lutaríamos da mesma forma contra esse brutal ataque se ocorresse nessas escolas, porém, o fato é que as escolas escolhidas nem atendem o “critério”.
Portanto, a justificativa da prefeitura é mentirosa, anticientífica e demagógica, como demonstra a nota técnica “Ausência de critérios técnicos para o afastamento de diretores das escolas municipais em São Paulo” elaborada pela Rede Escola Pública e Universidade.
Defender a qualidade da educação de forma séria não é o equivalente a olhar para os índices da avaliação de larga escala. A defesa da qualidade passa necessariamente por defendermos uma escola que possibilite o aprendizado de bebês, crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos. Passa por aprender o conhecimento construído ao longo do tempo nas artes, ciências naturais, ciências humanas e sociais. Passa por problematizar o próprio conhecimento, pois o currículo é território em disputa, e aprender também o conhecimento que foi invisibilizado por séculos de racismo e etnocídio. O trabalho educativo de qualidade se realiza por meio do projeto político-pedagógico que forja a identidade de cada escola; pela gestão democrática em seu interior e prática inclusiva, pautada no enfrentamento ao racismo, machismo, LGBTfobia, xenofobia e ao capacitismo. Uma escola que se paute na garantia de direitos dentro e fora dos muros escolares, na saúde, assistência social, cultura e esportes. A ação educativa de uma escola é complexa, envolve muitos fatores e agentes e, sobretudo, relações que demandam tempo, planejamento, pesquisa, debates, críticas, sínteses e vínculos.
Seria necessário mais tempo para aprofundar todos os aspectos que implicam na qualidade da educação, especialmente em espaços vulnerabilizados que carecem da presença do Estado para garantir direitos. Mas certamente essa medida truculenta nada tem que ver com qualidade. Basta ver o impacto destrutivo do anúncio do afastamento e intervenção nos diretores e diretoras, profissionais da educação, trabalhadores daquela escola, estudantes e famílias. Dor, humilhação, revolta, insegurança e adoecimento. Crianças se sentindo responsabilizadas por sua diretora ou diretor ter de sair da escola, pois teriam ido mal em uma prova. Esse impacto também assolou o conjunto da rede municipal, pois nós escolhemos nossas escolas e estas constituem quem somos. Eu sou a Laura do CIEJA. As crianças e educadores/as são do Ibrahim, do Saturnino, do Diler, do Daisy, do Eda, da Verdinha e de todas as 25 escolas que travaram essa luta, junto ao conjunto de escolas desta cidade.
Essas 25 escolas e seus diretores e diretoras sofreram uma enorme violência com a exposição pública a que foram submetidos, com o prefeito e o secretário de Educação repetindo em todas as entrevistas e eventos que eram os e as piores da cidade de São Paulo — quando, na verdade, muitas dessas escolas receberam inúmeros prêmios por seu trabalho, sendo referência para a própria prefeitura, que realizou diversas ações formativas nesses espaços, tomando essas unidades como exemplo de trabalho pedagógico exitoso. Essa violência também foi sentida pelo conjunto das equipes escolares e suas respectivas supervisoras, que são corresponsáveis pelo trabalho diário da unidade. A ideia de “reciclagem” é igualmente ofensiva pois remete a lixo, aprofundando o sofrimento. Sobretudo se considerarmos a formação de excelência da grande maioria desses diretores e diretoras: além da graduação, especializações, mestrado, doutorado, participação em grupos de pesquisa e estudo… São profissionais que reconhecem a importância da formação e o seu impacto na qualidade do trabalho que realizam.
A própria noção de formação foi totalmente deturpada e esvaziada nessa ação truculenta. A teoria vinculada à prática compõe o movimento formativo das escolas, que busca de forma consistente e, por isso, referenciada teoricamente, aprimorar seus fazeres, seus registros e, principalmente, enfrentar as dificuldades educacionais de cada tempo e espaço. Esse movimento formativo compõe nossas jornadas, embora lutemos para que todo educador da escola possa realizá-la, e faz sentido por acontecer na unidade escolar e de forma constante. Essa ação autoritária, de afastamento forçado, sem adesão, na forma de uma punição chamada reciclagem, não pode ser considerada como formação e não está preconizada nos documentos e legislações da rede municipal de São Paulo e em suas práticas.
Carregamos uma história de luta e um trabalho firmado nos territórios. E mesmo com lágrimas nos olhos e aperto no coração fomos à luta. Que se afastem Padula, diretores e diretoras regionais de educação e o prefeito Nunes, por não investirem na educação e por diariamente não reconhecerem o trabalho de cada escola. Sugerimos aos saudosos da ditadura militar e defensores do terraplanismo estatístico e pedagógico que comandam São Paulo e a Secretaria Municipal de Educação revisitar o conjunto de reivindicações da nossa categoria para a melhoria das nossas escolas, algo que pautamos em cada luta, greve ou negociação sindical. Listo aqui algumas delas: redução do número de estudantes por sala; construção de mais escolas públicas e diretas; concurso público para professores, quadro de apoio e gestores; apoio e estrutura para o atendimento de estudantes com deficiências; abertura de turmas na Educação de Jovens e Adultos (EJA); remuneração digna; ampliação de verbas para as escolas; respeito aos projetos políticos pedagógicos e fortalecimento da gestão democrática e a melhora nas condições de trabalho para enfrentar o grave problema do adoecimento da categoria. Existem mais propostas e a cada dia uma escola e sua comunidade buscam enfrentar os problemas que o cotidiano lhes impõe. Mas o real interesse desse governo não é com o aprendizado tampouco com a qualidade de nossas escolas. O que Nunes e Padula seguem explicitando em suas falas e projetos é o ataque a servidores e servidoras, seus sindicatos e formas de luta para abrir caminho para a privatização de nossas escolas públicas.
A defesa da escola pública se faz de mãos dadas com as comunidades, enraizadas nos territórios
Desde o anúncio dessa medida tão violenta até agora vivemos dias intensos, marcados por ações de solidariedade, organização coletiva e unitária em cada território e enfrentamentos corajosos a essa política. As 25 diretoras e diretores atacados se tornaram milhares, e o governo Nunes sentiu a pressão, sendo obrigado a fazer um primeiro recuo. Uma semana após o anúncio inicial, em negociação com os sindicatos e pressionado por manifestações em toda a cidade, Nunes recuou da indicação do interventor, revogando no dia seguinte os decretos de nomeação. Suspendeu o início do curso, reagendando o encontro com os diretores e diretoras, com a presença de seus respectivos sindicatos, para a última segunda-feira, dia 02 de junho. Nessa data, Padula tentou iniciar o curso, desconsiderando o acordo firmado com sindicatos, e os/as 25 diretores se recusaram, pautando a necessidade de diálogo. Saíram da SME e juntaram-se ao ato que estava do lado de fora. Seguimos na luta para enterrar de vez esse projeto. É necessário que Nunes recue do afastamento e dessa formação. Afinal nossa rede trabalha com a concepção de formação em serviço, contínua, dialogada e construída no interior de cada escola. Seguimos organizadas e em luta, contra esse programa e contra a Lei nº 18.221, que abre possibilidades para punições e privatização.
Esse movimento ainda está em curso e as reflexões apresentadas neste artigo são fruto de formulações coletivas, aprofundadas em cada momento de enfrentamento. A luta coletiva e organizada também nos forma e forja, assim como forma e forja estudantes e suas famílias. Ainda é cedo para avaliar, mas esse movimento, com toda sua potência e intensidade nos aponta reflexões e lições para o futuro. Uma delas é que a escola pública é o principal patrimônio da classe trabalhadora, de homens e mulheres que vivem do seu trabalho e reconhecem nas escolas o lugar do direito, do respeito, do aprendizado, do afeto e da alegria. E por ser espaço vivo, é também o local de conflito e contradição, demandando diálogo e o exercício da gestão democrática. A cada ato e reunião que pude acompanhar nas escolas afetadas vi estudantes e famílias que sabem que a escola pública também é deles, não no sentido da posse, mas do direito, implicando a todos e todas nos seus processos. Pude vislumbrar histórias do dia a dia, muitas delas difíceis, mas que culminaram no fortalecimento dos vínculos e aprendizado comum.
Esse processo de luta demonstrou que projetos consistentes e enraizados no território fortalecem cada escola e suas comunidades. E não é possível fazer a defesa da escola pública de forma apartada. Educadores x famílias, gestores x professores, sindicalizados x não sindicalizados, sindicato A x sindicato B. A luta se faz junto da população e de forma unitária entre educadores e o conjunto de sindicatos que nos representam. Repensar cada fala, a forma de se pautar o diálogo, as formas de organizar as ações, de forma orgânica em cada território e articuladas na cidade: esse é o convite e desafio coletivo. Educadoras e lutadoras que somos, nos sindicatos e movimentos sociais fortaleceremos nossas pautas e as construiremos em conjunto das comunidades escolares. Aprendendo, ensinando e fazendo de mãos dadas com a população. Seguimos em luta e viva a escola pública! Não à intervenção e afastamento, diretores e diretoras ficam!
*Laura Cymbalista é professora da rede municipal de São Paulo, atua como coordenadora pedagógica do CIEJA Aluna Jéssica Nunes Herculano e é diretora do SINPEEM.
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