Nos últimos dias, os meios de comunicação da esquerda no Brasil têm publicado muitos artigos defendendo a regulamentação das inteligências artificiais. Cumprindo um papel semelhante ao da Inquisição católica, que exigia um certificado dos impressores de livros, a esquerda acaba por tentar limitar o desenvolvimento tecnológico, enquanto diz fazer isso em nome da democracia, dos direitos políticos da população e da luta contra as “Big Techs”. No entanto, como demonstramos aqui, as próprias empresas imperialistas do ramo são as grandes interessadas na regulamentação dessas novas tecnologias.
Nesse sentido, se encontra a matéria de Zeca Dirceu, publicada como coluna ontem, 10 de junho, no portal Brasil 247. A coluna é interessante, pois, Zeca é parte da Comissão Especial que debate o assunto na Câmara dos Deputados.
Seu artigo se inicia com o seguinte:
“A inteligência artificial (IA) já está entre nós, moldando decisões que afetam desde a oferta de crédito até o acesso aos nossos dados de saúde, de educação e do mundo do trabalho. Por um lado, seus benefícios são inegáveis – como aumento de eficiência, personalização de serviços e avanços científicos. Entretanto, seu uso sem regulamentação adequada pode trazer riscos significativos a toda a sociedade.
Por isso, o Brasil, assim como outros países, se vê diante da necessidade de criar leis e diretrizes para regular o desenvolvimento e a aplicação da IA. O desafio é garantir que essa tecnologia seja usada de forma ética, segura e benéfica para a sociedade, garantindo a proteção dos direitos fundamentais da população em diferentes frentes. Na Câmara dos Deputados, o tema começou a ser debatido em 2019 e no ano seguinte foi aprovado o projeto de lei 21/ 2020, de autoria da deputada Luísa Canziani (PSD/PR), parlamentar do estado do Paraná.
No Senado Federal, o debate sobre o tema ganhou forças, e se desdobrou no projeto de lei 2.338/ 2023, de autoria do senador Rodrigo Pacheco (PSD/MG), que foi construído por meio de uma comissão de juristas. Esse projeto foi aprovado no Senado e agora está em debate na Câmara dos Deputados, que discutirá, numa Comissão Especial bastante heterogênea em sua composição, o futuro da regulação dessa nova tecnologia. Como membro titular da Comissão, entendo que há pontos centrais a serem tratados.”
Só pelo fato de o projeto ter vindo do PSD, a esquerda brasileira já deveria ficar com uma pulga atrás da orelha. Afinal, por que um partido com raízes na ARENA (que se transformou em PDS, deu origem ao PFL e depois ao DEM, do qual o PSD é uma dissidência) se preocuparia com os direitos da população brasileira?
A tentativa não é de garantir que essa tecnologia seja usada de forma ética, mas sim, impedir que a população do Brasil tenha acesso a ela, pois, em relação à circulação de informações, se as redes sociais já eram um perigo para a velha imprensa aliada ao imperialismo, as tecnologias de inteligência artificial são ainda mais poderosas.
Trata-se, portanto, de uma preocupação com a manutenção do regime político e contra o desenvolvimento nacional. O fato de que o PSD esteja tão envolvido na questão mostra que as intenções não são boas.
Na sequência de seu texto, Zeca Dirceu mostra os pontos que considera embasar a necessidade de regulamentação da tecnologia. Vamos a eles:
“Prevenção de danos – Em primeiro lugar, é necessário ter uma lei que valha para todos. O texto aprovado limita o escopo da aplicação da futura lei, abrindo exceções genéricas já no primeiro artigo. Isso significa que sistemas de IA com grande potencial de impacto sobre a vida das pessoas podem ficar fora da regulação. Defendo que a lei se aplique a todos os sistemas que possam afetar direitos, a segurança pública ou o meio ambiente, independentemente do setor de origem.”
Ou seja, não basta que a regulamentação seja feita como a direita quer, para Zeca Dirceu, ela tem que ir além do proposto pelos conservadores.
É interessante notar, também, como a regulamentação que vem sendo apoiada pela esquerda, não atinge os pontos que a própria esquerda levanta. No que diz respeito a regulamentar para não atingir os trabalhadores, para não permitir seu uso pela polícia, o projeto parece deixar de lado.
Isso mostra como a esquerda acaba por ser feita de palhaça. Faz a campanha a favor do projeto direitista, limpa a barra com os trabalhadores, mas acaba aprovando um projeto completamente antidemocrático e que só leva adiante o programa da direita.
Seguindo:
“Temos também que estabelecer uma governança algorítmica, que não pode ser opcional. Essa questão é frágil no texto do Senado, já que há flexibilização das exigências de governança sobre os algoritmos, como se medidas de transparência e prevenção só fossem necessárias diante de indícios de discriminação. A governança deve ser permanente, sobretudo em sistemas de alto risco. Não se combate preconceito algorítmico esperando o primeiro caso de injustiça acontecer.”
Além do parágrafo acima, outro, apresentado posteriormente no texto, tem o mesmo sentido:
“É essencial que a responsabilização por danos causados por sistemas de IA leve em conta as particularidades dessa tecnologia. O modelo atual remete às regras genéricas do Código Civil, o que dificulta a reparação de danos. É preciso prever responsabilidade objetiva para os sistemas de alto risco e considerar toda a cadeia de desenvolvimento e operação da tecnologia.”
Agora, o que veremos é a luta contra o “preconceito algorítmico”. Depois que a esquerda apoiou a censura em praticamente tudo, chegando a apoiar a condenação de oito anos de cadeia para o humorista Leo Lins (não sei a opinião de Zeca Dirceu sobre o assunto), agora, em nome da luta contra o racismo, a homofobia, a transfobia e afins, pretendem limitar as IAs.
Trata-se de mais uma confusão em nome da luta contra as chamadas “Big Techs”. Da mesma forma que hoje a esquerda diz que a regulamentação das redes sociais vai permitir punir essas empresas, mas, na prática, vai dar a elas o poder de tribunal extrajudicial e estrangeiro, vai permitir que essas empresas censurem a população em nome da suposta luta contra o racismo.
O que acontecerá na prática é que, quando alguém realizar uma pesquisa em um ChatGPT, ou outro aplicativo de conversas com IA do tipo, ao questionar se o que se passa em “Israel” é um genocídio contra os palestinos, caso a resposta seja positiva, os sionistas poderão acionar a justiça contra a empresa responsável. Sendo assim, a resposta conterá cada vez mais censura.
Seguindo:
“Supervisão humana – É também essencial analisar a utilização da IA no mundo do trabalho: a supervisão humana é essencial. O texto atual retirou garantias importantes para os trabalhadores, como a exigência de supervisão humana em decisões automatizadas que envolvam punições ou demissões. Esse é um risco extremamente grave: algoritmos mal calibrados podem amplificar desigualdades e injustiças. Defendo a reinserção dessas salvaguardas no texto.”
O parágrafo apresenta uma confusão. O problema, aqui, não está na IA, mas sim, nas próprias “punições ou demissões”. A esquerda se esqueceu, mas, os julgamentos para as “punições” deveriam acontecer sob a letra da lei, em um Estado democrático real. No entanto, os juízes brasileiros agem de acordo com seus próprios pensamentos.
É óbvio que não seria possível utilizar uma IA para punir alguém, mas isso não precisa de regulamentação das IAs, da mesma forma que não precisamos regulamentar os tipos de combustível no país para ser proibido que um tribunal resolva queimar algum condenado por assassinato.
Esse argumento é o mesmo que coloca impedimentos sobre as armas no Brasil. Da mesma forma que não são as armas que assassinam, mas quem puxa o gatilho, não são as IAs que demitem, mas os patrões que por motivos mesquinhos resolvem demitir os trabalhadores.
Continuando:
“Além disso, outro ponto a ser destacado é o impacto dessas tecnologias nos postos de trabalho, que poderão ser automatizados por mecanismos de IA. Nesse sentido, é fundamental que a Câmara dos Deputados debata a implementação de tecnologias IA atrelada à manutenção da empregabilidade da população brasileira, bem como a sua qualificação para lidar com essas novas tecnologias.”
Zeca Dirceu propõe, portanto, para gerar empregos no Brasil, o fim dos tratores e da maquinaria automatizada no campo? A volta das usinas de cana do tempo da escravidão? O transporte de pessoas no lombo dos escravos?
O argumento não é válido. Se é verdade que as IAs têm a capacidade de diminuir a necessidade de trabalho humano, o que poderia gerar uma diminuição dos postos de trabalho em um primeiro momento, também é verdade que os trabalhadores devem lutar, ainda mais com as IAs, para uma diminuição da jornada de trabalho.
Não faz sentido querer que o país continue com tecnologias defasadas para garantir o emprego, sendo que o Brasil poderia gerar muito mais postos de trabalho se reindustrializando. Fora isso, ao mesmo tempo em que alguns tipos de trabalho desaparecem, como sempre ocorreu na história, outros surgem.
Caso o Brasil se preocupasse mais em gerar tecnologia, ao invés de limitá-la, seria possível ensinar os trabalhadores a trabalhar com as IAs, além de formar pessoal qualificado para a produção de IAs nacionais, sem depender da tecnologia vinda do imperialismo.
“Já o reconhecimento facial em espaços públicos exige limites claros. O uso de reconhecimento facial em tempo real, sobretudo por órgãos de segurança, precisa ser tratado com extrema cautela. A proposta atual permite esse uso sem exigir sequer autorização judicial. Esse é um risco à privacidade e à dignidade de toda a população, com impactos ainda mais graves sobre pessoas negras, indígenas e periféricas. A lei deve impor limites e salvaguardas.”
O problema aqui não é a regulamentação das IAs, mas o uso de câmeras em todos os lugares por parte da polícia. Usam, por exemplo, câmeras para os estádios de futebol. Quem decide se a pessoas pode entrar ou não é quem opera a máquina, não a IA. O que defende o deputado, portanto, é a segregação por meio das câmeras, mas sem a IA.
O último dos argumentos de Zeca Dirceu é o seguinte:
“Por fim, precisamos tratar da proteção dos direitos autorais, já que os sistemas de IA são, majoritariamente, construídos a partir do aprendizado de máquinas, o que envolve o processamento de grandes volumes de dados existentes. Nem sempre há respeito aos direitos autorais dos conteúdos utilizados- sejam livros, textos jornalísticos, obras de arte, dentre outros. O projeto a ser analisado na Câmara precisa priorizar essa questão, incluindo a remuneração dos autores.”
A política de direitos autorais é muito reacionária. Defende que milhões de pessoas fiquem sem o acesso à arte, à cultura e à informação em benefício de empresas imperialistas que detém o direito sobre produtos imateriais.
No entanto, essa política não é nova. Faz parte dela toda a campanha contra a pirataria na época dos discos, dos cassetes, dos cds e dvds e da internet.
Acontece que a humanidade já tem meios de fazer circular o conhecimento e a cultura de maneira muito rápida, sem necessitar dos meios físicos. No entanto, os direitos autorais impedem essa circulação, ao mesmo tempo que impedem a paródia, a reescrita e a criatividade humana de se expandirem nos limites que a época permite.
Para concluir:
“Governos, empresas e sociedade devem colaborar para desenvolver políticas que equilibrem inovação, ética e direitos fundamentais. Sem isso, corremos o risco de ampliar desigualdades, comprometer a privacidade e perder o controle sobre sistemas cada vez mais autônomos. O Brasil tem a chance de fazer diferente, aprendendo com os avanços da União Europeia e os riscos que surgiram nos Estados Unidos e na China. Garantir uma regulação que promova a inovação, mas que não sacrifique os direitos das pessoas. Não há nada mais moderno do que proteger a dignidade humana. É isso que devemos garantir no debate da Câmara dos Deputados.”
Não é a defesa de algum direito da população. É a defesa da censura e do retrocesso tecnológico, junto das empresas que fabricam essas tecnologias. É a política do próprio imperialismo.