A resiliência ambiental como cosmético à terra arrasada
por Ronaldo Queiroz de Morais
Na vereda crítica aberta pelo filósofo italiano Diego Fusaro, a resiliência é uma qualidade psicológica, mas igualmente construção político-ideológica de dominação. Na esfera da personalidade individual, o conceito representa um perfil a ser alcançado positivamente, por meio terapêutico, com o intento de formar no sujeito a capacidade de superar experiências traumáticas e recuperar sua saúde psicológica. Entretanto, o uso abusivo do conceito no plano político da governança neoliberal representa intenção de constituição de sujeitos dóceis, ante à injustiça social e ao iminente colapso ambiental, como também, ao desejo de passivamente adaptar-se ao caos da dominação do capitalismo de terra arrasada. A resiliência na qualidade de “palavra do poder”, quer dizer, palavra para fazer o poder funcionar favoravelmente ao capital rentista, prolonga sua hegemonia cognitiva graças ao momento histórico de desgaste das instituições democráticas e de esbatimento das promessas de emancipação da modernidade. De forma que é imprescindível se adaptar friamente aos imperativos destrutivos do estágio supremo do Imperialismo Tardio.
Nessa contextura societal, a construção do Estado Suicidário, ou melhor, de Estado irresponsável, diante do iminente colapso ambiental, corresponde à formação de subjetividades resilientes e isoladas em si mesmas. Trata-se de invenção de indivíduos, cada vez mais isolados, presos às bolhas das redes sociais, nas quais são bombardeados, amiúde, por contrainformação. Assim, sem qualquer sinal de mudança institucional democrática, optam pelo voto vazio de princípios morais e éticos, em detrimento do compromisso com a política emancipatória. É uma massa idiotizada que refuta interpretar e transformar o mundo. O Homo resiliente é o distópico corpo produtivo e dócil para suportar pacientemente o impacto da destruição do derradeiro acidente climático.
Isto posto, as condições para a emergência de aparelho burocrático totalitário estão dadas, o Estado Suicidário que arrasta as forças vivas ao fim e nos encaminha à morte, ironicamente, promete a resiliência como antídoto à bancarrota ambiental. De forma condensada, o Estado Suicidário exige esforço sobre-humano no qual o desaparecimento das bases deontológicas da verdade moderna é condição sine qua non para tornar suportável a realidade escatológica presente nos alertas ambientais. Sem dúvida, a resiliência é a palavra do poder vigente, ou seja, do poder econômico hegemônico. É dominação ideológica que atravessa os corpos com a intenção de reproduzir as ideias dominantes de uma época de Capitalismo Neoliberal. Desse modo, para produzir o efeito desejado sobre a sociedade contemporânea, ela deve assumir a forma de saber-poder. A estratégia de uso e abuso do conceito, de utilização totalitária e totalizante, consiste na inclusão da resiliência nos espaços educativos e de construção de conhecimento. A pedra angular do agenciamento ideológico dos sujeitos encontra-se na educação, na mobilização de recursos político-pedagógicos à elaboração de subjetividade resiliente. Eis o segredo da virtude adaptativa, de docilização dos corpos à resiliência. Corpos dóceis são produtivos. Tanto como energia motriz quanto, também, potência ideológica de conservação da lógica do mundo capitalista. O fluxo das máquinas e o do capital não pode parar ante o dissabor das barricadas anticapitalistas. Posto que o capitalismo qualifica uma ordem sócio-política que impõe uma economia movida pelo lucro com o desígnio de predar e expropriar a riqueza coletiva, sujeitando povos e destruindo a natureza. É difícil olhar e não ver que no capitalismo os alicerces de produção de riqueza são conjuntamente de destruição das forças vivas e ambientais do planeta. A mão invisível do capital configurada na “destruição criativa” é na verdade expropriação da criatividade humana e destruição acelerada da existência ecossistêmica global. Numa breve sentença, o capitalismo é exploração das forças vivas e destruição suicidária do mundo.
Mesmo em face do colapso econômico e ambiental, não se pode tocar nas “leis do mercado” e nos lucros dos super-ricos do campo e da cidade. Trata-se, portanto, de aprender a se adaptar. Eis o feitiço capitalista. Nesses termos, o mundo objetivado como formação social capitalista deve permanecer inalterável e é o sujeito que deve se adaptar, inexoravelmente, ao modo de destruição das forças vivas do capital neoliberal. De forma que o ato de se educar à resiliência toma a forma imperativa. O Homo resiliente é dócil e absorve todos os efeitos perniciosos do Capitalismo Tardio. Ele aceita como destino a energia destruidora da espoliação contemporânea para tornar-se cidadão obediente à sociedade adaptativa. É da natureza do capital a crescente e infinita acumulação de riqueza abstrata e, para realizar tal feito, é imperativo a produção ampliada de mercadorias. Então, obviamente, demanda matéria-prima e energia, melhor dizendo, necessita da destruição sistemática da biosfera para alcançar êxito econômico. É por isso que há a premência de constituição de uma “Era de Resiliência” com intuito de suportar o insuportável.
A resiliência é o ópio discursivo para entorpecer a consciência das massas e fomentar o senso-comum delirante, digo melhor, ideia dominante de adesão à ideologia da terra arrasada. Ela é dispositivo de saber e de poder com o propósito de submeter o pensamento político dissidente. A generalização do conceito demonstra a eficiência tática do aparelho cognitivo hegemônico. Jeremy Rifkin é um importante autor que dissemina saber-poder que influencia a formação de políticas públicas internacionais na perspectiva de adaptação do sujeito-global ao mundo natural imprevisível. Ele parte da premissa-base de que estamos na passagem da “Era do Progresso” à “Era da Resiliência”, em que o capital passará de “financeiro” a “capital ecológico”. Nesse “novo mundo”, a adaptabilidade é a condição necessária. E ela deve acompanhar e se ajustar à velocidade com que o aquecimento global está mudando o ciclo hidrológico da Terra. A era resiliente consiste em realinhar a espécie humana aos ritmos e fluxos do planeta, sem alterar a mão invisível que lucra infinitamente com a destruição. Francamente, a proposição é a de um Capitalismo Resiliente, que suportará até mesmo o fim do mundo. Nesse campo cognitivo, o acidente climático é apenas mais uma crise do capital, que se resolve – simplesmente – com choque de gestão. À vista disso, inflaciona narrativas de governamentalidade resiliente, pois é preciso criar o Homo resiliente com o propósito de conviver passivamente frente às incertezas econômicas e climáticas, sem alterar substantivamente a órbita do capital.
É preciso dizer que há o bom e o mal uso da palavra “resiliência” à condição humana e, adiciono, igualmente, ao tema ambiental. Em substância, o conceito coerente de resiliência da natureza foi utilizado com a intenção de caracterizar a habilidade de um sistema de retornar ao estado de referência após ocorrência de perturbação externa, ou seja, é a capacidade de um sistema de manter certas estruturas e funções a despeito das perturbações. Contudo, vivemos uma situação-limite na qual o ambiente natural tem sua capacidade de resiliência excedida, pois as condições de colapso estão dadas. Em suma, é mal uso do conceito afirmar que a natureza, como biosfera, tem capacidade de resiliência, de adaptabilidade e regeneração perante o contexto lúgubre da existência planetária no Antropoceno. É o cosmético político-ideológico sustentado pela proposição de que basta impor a adaptação sobre as pessoas e a natureza, a fim de salvaguardar o mundo dos eventos climáticos extremos, sem tocar na lógica de destruição capitalista. Não há no Planeta Terra, ecossistema com resiliência que se regenere na mesma velocidade destrutiva do capital. Instrutivamente, o limite da resiliência ambiental está na duração. A ideia de capacidade resiliente ilimitada é narrativa suicidária, porque o iminente colapso ambiental, que arrastará a todos, registra que a resiliência dos ecossistemas, como um elástico, está se partindo completamente.
Indubitavelmente, estamos à beira da falésia escatológica, digo, do acidente fatal. Mas tudo aparece sob completo controle. Afinal, temos uma política internacional de “desenvolvimento sustentável” com objetivos que prometem resguardar o planeta do colapso climático. Mesmo quando, na realidade, a questão ambiental aparece como mero adendo na estrutura econômica global. Sumariamente, não há qualquer resposta contundente ao modelo societal suicida. Nada, além da aparência de que tudo está sob controle. É nesses termos que a resiliência ambiental toma a forma de saber-poder a fim de manter a ordem de funcionamento da lógica mundial de acumulação do capital no Capitalismo Tardio. É graças à ideologia dissuasória da resiliência que aceitamos de peito aberto o fim do mundo e rejeitamos o colapso capitalista. É parte da linguagem gerencial que compõe uma gramática docilizante que inclui “governança”, “recursos”, “serviços ambientais”, “mitigação ambiental”, “medidas ambientais compensatórias” e outros conceitos aparentemente neutros e epistêmicos. Enfim, negligencia-se o motor da destruição econômica e ambiental do planeta no afã de esticar o elástico vital até o fim na esperança de salvar o capitalismo de suas próprias forças destrutivas.
Ronaldo Queiroz de Morais – Doutor em História Social na Universidade de São Paulo (USP).
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