no Cinegnose

A religião do Capitalismo de Catástrofe no documentário ‘Apocalipse nos Trópicos’

por Wilson Roberto Vieira Ferreira

Se no documentário anterior, “Democracia em Vertigem”, Petra Costa procurou entender por que a elite que sempre esteve no Estado (banqueiros, grande mídia e construtoras) cansou da Democracia e virou o tabuleiro, em “Apocalipse nos Trópicos” (2024) ela vai detalhar o papel da religião nessa virada. O processo de envenenamento psíquico de uma nação “com a mudança religiosa mais rápida da história da humanidade”: o crescimento dos evangélicos. Em particular, um tipo de fundamentalismo cristão a partir de uma releitura do livro bíblico do Apocalipse: Jesus não é mais “paz e amor”, mas agora um guerreiro em uma batalha espiritual. Era o tipo de Jesus que a elite do mercado religioso precisava para transformar a fé em arma política na última batalha do fim dos tempos: a batalha contra os “esquerdopatas”. Se assistir ao “Apocalipse nos Trópicos” com o documentário anterior em mente, conseguirá entender por que a elite que virou o tabuleiro da Democracia gostou desse fundamentalismo: o niilismo das finanças e a presunção da catástrofe da grande mídia se sintonizam bem com a ideia de um Apocalipse nos trópicos.   

Petra Costa retorna com força ao cenário político brasileiro em seu novo documentário, Apocalipse nos Trópicos, lançado pela Netflix em julho de 2025. A obra é uma continuação temática de Democracia em Vertigem, mas desta vez com foco na interseção entre religião e política — especialmente o papel do fundamentalismo evangélico na ascensão da extrema direita no Brasil.

Lá em Democracia em Vertigem, Petra tornou a cronologia dos fatos que levaram o País da ditadura militar aos governos de centro-esquerda de Lula e Dilma em apenas um cenário para entender por que a elite se cansou a Democracia e do Estado de Direito, virou o tabuleiro e envenenou corações e mentes com ódio e polarização.

Agora, em Apocalipse nos Trópicos, a diretora vai detalhar esse processo de envenenamento psíquico de uma nação.

Se no documentário anterior, descrevia os grupos da elite que sempre estiveram no Estado durante a história recente, bancando a democracia e a república (os banqueiros, as famílias proprietárias da grande mídia e as construtoras), agora no atual documentário, Petra Costa revela o papel da religião não só na manutenção do status quo. Mas principalmente, no papel de pastores e igrejas neopentecostais na virada do tabuleiro, para que essa elite recolocasse as peças (os políticos) nos lugares.

Tudo pontuado por detalhes de pinturas medievais baseadas no livro bíblico do Apocalipse, o documentário começa com o título irônico: como é possível falar de “Apocalipse” nos “Trópicos”? Ao pensarmos em “trópicos” pensamos em praias ensolaradas, alegria, sensualidade e otimismo. Bem diferente do Apocalipse sugerido pelas pinturas com detalhes bizarros dos sofrimentos no Inferno.

O estilo do documentário segue a narrativa em primeira pessoa do documentário anterior:

A minha formação laica não estava ajudando a decifrar os sinais do meu entorno… eu sabia o que tinha sido a Revolução Russa, a fórmula do oxigênio… mas nada sobre o Apóstolo Paulo, João de Patmos ou os Quatro Cavaleiros do Apocalipse. Era se compartilhássemos a mesma Terra, mas falássemos línguas diferentes… Então eu finalmente começo a estudar a Bíblia.

Petra declara isso depois de acompanhar pastores e deputados da Bancada da Bíblia ungindo os lugares do plenário um pouco antes de uma sessão do Congresso. Seria como estivessem entregando as rédeas do governo para uma entidade distinta: Jesus. E visitar igrejas evangélicas nas cidades-satélites da Capital Federal.

A narradora compartilha a perplexidade em tentar compreender como a política nacional, cujo centro é uma cidade planejada pelos princípios da racionalidade da arquitetura e urbanismo modernos, foi cooptada pela religião. Como um país que promulgou uma das constituições “mais progressistas do planeta”, viu o debate público dos grandes temas nacionais se tornar irracional ao ser absorvido pela fé. Gerando a cismogênese que cliva qualquer consenso público.

O documentário mostra imagens de arquivo da construção de Brasília, Niemayer e Lúcio Costa, a vista área da Praça dos Três Poderes que criou “um triângulo perfeito com cada poder em um vértice, e a separação de Igreja e Estado”.

Apocalipse nos Trópicos vai acompanhar a gênese daquilo que Petra Costa define como “uma das mudanças religiosas mais rápidas da história da humanidade”, na qual em poucas décadas os evangélicos cresceram de 5% para mais de 30% da população brasileira.

E começa na ditadura militar com o grupo de lobby americano chamado A Família (The Family) que enviou missionários americanos para o Congresso Brasileiro para evangelizar congressistas desde os anos 60.

Missionários americanos iam ao Congresso sob a aparência pública dariam curso de inglês para os parlamentares, quando na verdade eles queriam evangelizar congressistas brasileiros. A portas fechadas eram cafés da manhã que se transformavam em verdadeiros estudos da Bíblia.

Eles faziam “cafés da manhã de oração nacional”, que duraram todo período da ditadura militar, além de um programa de envio de milhares de missionários americanos.

Cujo ponto alto são as imagens de 1974 do “maior evento de evangelização do mundo” com o pastor Billy Graham em um culto realizado no Maracanã lotado. Que o governo ditatorial tornou obrigatória a transmissão ao vivo pela TV.

Da Teologia da Libertação à Teologia do Domínio

Por que tudo isso? Segundo o documentário para conter o avanço da Teologia da Libertação na Igreja Católica. Pelo menos foi o que pensaram Herry Kissinger, que era o secretário de Segurança americana e de Relações Exteriores, e outras pessoas do governo americano.

Apocalipse nos Trópicos é incisivo ao mostrar que não era uma mera tomada de posição em um mercado religioso. Mas algo muito maior: a tomada de assalto do Estado por um pensamento religioso bem específico. Principalmente, favorável à geopolítica norte-americana.

E isso passava pela reconfiguração da imagem de Jesus. Dessa vez, adaptada ao viés apocalíptico de uma “guerra espiritual no fim dos tempos”.

E quando detalhes de pinturas medievais do Apocalipse se tornam mais insistentes, dando um ritmo mais frenético na montagem das imagens.

Principalmente nas entrevistas com o pastor Silas Malafaia, apresentado no documentário quase como um operador político de Jair Bolsonaro, exortando os milhões de fiéis a votarem no “ungido” para enfrentarmos o “fim dos tempos”.

Como foi possível essa mudança radical de Jesus? Afinal, sempre associamos o enviado de Deus com o perdão, a compaixão e o amor. E não como um guerreiro implacável com uma espada flamejante.

O documentário dá uma interessante informação histórica sobre o protestantismo.

Em 1827, um jovem pastor irlandês, John Nelson Darby, virou essa ideia de ponta-cabeça. Eu jamais teria imaginado seu efeito profundo na política brasileira. Abalado pelo Iluminismo, Darby leu o Livro do Apocalipse como ninguém tinha lido antes. Da mais racional e literal possível. Para ele, fazia todo sentido que esse mundo depravado devesse enfrentar a ira final de Deus. As coisas continuariam piorando até a chegada do apocalipse. Então, não havia motivo para desejar e promover a paz. Seus ensinamentos eletrizaram o pensamento evangélico, dando origem a um movimento fundamentalista que acreditava que, quanto pior as coisas ficassem na Terra, mais rápido seria o retorno de Jesus.

O que Petra Costa descreve aqui é uma importante transformação no movimento evangélico: da Teologia da Prosperidade (cujos efeitos políticos eram apenas residuais) para a Teologia do Domínio, na qual a religião é explicitamente direcionada para a política, transformada em batalha espiritual.

E que acompanhou Bolsonaro para dentro do Estado.

Esse novo Jesus não ama mais a paz e o amor. Jesus agora é belicoso: quanto pior melhor, para acelerar o retorno Dele para esse planeta.

Quem explica a Teologia da Dominação é o onipresente Malafaia a certa altura do documentário:

Uma teologia que prega que cristãos devem controlar todos os aspectos da sociedade. No Novo Testamento, a prostituta da Babilônia aparece sentada no topo de sete montes. Que, para eles, representam todas as áreas da cultura, economia e governo da nação. Eles dizem que cristãos precisam tomar esses montes das forças malignas. Um por um. Com essa eleição, eles começam a cumprir a sua própria profecia. Escalando até o topo o monte mais instável. O monte da política.

Nesse momento, o documentário corta para mostrar imagens do caos em Manaus durante a pandemia da COVID-19. Mortos e caixões saindo de hospitais pela falta de oxigênio nas unidades de saúde e a inoperância logística do Ministério da Saúde no Governo Bolsonaro. Fazendo o número de mortos ultrapassar a China.

E imagens em vista aérea de dezenas de covas sendo abertas em um cemitério, com enterros em série facilitados por tratores.

Sugerindo que, para a bizarra teologia fundamentalista, o coronavírus nada mais era do que um sinal do fim dos tempos e da vinda de Jesus.

Dando sentido à bravata de Jair Bolsonaro diante de jornalistas: “Lamento. Quer que eu faça o que? Eu sou Messias, só não faço milagres”.

Porque, como mostra o documentário, principalmente nas falas enlouquecidas de Malafaia no púlpito, o verdadeiro inimigo nessa guerra do fim dos tempos são os “esquerdopatas”.

Por isso, mais do que os quatro evangelhos canônicos, o Livro do Apocalipse é o livro chave para todo o movimento fundamentalista, evangélico e neopentecostal. Porque a guerra leva à paz, à liberdade. Lembrando a Novilíngua de George Orwell em 1984.

Assistir ao documentário Apocalipse nos Trópicos, tendo ainda em mente as imagens de Democracia em Vertigem, é compreender como essa teologia fundamentalista baseada no Apocalipse teve um crescimento tão rápido e deletério na política nacional: para o mercado financeiro, o aceleracionismo do Apocalipse (o “quanto pior, melhor”) só estimula as práticas disruptivas de enriquecimento rápido. Niilismo e financeirização estão juntas no imaginário de um novo tipo de investidor – o pós-meritocrático.

E para a grande mídia, parece que esse fundamentalismo teológico compartilha do mesmo princípio do imaginário midiático: o da presunção da catástrofe.

Wilson Roberto Vieira Ferreira – Mestre em Comunicação Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi. Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no “Dicionário de Comunicação” pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho e dos livros “O Caos Semiótico” e “Cinegnose” pela Editora Livrus.

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Last Update: 26/07/2025